Edição 388 | 09 Abril 2012

O amor fati como resposta à tirania do sentido

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Márcia Junges

BILATE, Danilo. A tirania do sentido: uma introdução a Nietzsche (Rio de Janeiro: Mauad X, 2011)

“É através do amor fati, ou amor ao destino, que podemos nos alegrar com a nossa condição de criadores de sentido e, portanto, não entendermos a vida (isto é, a exigência de sentido) como uma tirania”. A explicação é do filósofo Danilo Bilate, autor de A tirania do sentido: uma introdução a Nietzsche (Rio de Janeiro: Mauad X, 2011), na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. De acordo com o pesquisador “como é frequente em Nietzsche, é preciso que não nos detenhamos no significante utilizado por ele, mas no significado que ele quer dar à palavra. ‘Sentido’ em Nietzsche significa por vezes essa consolidação de uma força e é por isso que se pode definir toda e qualquer vida como ‘interpretação’”. Bilate meciona também a potente crítica nietzschiana endereçada à modernidade. Essa crítica, acredita, pode valer para nosso tempo, uma vez que ainda continuamos “modernos”. E complementa: “O mesmo se pode falar, por exemplo, de sua análise do niilismo, já que nosso tempo ainda é niilista. Então eu posso responder que ele permanece atual quando ele acusa de serem decadentes os valores básicos de nossa cultura”.

Danilo Bilate é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É mestre e doutorando em Filosofia pela UFRJ com a tese Nietzsche e uma ética dos afetos. É editor associado da Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche (www.tragica.org), e coorganizador de Spinoza & Nietzsche: filósofos contra a tradição (Rio de Janeiro: Mauad, 2011).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – A partir da obra de Nietzsche, como podemos compreender a tirania do sentido?

Danilo Bilate –
Para o filósofo, viver é interpretar e interpretar é dar sentido. Podemos afirmar que o homem doa sentido ao mundo. Ocorre que, caso não creiamos em entes metafísicos como, por exemplo, o Deus judaico-cristão, nós podemos concluir que a realidade é absurda. Nesse caso, é possível pensar numa reação de profunda angústia à constatação disso que Nietzsche nomeia “a morte de Deus”. Assim, o absurdo surge como uma ameaça e percebe-se a necessidade de sentido como tirânica. Mas é importante que se diga que é possível encarar essa necessidade sem angústia, e é isso que entendo que Nietzsche nos ensina a fazer. É através do amor fati, ou amor ao destino, que podemos nos alegrar com a nossa condição de criadores de sentido e, portanto, não entendermos a vida (isto é, a exigência de sentido) como uma tirania.


IHU On-Line – Quais são as raízes dessa concepção?

Danilo Bilate –
Sem dúvida, a raiz dessa concepção é a definição nietzschiana de vida. Para Nietzsche, vida é vontade de poder. Em outras palavras, a vida é um movimento em busca de poder e esse movimento se faz ver, por exemplo, pela tentativa de um corpo (orgânico ou inorgânico) em se consolidar vencendo uma resistência. Isso se explica pelo fato de Nietzsche conceber o mundo como um conjunto de forças em conflito. O que explica uma força? O fato de ela buscar se sobressair diante de uma outra força. Essa vitória, quando ela ocorre, é justamente a consolidação provisória de uma interpretação, é produção de sentido. Parece difícil entender isso, tendo-se em vista que a palavra “sentido” nos remete à linguagem e estamos falando não apenas de seres que possuem linguagem, mas de todo e qualquer ente. Como é frequente em Nietzsche, é preciso que não nos detenhamos no significante utilizado por ele, mas no significado que ele quer dar à palavra. “Sentido” em Nietzsche significa por vezes essa consolidação de uma força e é por isso que se pode definir toda e qualquer vida como “interpretação” (outro significante que nos remete à linguagem).


IHU On-Line – Partindo da tirania do sentido, quais são os nexos entre linguagem e poder no pensamento nietzschiano?

Danilo Bilate –
Essa pergunta é interessante por sua ambiguidade. Se vida é vontade de poder, se, portanto, viver é interpretar e se através da linguagem o homem interpreta, não estaria ele buscando um “poder”? Mas essa reflexão deve ser feita com cuidado. Já há algum tempo que é aceita entre historiadores a ideia de que a palavra alemã “Macht” que traduzimos por “poder” na expressão “vontade de poder” (Wille zur Macht) não pode ser compreendida em sua significação política. E é justamente por isso que alguns preferem traduzi-la por “potência”. É preciso reafirmar que, no caso do homem, a vida, que é vontade de poder, se manifesta também na linguagem. Com isso eu quero dizer que o homem interpreta pela linguagem. É claro que por ser um corpo orgânico, uma hierarquia de forças que se consolida provisoriamente, ele cria sentido ao se consolidar, mas ele também significa o mundo, o que só é possível pelo uso das estruturas lógico-gramaticais. Eu disse que a pergunta era ambígua porque talvez com ela se queira saber se é possível falar em Nietzsche de uma análise específica sobre a linguagem como instrumento de poder político. Eu diria que sim, em certa medida, a partir da leitura de um texto de sua juventude, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, já que lá ele mostra que a linguagem nasce com uma função política bem clara, a saber, de permitir a comunicação entre os homens. Mais do que isso, lá Nietzsche defende a ideia de que as noções de verdade e mentira surgem desse mesmo contexto político, onde, através da linguagem, a comunidade mede se um indivíduo participa das suas regras políticas ou se delas se mantém marginal.


