Edição 388 | 09 Abril 2012

Os desafios do Direito no século XXI

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Patrícia Fachin

“O desafio do Direito, hoje, é repensar os critérios da punição, ou seja, encontrar outros princípios e objetivos para punir”, assinala Álvaro Pires, da Universidade de Ottawa

O Direito precisa repensar os conceitos e princípios que determinam as penas. É com essa proposta que o professor Álvaro Pires inicia a reflexão de que a severidade das penas não tem resolvido as questões de violência e os crimes praticados na sociedade. “Temos de observar quais são as ideias que o sistema criminal moderno valoriza e que constituem um obstáculo cognitivo da sua própria evolução. Em outras palavras, quais são as ideias que ele considera ainda boas, mas que, na verdade, o impedem de se transformar qualitativamente e se adaptar para o novo milênio”, sugere em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line.

Segundo Pires, os princípios que determinam a atuação do Direito Penal “foram construídos nos séculos XI, XII e XIII. Quer dizer, são anteriores às ciências humanas. Portanto, o Direito Penal está bloqueado em aspectos fundamentais. Quando o Direito revê a possibilidade de aumentar uma pena, ele valoriza concepções dos séculos XI, XII e XIII, que repetitivamente fracassaram”, assinala. Ele esclarece que a falta de eficiência do Direito Penal se deve ao fato de ele pensar as penas com o princípio de causa e efeito, numa época em que as pessoas deixaram de agir por essa lógica e priorizam o risco. “A racionalidade de risco entrou no ocidente para nos dar maior liberdade cognitiva, isto é, nos libera da relação custo/benefício. O custo e o benefício final estão longe e fora da decisão do indivíduo”, enfatiza. E explica: “O que o indivíduo passa a avaliar é a capacidade que terá de realizar algo com sucesso, e não o custo desse processo. Enquanto isso, o Direito Penal continua partindo do princípio de que as pessoas só pensam em custo e benefício”.
Álvaro Pires é doutor em Criminologia pela Université de Montréal. Atualmente leciona no curso de Ciências Sociais da Universidade de Ottawa, no Canadá.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Quais os principais desafios do direito, hoje, em relação ao debate sobre a descriminalização?

Álvaro Pires –
O grande desafio do Direito não se encontra no debate sobre a descriminalização. Tanto as discussões acerca da descriminalização como aquelas acerca da desjudicialização parecem, hoje em dia, mais uma maneira de desviar a atenção de temas fundamentais. Então, o grande desafio do Direito Criminal está na sua capacidade ou incapacidade de moldar a maneira de pensar e de administrar as penalidades. É como se o Direito tivesse de aprender outra maneira de conceitualizar e de pensar a punição, com base em outros princípios, outros objetivos etc.

Atualmente boa parte do pensamento crítico, tanto em Sociologia como em Direito, está atrelada à ideia da descriminalização, ou seja, defende-se que é necessário descriminalizar determinados comportamentos. Enquanto isso, aumentam-se as penas e os crimes que levam a maior parte das pessoas para a prisão. Quer dizer, ainda não conseguimos mudar a maneira de pensar. Então, o grande desafio do Direito Penal é repensar o problema do direito de punir.


IHU On-Line Como as penas deveriam ser pensadas?

Álvaro Pires –
Há algumas pistas em relação a isso. Temos de observar quais são as ideias que o sistema criminal moderno valoriza e que constituem um obstáculo cognitivo da sua própria evolução. Em outras palavras, quais são as ideias que ele considera ainda boas, mas que, na verdade, o impedem de se transformar qualitativamente e de se adaptar para o novo milênio.
As ideias do Direito Penal que vigoram atualmente foram construídas no século XI, XII e XIII. Quer dizer, são anteriores às ciências humanas. Portanto, o Direito Penal está bloqueado em aspectos fundamentais. Quando o Direito revê a possibilidade de aumentar uma pena, ele valoriza as concepções dos séculos XI, XII e XIII, que repetitivamente fracassaram. Então, enquanto ele não transformar a atual maneira de pensar, enquanto não pensar os objetivos da pena de outra maneira, e compreender o conceito de pena de outra forma, continuará andando em círculos, quer dizer, repetindo sistematicamente os erros.


IHU On-Line – Como descreve o processo de criação de uma lei penal, o processo de descriminalização e de reforma do estilo penal?

