Edição 388 | 09 Abril 2012

Quem se perdoa pode conseguir perdoar o outro

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Márcia Junges

Perdão total e perene é algo inconcebível, aponta o psicanalista José Luís Caon. Já o autoperdão é uma invenção a que podemos nos dedicar

“Não é preciso ter sido educado no fundamentalismo católico apostólico romano para se saber o que são a vivência e a experiência da culpa e do perdão”, pondera o psicanalista José Luís Caon na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, o “autoperdão é uma invenção a que cada um pode se dedicar”. E completa: “Quem consegue se perdoar pode conseguir perdoar o outro, sem depender de um catecismo de moral regional ou universal”. Contudo, há ressalvas sobre a abrangência do perdão: “Parece que somos capazes de alguns atos de perdão, para conosco mesmo e para com os outros, mas, ‘o perdão’, como um ato total e perene, isso me parece inconcebível”.

José Luís Caon é graduado em Letras, Filosofia e Psicologia, especialista em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Doutorou-se em Psicopatologia pela Universidade Denis Diderot, Paris VII, na França. Lecionou psicopatologia no Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS até 2003. Atualmente, dedica-se à Psicanálise nos âmbitos da clínica, ensino, supervisão, pesquisa e estudos.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que quer dizer a metapsicologia do perdão? O que ela envolve?

José Luís Caon –
Essa expressão – “metapsicologia do perdão” – eu a inventei a partir de leituras comparativas de duas obras de Sófocles e de duas obras de Freud : “Édipo Tirano” e “Édipo em Colono” de Sófocles e “O chiste e suas relações com o inconsciente” (Freud, 1905c) e “Sobre o humor” (Freud, 1927d). O estudo dessas obras e minhas vivências e experiência de vida, também como “psicanalisante”, psicanalista e pesquisador psicanalítico, me renderam alguns trabalhos. Um deles que está publicado na Revista Veritas, vol. 43, n. 1, março de 1998, p. 81-90, justamente com o título “Metapsicologia do perdão”.
Não é preciso ter sido educado no fundamentalismo católico apostólico romano para se saber o que são a vivência e a experiência da culpa e do perdão. Sófocles aproveita o mito do Édipo para criar um drama célebre, “Édipo Tirano” e, em seguida, extrai dele o ensinamento que aparece em “Édipo em Colono”, onde Sófocles faz Édipo aprender a reconciliação, o perdão a si mesmo e, assim, encontrar a paz mental e terminar seus dias, ficando de bem com sua história pessoal muito original. Sófocles faz Édipo dar a volta por cima: parricida e incestuoso, Édipo, duas vezes criminoso, vê que não passava de instrumento e vítima de um destino cujo sentido pode ser outro, se lido doutra maneira possível, maneira essa descoberta por Édipo, como se vê Sófocles nos mostrando isso em “Édipo em Colono”. Édipo consegue perdoar-se a si mesmo. Pelo menos três vezes, Sófocles nos indica em “Édipo em Colono” essa reviravolta na história de vida de Édipo.

1) No verso 273, ou p. 80, na tradução de Paul Mazon, encontramos: “... c’est sans rien savoir que j’en suis venu où j’en suis venu” (É sem saber que eu cheguei aonde cheguei). 2) Nos versos 521-4, ou p. 100, em Paul Mazon, “J’ai subi, étranger, j’ai subi le crime, bien contre mon gré, les dieux m’en soient témoins. Rien dans tout cela ne fût volontaire” (Eu padeci, estrangeiro, eu padeci o crime, bem contra minha vontade. Os deuses me são testemunhas. Nada daquilo foi voluntário). 3) Versos 960-4, ou p. 118, em Paulo Mazon: “Ta bouche déverse sur nous meurtres, mariages, malheurs de toute sorte, malheurs que j’ai subis, hélas! Bien malgré moi, mais tel était le bon plaisir des dieux...” (Tua boca [Creonte], esparrama sobre mim e minha gente assassinatos, casamentos incestuosos, infelicidades de todo o tipo, infelicidades que eu padecia, ai de mim! Mas tal era a predestinação que agradava aos deuses).