IHU On-Line – O que seria uma semiótica nietzschiana? Quais são suas peculiaridades? Há alguma relação entre ela e a tirania do sentido?

Danilo Bilate –
Em lugar de pensar em uma “semiótica nietzschiana”, hoje eu prefiro falar que ele pensa sobre a linguagem. As peculiaridades desse pensamento são muitas e é difícil expô-las de modo sucinto. Poderíamos reafirmar que, para Nietzsche, a linguagem tem uma função óbvia de comunicação. Disso ele conclui que a linguagem opera um empobrecimento ou uma simplificação da realidade para tornar compreensível à coletividade o que se quer exprimir. A noção filosófica de um “ser” eterno e imutável, os números, as ideias de unidade e substância, tudo isso nasceria desse processo simplificador e empobrecedor. Então, o pensamento de Nietzsche sobre a linguagem se confundiria com uma gnosiologia e, até mesmo, com uma ontologia ou, ao menos, com uma crítica a toda possibilidade de ontologia. Por isso eu dizia da minha preferência em não falar em uma “semiótica”. Não é mero acaso o fato de Nietzsche não ter dividido sua obra em campos de saber para formar um corpus sistemático.
Quanto à última pergunta, reafirmo que o homem interpreta o mundo também pela linguagem e, assim, através dela pode-se exercer uma “tirania do sentido”, no caso de um indivíduo que tenha dificuldade para se engajar alegremente na condição existencial de criador de valores.


IHU On-Line – Qual é a conexão entre interpretação, verdade e moral nesse autor?

Danilo Bilate –
Só podemos compreender o que Nietzsche fala a respeito da verdade e da moral partindo de uma concepção de vida como interpretação. É preciso mostrar que a verdade é uma “transposição metafórica”, um valor estabelecido por uma espécie de contrato social sustentado pela linguagem e que a moral nasce junto com esse contrato, pois a avaliação de um indivíduo pela coletividade como sendo “bom” ou “mau” se sustenta nessa verdade linguístico-contratual, embora nós nos esqueçamos disso. Eu gostaria de chamar atenção para um ponto que tento explicar no livro: é importante que se diga que Nietzsche não abandona o uso da palavra “verdade” e que ele não é um relativista. Do mesmo modo, ele não é alguém que recusa toda e qualquer possibilidade de construção de valores “morais” e nem mesmo alguém que classificaria todo e qualquer tipo de moral possível como niilista.


IHU On-Line – O que podemos compreender pelo pathos da indiferença? E como se delineia a ética da nobreza em Nietzsche?

Danilo Bilate –
Em textos meus mais antigos que o livro, por vezes eu uso expressões de minha autoria e algumas classificações que podem até soar anacrônicas. Por isso, hoje prefiro tratar com mais cuidado a classificação de “semiótica” para um autor que não se classificaria ele mesmo assim. O mesmo ocorre com as expressões “pathos da indiferença” e “ética da nobreza”. De todo modo, ainda hoje me parece que elas são interessantes para compreender algo de seu pensamento. A partir da leitura da obra nietzschiana, podemos associar o termo grego pathos a “afeto” ou “pulsão”. Eu defendo que o que ele chama de “pathos da distância” pode ser associado ao afeto da indiferença. O indivíduo que se distancia do outro é indiferente a ele. O interessante é observar que essa indiferença não se confunde com o ressentimento, pois, enquanto aquela é um distanciamento de toda alteridade, esse último é um afeto que depende de uma relação com o outro. Por que isso é interessante? Porque talvez Nietzsche abra portas para pensarmos em duas concepções distintas de violência: uma violência que é mera consequência do excesso de força de um indivíduo indiferente ao outro, que Nietzsche não abomina; e uma outra, que ele menospreza, que é a violência vingativa, advinda do ressentimento, uma violência cometida pelos fracos. A ética da nobreza seria a valorização de certos afetos como, justamente, o pathos da distância e a indiferença, mas também o orgulho, o amor e o respeito próprios, a amizade e o amor fati. Essas ideias eu trabalho mais detalhadamente em minha tese de doutorado.


