Edição 388 | 09 Abril 2012

O imperativo do perdão

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Márcia Junges

Conceder o perdão é fundamental para viver de forma menos angustiada, constata o psicanalista Abrão Slavutsky. Apesar de ser difícil superar a agressividade oriunda da maldade, perdoar é um imperativo para sermos pessoas melhores

O perdão jamais exclui a justiça e é derivado da justiça divina ou humana. Contudo, “a justiça que não considera a possibilidade do perdão é injusta e má”, assinala o psicanalista Abrão Slavutsky em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Quem não pode se perdoar e perdoar as injustiças cometidas ou sofridas fica ressentido, magoado, preso a um passado que não passa. O ressentido se torna guarda de um cemitério de ações passadas que não pode superar”. O resultado são sentimentos vingativos. E complementa: “perdoar é suportar a ferida narcisista que implica aceitar que todos os seres humanos são, às vezes, piores do que admitimos, mas não se pode esquecer que, às vezes, também somos bem melhores”. Perdoar e sermos perdoados nos tornam seres humanos melhores.

Abrão Slavutzky é psicanalista e médico psiquiatra com formação em Buenos Aires. Graduou-se em medicina em 1971, na Fundação Católica de Medicina do Rio Grande do Sul. Desde 2001, é colaborador do jornal Zero Hora e de diversas revistas. Entre outros, é um dos autores e organizadores de Seria trágico... se não fosse cômico – humor e psicanálise (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), Quem pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Unisinos, 2009) e Psicanálise e cultura (Rio de Janeiro: Vozes, 1983). Alguns dos livros que organizou são O dever da memória – o levante do gueto de Varsóvia (Porto Alegre: AGE, 2003) e A paixão de ser – depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que relações podem ser estabelecidas entre a fé, o processo de perdão e a superação do mal?

Abrão Slavutsky –
O perdão não é diretamente um tema psicanalítico, a não ser pelas suas relações com a melancolia, o supereu, a culpa, a questão do nome do Pai, entre outros. Seria conveniente pensar, primeiramente, o perdão a si próprio quanto a falhas e fracassos que todos temos. Retomarei essa questão mais adiante bem como a interessante etimologia da palavra perdão. Agora, vamos à pergunta sobre algumas relações entre perdão, fé e o mal.

O perdão de Deus aos homens, ou a capacidade de perdoar ao outro, é essencial na fé. O famoso Pai-Nosso, talvez a oração mais importante do cristianismo, que teria sido ensinada pelo próprio Jesus Cristo, considera o perdão como um meio de estabelecer a relação entre Deus e os homens. “Perdoa nossas ofensas como nós perdoamos aos que nos ofendem”. Já no Velho Testamento, o tema do perdão está presente em Levítico, 16, quando Moisés determina um dia especial para a purificação dos pecados, conhecido como Yom Kippur, Dia do Perdão.

Por sua vez, a questão essencial do mal é pensada pela religião como uma questão externa. A serpente induz Eva ao mal e ao pecado e segue, por exemplo, na bela parábola do joio e do trigo do Novo Testamento. O mal como vindo do inimigo, do exterior, quando, na verdade, o mal é externo e interno, integra a condição humana. Enfim, as palavras perdão, fé e mal se relacionam com a religião, a justiça, e com o conjunto da sociedade. Porque o perdão é derivado da justiça divina ou humana, mas perdão nunca exclui a justiça. Por outro lado, a justiça que não considera a possibilidade do perdão é injusta e má.
 

IHU On-Line – Qual é a maior dificuldade em perdoar?

Abrão Slavutsky –
Não sei se seria uma só dificuldade. Na verdade, são várias. A primeira é o ódio para com quem cometeu uma maldade. Superar a agressividade gerada pela maldade, por um ato injusto, não é muito fácil. Perdoar implica suportar não só a falha do outro, mas a de cada um, pois todos nós falhamos. Há perdões mais fáceis de se dar, especialmente com o passar do tempo; já outros podem ser impossíveis. É, no entanto, sempre um desafio. Um exemplo clínico: perdoar entendendo as falhas, os erros de nossos pais na educação, é indispensável para se reconciliar com eles e, em especial, consigo mesmo. Finalmente, perdoar é suportar a ferida narcisista que implica aceitar que todos os seres humanos são, às vezes, piores do que admitimos, mas não se pode esquecer que, às vezes, também somos bem melhores.