Ferida narcísica

Igualmente Freud, pela via do processo do humor, auto-humor, mostra que o eu não é somente castigado pelo supereu (tradição), mas, também aprovado e encorajado nas iniciativas e rebeldias. Não basta apropriar-se daquilo que herdamos dos pais (tradição), como Freud, apoiando-se em Goethe , nos repete; eles deviam dizer que é necessário que também abandonemos radical e definitivamente aquilo que não nos foi dado.
Por exemplo, observemos a criancinha que é levada diariamente para a escola infantil pelos pais e depois lá buscada. Ela aprende a dramatizar essas vivências e experiências de separação. A criança inventa jogos dramáticos. Por exemplo, o jogo de atirar longe um objeto para depois ir buscá-lo e triunfar gozosamente na hora de encontrá-lo. Nesse jogo, a criança, do “passivamento” que lhe permite suportar a separação, passa à ativação da separação pela via da dramatização simbólica. Onde ela era objeto paciente e padecente, agora ela é sujeito agente e triunfante. Nessa transformação, ela se “perdoa” pela incapacidade inerente à vida de criança e, embora num processo dramático, mas simbólico, ela transforma o padecimento da separação em jogo aventuroso de separações. Torna o percalço em pedra fundamental de início de aventura. A culpa mais parece que é, ao mesmo tempo, uma gangrena psíquica do perdão e da responsabilidade pessoais. E pode servir para apontar a ferida narcísica que se deteriorou em pústulas. Limpar o pus pode permitir que a ferida cicatrize, mas a limpeza somente não é suficiente se a natureza (a psique) não se dispuser ao processo da verdadeira cicatrização.

Aquilo que Sófocles ensina pelo “Édipo em Colono”, Freud ensina pela abordagem ao chiste e ao humor. De fato, o povo em sua sabedoria nos diz: “rir é o melhor remédio”. Então, aderir a “risadarias” curaria? Não tomemos ingenuamente o modelo explicativo do poeta Sófocles e do arquipesquisador psicanalítico Freud como o edifício mesmo.


Autoperdão

Podemos aceitar igualmente que a insubordinação e mal-estar de Sófocles perante o destino se alinha à insubordinação e mal-estar de Freud perante a civilização, especialmente ocidental. Aquilo que para Sófocles aparece em “Édipo Tirano”, como culpa, mal-estar, padecimentos psíquicos sem sentido, em “Édipo em Colono” aparece como autoperdão, reconciliação consigo mesmo e com a própria história e, por que não, uma certa felicidade psíquica. Isso dá sentido a esses saberes, a psicanálise é um, que apostam que existe vida antes da morte. Aquilo que para Freud aparece em “O descontente na cilivização” (ou cultura) (Freud, 1930a), como culpa, mal-estar, padecimentos psíquicos sem sentido, em “Humor” (1927) aparece como autoperdão, auto-humor, reconciliação consigo mesmo e com a própria história. É divertido ouvir os descontentes pós-pós-modernos reunidos em happy hours, que ainda se chamam de congressos, clamando contra os infortúnios da civilização/cultura, ao redor de mesas bem servidas com os melhores pastos e as melhores beberagens. O destino para Sófocles, a civilização para Freud, são nossa tradição: devemos nos apropriar daquilo que herdamos, responsabilizando-nos por essa herança. Não devemos esperar encontrar aquilo que não nos foi dado por herança. Mas podemos inventar! O autoperdão é uma invenção a que cada um pode se dedicar.

De fato, podemos tornar o percalço em pedra angular e fundamento para nossas partidas originais e diferenciadoras. Vimos que o “galo”, tema de vergonha, pôde se tornar tema de orgulho de uma comunidade. Aprendemos que o “sabugo”, objeto higiênico primitivo, pode tornar-se de assunto vergonhoso em tema de orgulho. E assim galo e sabugo são erigidos em monumento. Uma mesma cicatriz pode ser lida como sinal de vergonha ou como sinal de orgulho. Mas o pus da gangrena será sempre pus. Pode ser afastado, mas a ferida continua...

A “metapsicologia do perdão” é uma contribuição da pesquisa psicanalítica em que a culpa, esse mal menor (isto é, menos doloroso), é substituído pela aceitação da ferida no Narciso da gente, mal maior (isto é, mais doloroso), cuja cicatriz mortifica a prepotência, a onipotência, a vaidade, enfim, o nosso Narciso: não éramos mesmo lá aquela coisa para termos podido evitar aquilo que só aceitaríamos como culpa.


IHU On-Line – Qual é a importância do perdão dentro das relações humanas?

José Luís Caon –
Essa pergunta é interessante. Mas as relações humanas não são objeto da pesquisa psicanalítica: o objeto da pesquisa psicanalítica é o inconsciente, seja na concepção de Freud, seja na concepção de Lacan , que é uma revolução a partir da revolução de Freud. Quando um psicanalista fala das relações humanas para o público, ele o faz como um cidadão que se apoia nos conhecimentos da filosofia, da antropologia, da psicologia, da pedagogia, da sociologia, etc.


IHU On-Line – Como podemos compreender a universalidade da importância do perdão e a dificuldade em concedê-lo?