Álvaro Pires –
Pode se dizer que esse processo é ainda, em regra geral, tanto no Brasil como em outros países, muito errático. Às vezes, ele é conduzido seriamente, porém, poucas vezes. Muitíssimas vezes, ele é um processo extremamente banal e não rigoroso.
A professora Maria Machado, da Fundação Getúlio Vargas, desenvolveu uma pesquisa quantitativa no sentido de repensar o Direito. Percebeu-se que, durante as três últimas legislaturas brasileiras, o número de pedidos de modificação de leis criminais extremamente mal fundamentados e mal justificados foi enorme. Isso resulta numa decepção geral e num problema repetitivo na prática legislativa em matéria criminal.
Outro problema é que a palavra "lei" é também um termo muito condensado. Sempre quando pensamos em criar uma lei, temos de nos perguntar: “O que estamos querendo dizer com ela?”. Pois, ao criá-la, podemos incluir na legislação um novo comportamento como um crime, por exemplo, que antes não era considerado como tal.
As leis do Direito Penal tentam criar novas penas, modificar outras, ou até aumentá-las e reduzi-las. Na verdade, a redução de penas é uma operação raríssima dentro do Direito Penal. Normalmente as operações são para aumentar as penas, para mudar regras e processos. Em função disso, é muito difícil fazer uma avaliação global dessas questões.
A tendência mais velha, mais inútil e o erro mais repetitivo do Direito Criminal é querer aumentar as penas para resolver os problemas reais ou fictícios que ele observa. Mas esse processo acontece por causa da persuasão. Por exemplo, normalmente quando um deputado pede para aumentar uma lei, ele pode sustentar o seguinte raciocínio: aumentando essa lei, quero reduzir o número de crimes. É muito difícil dizer quando um deputado que age dessa forma acredita realmente no que ele está falando; ou se age dessa forma porque sabe que o sistema tem chance de aceitar os argumentos.
O problema é que a teoria da persuasão não analisa suas motivações. Além do mais, muitos dos profissionais que criam as leis não têm conhecimento para elaborá-las e não estão equipados para poder fazer esse tipo de reflexão. É como se você pedisse para alguém que não conhece matemática resolver uma equação complexa.
Há três leis sociológicas utilizadas para descrever a tendência do jurista e do político em Direito Criminal. A primeira é a seguinte: quando há uma percepção, errada ou correta, de que a criminalidade aumenta, há usualmente um aumento de pena na repressão. Esse reflexo de pedir maior repressão acontece com mais frequência desde o século XVI. E apesar do fracasso repetitivo dessa experiência, continua-se usando e pedindo o mesmo “remédio”.
A segunda lei diz respeito ao pedido de abolição de uma pena mais severa da legislação. Por exemplo, se alguém pedir a abolição da pena de morte, vai querer que ela seja substituída por outra pena, que seja considerada mais ou menos igualmente severa. Então, ao abolir a pena de morte, será criada a pena perpétua, porque se quer ter a impressão de que, se não for posto nada no lugar daquela pena, estará se desvalorizando aquele bem jurídico protegido.
Uma terceira consiste no seguinte: quando um crime mais grave tem uma pena menos severa do que um crime menos grave, pede-se para aumentar a pena menos severa do crime mais grave, em vez de diminuir a outra pena. Então, o Direito está sempre fazendo uma escalada para cima, aumentando as penas.
Percebe-se, então, que, quando há uma percepção de que a criminalidade aumenta, pedem-se aumento ou maior certeza nas penas. Isso cria uma espécie de círculo vicioso, pois cada vez que se tem a percepção de que a criminalidade aumenta, aumentam-se também as penas para solucionar o problema da criminalidade, independentemente da eficiência do resultado. Cada vez que não há o resultado esperado, pensa-se em uma justificação para explicar a ausência desse resultado esperado. Mas essa justificação nunca coloca em causa a crença fundamental de que, aumentando a certeza das penas, será possível reduzir um crime.


IHU On-Line – Como o conceito de sociedade do risco contribui para o debate sobre a descriminalização em nossos dias? Como se dá o processo de concepção do risco como racionalidade?

Álvaro Pires –
Você tocou em um problema enorme. Em relação ao risco, o problema é que o Direito Penal não mudou essencialmente a concepção. O Direito Penal responde sempre da mesma maneira. A racionalidade do risco não é a racionalidade da relação custo/benefício.