IHU On-Line – Como podemos compreender a importância do perdão para a transcendência do ressentimento?

Abrão Slavutsky –
O ressentimento é sofrimento, é uma das maiores mortificações de quem não pode perdoar e se perdoar. Quando escrevi Quem pensas tu que eu sou?, citei o escritor húngaro Sándor Márai, que na novela As brasas trata justamente do ressentimento. Novela impressionante, que dizem ser autobiográfica, na qual relata a história de um triângulo amoroso. Henrick, um general aposentado, estava ressentido, pois fora duplamente traído pela esposa e seu amigo inseparável de toda a vida, Konrad. Esses dois últimos se apaixonam e vivem uma relação clandestina que, ao ser descoberta, cria um terremoto psicológico. O amigo vai embora da cidade sem se despedir do casal, e Henrick nunca mais dirige sua palavra à esposa, pois esperava por parte dela ao menos um pedido de desculpas. O tempo passa, os amigos envelhecem e, passados 41 anos da separação, o amigo Konrad o procura. Acabam por combinar uma janta, na qual comem em silêncio; ao terminarem, Henrick fala durante horas num tom de queixa, desabafa suas mágoas.
O general, ao final do livro, diz: “Há algo pior que a morte e qualquer sofrimento, é a perda de amor-próprio ... quando uma ou mais pessoas nos ferem em nosso amor-próprio, que é a nossa dignidade de homem, a ferida é tão profunda que nem a morte consegue pôr fim a esse tormento... o amor-próprio é o que há de mais profundo na vida”. O general não pôde perdoar o amigo, nem a esposa, e passou a vida ressentido, sofrendo pela grave ferida narcisista. Suas queixas, na verdade, não eram só contra a esposa e o amigo, mas se vinculam também à sua vida infantil, quando ocorreu uma primeira traição, que é a da mãe, por quem a criança era apaixonada e um dia descobriu que ela amava a outro. Todo ser humano, toda criança esteve ligado à sua mãe, da qual foi separado, gerando queixas, sentimento de ser vítima, de ressentimento. O general do livro As brasas teve reatualizado seu drama infantil, pois sua esposa e seu grande amigo o traíram. Perdoar uma traição é difícil e, às vezes, como nesse caso, é impossível. Na verdade, todos nós fomos traídos e traímos, se não o cônjuge, alguma pessoa que esperava mais de nós, por exemplo. Há os que não conseguimos perdoar e há os que não nos perdoam, tudo faz parte da comédia humana, diria Balzac . Por fim, cuidado com os triângulos amorosos, nem sempre se tem o perdão!


IHU On-Line – Em que medida o perdão restitui ao ser humano a honra, a liberdade, e lhe devolve a dignidade?

Abrão Slavutsky –
Que me perdoem as demais perguntas, mas essa talvez seja a melhor, ademais traz a continuação do que vinha dizendo na resposta anterior, em especial quanto à liberdade e à dignidade. Começo pela palavra liberdade, mas aqui não tanto à questão das liberdades em geral, na política ou religiosa (vejam a questão do cruxifixo no judiciário, tão debatido hoje na mídia). Aqui me refiro à liberdade psicológica que gera uma leveza na arte de viver e que faz toda a diferença. Quem não pode se perdoar e perdoar as injustiças cometidas ou sofridas fica ressentido, magoado, preso a um passado que não passa. O ressentido se torna guarda de um cemitério de ações passadas que não pode superar, logo, fica preso. Forças libidinais se mantêm absorvidas pelo passado, e o presente fica empobrecido. Livrar-se do peso das traições é um alívio, é recuperar a condição de voar e criar, de não se adaptar à vida como ela é. Pelo contrário, é transformar, é transcender. Parêntesis – a cultura oriental tem no tema de transcendência uma saída à realidade traumática. Quem não perdoa, não transcende, está apegado ao trauma psíquico do passado. Finalmente uma palavra sobre a honra: Samuel Johnson , no seu dicionário famoso do século XVIII, definia honra como “nobreza de alma e um desprezo à maldade”. Logo, sejamos honrados!