IHU On-Line – Em que aspectos essa ética da nobreza poderia colaborar para uma revitalização em campos como a política em nossos dias, por exemplo?

Danilo Bilate –
Quando falo e penso em “ética”, falo e penso em afetos. Eu entendo que uma “revitalização” político-cultural deve passar por uma nova forma de lidarmos com nossos afetos. Como muitos comentadores já explicaram, a “nobreza” muitas vezes em Nietzsche deve ser entendida metaforicamente, eu quero dizer, não se referindo a uma classe socioeconômica dominante, mas a uma tipologia psicofisiológica ou ética. Então, quando falamos em revitalização da política em nossos dias a partir da ética da nobreza, precisamos ter em mente esse detalhe. Eu penso que a revitalização se dá ao nível político no sentido amplo do termo, no que ele se refere às relações humanas e à coletividade. A revitalização é, antes de tudo, uma transformação cultural, uma transvaloração dos valores, que visa, em última instância, um novo tipo psicofisiológico ou ético de indivíduo. Quanto ao sentido mais estrito da palavra “política”, poderíamos dizer que transformações nos sistemas de governança e organização social seriam uma consequência da revitalização cultural, ainda que elas possam ser contemporâneas desta. Mas podemos nos aventurar a pensar para além de Nietzsche e perguntar: não seria a violência ressentida o maior perigo para o fortalecimento da cultura e, portanto, para o fortalecimento do indivíduo? Será que o combate ao ressentimento não seria o meio mais eficaz para que estruturemos uma sociedade de cooperação? Ou, para perguntar de outro modo, a valorização honesta do egoísmo não seria uma forma mais eficaz de proteção e engrandecimento do indivíduo?


IHU On-Line – Por que Nietzsche prossegue um autor importante para a compreensão do tempo em que vivemos? Em que reside a sua atualidade fundamentalmente?

Danilo Bilate –
Penso que essa pergunta não vale apenas para Nietzsche. Todo grande pensador pode ser usado para compreender a contemporaneidade. Essa pergunta é muito importante, pois ela toca no ponto fraco da nossa maneira de “fazer filosofia”. É claro que Nietzsche soube observar sua época com uma visão aguçada e que, por isso, ele já antevia questões que ainda permanecem sendo as nossas. A sua crítica à modernidade pode ser também uma crítica ao nosso tempo, na medida em que ainda permanecemos relativamente “modernos”. O mesmo se pode falar, por exemplo, de sua análise do niilismo, já que nosso tempo ainda é niilista. Então, eu posso responder que ele permanece atual quando ele acusa de serem decadentes os valores básicos de nossa cultura. Mas, obviamente, a contemporaneidade apresenta novas questões, que só podem ser resolvidas por nós e pelos homens do futuro. E é por isso que considero a questão importante. Para além de usar Nietzsche como alguém que compreendeu as raízes de nosso tempo, nós nos devemos perguntar: como podemos usá-lo para pensar essas novas questões? Eu respondo que podemos usá-lo – e, a princípio, qualquer outro grande pensador – através de uma nova concepção do que seja fazer “história” ou do que seja fazer um “comentário”. E digo “nova concepção” para nós, acadêmicos brasileiros. Penso que hoje nós chegamos a um ponto histórico em que estão dadas as condições para pensarmos, no sentido rigoroso do termo ou, ao menos, para que usemos a história para a vida – como, aliás, já defendia o jovem Nietzsche. E como ele mesmo ensinou, filosofia é um impulso de criação de mundos e nós podemos, e eu diria até que devemos, criar novos mundos.


Leia mais...

A IHU On-Line já publicou outras entrevistas sobre Friedrich Nietzsche. Confira:

* Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo. Edição 127 da revista IHU On-Line, de 13-12-2004

* Nietzsche, Foucault e a loucura como experiência originária. Entrevista com Roberto Machado, edição 203 da revista IHU On-Line, de 06-11-2006

* O pensamento de Friedrich Nietzsche. Edição 15 dos Cadernos IHU Ideias

* Uma filosofia da alteridade radical. Entrevista com Monica Cragnolini, edição 377 da revista IHU On-Line, de 14-10-2008

* Lutero, pai da modernidade, visto por Nietzsche. Entrevista com Márcio Gimenez De Paula, publicada na edição 280 da revista IHU On-Line, de 03-11-2008

* Henrique Cláudio de Lima Vaz. Um sistema em resposta ao niilismo ético. Edição 374 da revista IHU On-Line, de 26-09-2011

* Niilismo e relativismo de valores. Mercadejo etico ou via da emancipacao e da salvação? Edição 354 da Revista IHU On-Line, de 20-12-2010

* A política em tempos de niilismo ético. Edição 197 da revista IHU On-Line, de 25-09-2006

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