José Luís Caon –
Quem consegue se perdoar pode conseguir perdoar o outro, sem depender de um catecismo de moral regional ou universal.


IHU On-Line – O que o perdão pode ensinar à humanidade em termos de tolerância e convivialidade em nosso mundo atualmente?

José Luís Caon –
O perdão, se for realmente perdão (autoperdão), e não um entusiasmo compartido e “intersugestionado”, é ele mesmo muito mais fruto de convívio e tolerância do que causa de convívios e tolerância. Se a tradição, o que herdamos dos pais, é convívio e tolerância, perdoar-se é aceitar, relançar essa tradição com alguma participação diferenciadora, isto é, tirar algum proveito da tradição. Uma tradição de intolerância e “inconvívios” pode ser considerada tradição? Não seria antes estagnação e necrose? O perdoar-se, como tal, poderia então aprofundar e alargar os convívios e a tolerância. Nesse contexto de tolerância e convivialidade, as relações humanas serão necessariamente diferentes das relações humanas num contexto de intolerância e hostilidade. O estar bem consigo mesmo proporciona que boas relações humanas sejam bem aproveitadas quando existem. Mas poderá proporcionar que más relações humanas sejam aproveitas quando as se têm? Parece que somos capazes de alguns atos de perdão, para conosco mesmo e para com os outros, mas “o perdão”, como um ato total e perene, isso me parece inconcebível.


IHU On-Line – Perdoar não significa esquecer. Como o sujeito contemporâneo pode lidar com esse binômio para que não haja a preponderância do rancor ou do esquecimento?

José Luís Caon –
Esquecer é um aspecto do viver, mas o “desesquecer” é também um aspecto do viver. O esquecer está para o “desesquecer” como o côncavo está para o convexo. Esquecer mal e “desesquecer” mal repercutem em muitos padecimentos, como os rancores calados, os ressentimento secretos, e todas essas vivências e experiências dolorosas para as quais até mesmo as palavras mais sentidas dos poetas e dos falantes mais facundiosos só raramente conseguem nos amparar. O esquecer e o “desesquecer”, como muitos sugerem, podem ser mostrados a partir do desnudamento. Como sempre andamos nus debaixo da roupa, por mais ou menos ocultadora que ela seja, ela também revela menos ou mais a nudez. A concepção de nudez para os índios que andam totalmente pelados não pode ser a concepção de nudez que nós da “civilização” temos. Seria um desafio muito curioso um grupo de dançarinas totalmente nuas realizar um certame de striptease! Ora, as índias que andam totalmente peladas devem saber fazer isso! Nós, esquecendo, “desesquecemos” e, “desesquecendo”, esquecemos. Este é um método que ultimamente tem sido muito fecundo em diversos ramos de pesquisa de ponta, especialmente na psicanálise, a psychoanalytische Forschung de Freud ou a recherche psychanalytique de Lacan. Pesquisa psicanalítica não é uma granada que o terrorista joga no pátio dos psicanalistas brasileiros; é uma bússola que permite achar o caminho em referência a um norte.


IHU On-Line – Em geral, perdoar tem uma fundamentação religiosa para as pessoas. Como podemos compreender o mecanismo do perdão naquele que não tem uma religião, uma crença na transcendência?

José Luís Caon –
Perante as pesquisas teológicas, podemos guardar silêncio essencial sem termos que professar ateísmo.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

José Luís Caon –
Sim. Há pouco mais de 100 anos, a civilização ocidental inventou a situação psicanalítica de tratamentos. A confissão católica, a direção espiritual, os aconselhamentos, as consultas médicas, as terapias de apoio, as supervisões, os exames orais, os tribunais jurídicos, embora se diga que nesses se privilegia o foro externo, neles também, como nos outros procedimentos citados, se lida com aquilo que ressoa na psique das pessoas: a angústia. A angústia das pessoas é moeda que transita por todos esses espaços. Dostoievski  faz um personagem dizer mais ou menos o seguinte: há coisas que somente contamos a um grande amigo na confiança de que ele não nos traia; há coisas que tememos contar até para nós mesmos; há coisas que nem para nós mesmos somos capazes de contar. A escuta psicanalítica escuta preponderantemente certos indícios que impedem ao “psicanalisante” ser capaz de soltar a palavra dele mesmo. Até o presente, somente a clínica psicanalítica é capaz desse procedimento. E ela começou com Freud. E continua, sem triunfar, ao lado da religião que sempre (?) triunfa. A psicanálise não triunfa, apenas sobrevive, e sobreviverá enquanto houver pelo menos um psicanalisante (o original e verdadeiro praticante da psicanálise).

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