Acredita-se que, da maneira que o Direito Penal pensou as penas, as pessoas farão uma reflexão no momento de agir e tomarão decisões em função do cálculo de custo e benefício. Se o custo for maior do que o benefício, as pessoas irão desistir de determinado comportamento, produzindo um efeito de dissuasão. Por outro lado, nem sempre agimos levando em conta a racionalidade. Agimos de acordo com as emoções. Então, por exemplo, uma pessoa que está em um estado emocional elevado e foi provocada excessivamente, poderá reagir de determinada maneira, sem levar em conta a ideia de severidade de uma pena.
Portanto, o Direito Penal se fundamenta na ideia de que o indivíduo raciocina em termos de custo e benefício. Se o custo for maior do que o benefício, a pessoa não age. Pouquíssimas pessoas irão agir de maneira a contrariar esses custos. A partir disso, desenvolveu-se a crença, dentro do Direito Penal, de que a civilidade e a certeza da pena necessariamente reduziriam o número de comportamentos inadequados.
Existe também a racionalidade de risco que neutraliza a racionalidade do custo/benefício. Um exemplo é a construção de usinas nucleares. Não se constrói uma usina nuclear considerando o custo e benefício, porque, se ela explodir, o custo será muito elevado. A racionalidade de risco entrou no Ocidente para nos dar maior liberdade cognitiva, isto é, nos libera do custo/benefício. O custo e o benefício final estão longe e fora da decisão do indivíduo.

O que o indivíduo passa a avaliar é a capacidade que terá de realizar algo com sucesso, e não o custo desse processo. Enquanto isso, o Direito Penal continua partindo do princípio de que as pessoas só pensam em custo e benefício. Então, cada vez que alguma situação não dá certo, o Direito Penal tenta aumentar o custo (a pena), porque pensa que, ao aumentá-lo, vai fazer as pessoas pararem de agir de forma inadequada. A diferença é que as pessoas não estão pensando nessa lógica. Por isso o aumento de penas para impedir os crimes nunca dá resultado.
Atualmente os crimes de risco estão sendo resolvidos com o aumento das penas. Então, o sistema cria problemas enormes para si mesmo: fica completamente selvagem. Na verdade, ele recua cada vez mais.


IHU On-Line – Quanto à pena de morte, à pena perpétua e todas as penas extremamente longas de prisão (10, 15, 20, 25, 30 anos...), como o senhor vê o paradoxo dos grupos que defendem os direitos humanos e que estão, agora, na frente dessas reivindicações para maior repressão?

Álvaro Pires –
Infelizmente, os movimentos de direitos humanos entraram dentro dessa racionalidade penal mais primitiva, ou seja, dentro dessa maneira de pensar as penas. Eles aceitaram essa racionalidade oriunda do século XVIII e XIX. Então, raciocinam da seguinte forma: Quanto maior for o bem jurídico protegido, maior deve ser a pena. Essa maneira de pensar os direitos humanos é extremamente paradoxal porque, para poder valorizar os direitos humanos abstratos, atacam-se fundamentalmente os direitos humanos concretos. Então, determina-se que uma pessoa ficará 10, 20, 30 anos em uma prisão, em nome de um direito fundamental de liberdade, por exemplo. Entra-se numa espécie de circulo vicioso no sentido de que quanto mais se valoriza um valor abstrato, mais tem que se transgredi-lo concretamente.
Essa maneira de pensar está enraizada no Direito Penal há muito tempo: ela já está presente na teoria da pena radical, que encontramos, por exemplo, em São Tomás de Aquino. Quando a Igreja começou a fazer um esforço para legitimar a pena de morte, apareceu uma espécie de paradoxo: de um lado havia a valorização da vida de maneira absoluta, defendida pelo princípio “não matarás”, mas, de outro lado, aparece a autorização para matar em certas circunstâncias, ou seja, abre-se uma exceção para matar. Isso cria um paradoxo no sentido de quanto mais uma sociedade valoriza um valor, mais terá que se aproximar da transgressão desse valor quando ele for violado. Então, quando uma pessoa mata, ela é punida com a própria vida. Essa é a maneira utilizada para mostrar que a vida é importante. Surge, então, o problema das penas radicais. O Código Penal Brasileiro permite penas de 30 anos e os defensores dos direitos humanos questionam o tempo dessas penas. Entramos numa lógica acionista monetária. Quanto mais um valor vale para nós, mas queremos transgredi-lo para mostrar que ele é válido.

A pena de morte foi introduzida com a ajuda dos intelectuais da Igreja Católica que sustentavam o princípio absoluto “não matarás”. O paradoxo é interessante porque a Igreja nunca disse que esse era um princípio absoluto. Pelo contrário, ela afirmou que "não matarás" é um princípio absoluto; mas quando você mata, eu estou autorizado a matá-lo. O que era absoluto se tornou relativo. Esse é um tema longo e precisaria de mais tempo para poder mostrar como criamos esse paradoxo que persiste até hoje na nossa cultura. O que é triste é que uma parte dos direitos humanos progressistas, para valorizar o bem jurídico que protegem, pedem sempre mais penas.


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