IHU On-Line – Qual é a importância para quem dá e para quem recebe o perdão?

Abrão Slavutsky –
Conto uma história pessoal. Um dia discuti com meu pai, pois ele era diabético e se cuidava mal da sua doença. Comia frutas escondido, às vezes enganava até os exames laboratoriais, pois alguns dias antes ele parava de comer as frutas e os resultados eram todos normais. Então, fiquei bravo e disse palavras duras como se ele fosse uma criança. No outro dia, ao encontrá-lo, pedi perdão através de um pedido de desculpas pela forma como havia falado com ele. Qual não foi minha surpresa ao escutar dele: “Tu não tens que me pedir desculpas, logo, eu não tenho que te perdoar, pois tudo que falaste foi para meu bem”. Não preciso dizer que fiquei espantado e feliz. Naquele dia aprendi, mais uma vez, a arte da tolerância, da capacidade de perdoar quando se perde a cabeça. Ser perdoado e perdoar nos fazem crescer, nos fazem seres humanos melhores.


IHU On-Line – Como é a concepção judaica de perdão? Em que ela difere da concepção do cristianismo?

Abrão Slavutsky –
Numa pergunta anterior, fiz referência ao Yom Kippur, Dia do Perdão, data mais importante da religião judaica, do povo judeu. Desde criança, sei que esse dia é o mais importante do ano, dia que se vai à sinagoga, dia sagrado, dia do jejum. No décimo dia do Ano Novo, no início de um novo ciclo, se deve perdoar e obter perdão, nos pecados contra o Todo Poderoso, não assim contra o semelhante. Recordo que o dia está vinculado à quebra das tábuas da lei por Moisés ao ver o bezerro de ouro feito pelo seu povo. A história pode ser recordada no livro do Êxodo, em que Moisés pede novas tábuas a Deus e pede perdão pela sua impulsividade. Tendo recebido o perdão divino, decide instituir aquele dia como o Dia do Perdão, com a promessa de não mais cometer as transgressões. Assim buscar-se-ia a purificação para o Novo Ano. Essa noção de perdão é um importante valor humano, uma das raízes das quais nasceu o cristianismo. Em alguma medida, afirma-se que Cristo – que nasceu judeu e morreu judeu – teria dado ao perdão e ao amor um status mais elevado que o judaísmo. “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus, 5:39) é uma frase muito conhecida, mas tem uma conotação talvez masoquista. Aliás, como em todas as frases bíblicas, é passível dar as mais variadas interpretações. Por exemplo, um doutor em teologia me contou que há estudos relacionando a formação de Jesus aos ensinamentos de Hilel, o sábios dos sábios, uma das maiores referências do Talmud , obra basilar do judaísmo. Hilel disse: “Não faças ao outro o que não queres que façam a ti”, como a essência do judaísmo, e essa frase teria marcado o poder do amor em Jesus e no cristianismo.

Esse tema das relações entre judaísmo e cristianismo, culturas-chave na formação do mundo ocidental, juntamente com a velha Grécia, é fascinante e interminável. Nos últimos anos, agradeço aos amigos cristãos que foram me introduzindo ao Novo Testamento. E se diz que Sêneca  introduziu o perdão na esfera do Estado, por influência do cristianismo. Em sua obra sobre a clemência, afirma que o perdão é a principal arma do governante para ser justo e firme como estadista. O paradoxo é que ele terminou a vida como vítima de Nero , que, desconfiado de sua traição, obrigou-o a se matar.


IHU On-Line – A partir do holocausto e do nazismo, como os judeus encaram a questão do perdão?

Abrão Slavutsky –
Não creio que tenha havido uma mudança quanto ao perdão. De qualquer forma, os crimes contra a humanidade, para todos os povos, devem ser julgados, estão na área da justiça. Perdão não é justiça; perdão, como já disse, é derivado da justiça e praticar a justiça é julgar, uma missão difícil sempre. O holocausto, como tive oportunidade de referir na entrevista de 2010 a essa mesma revista, é um dever de memória, pois a crueldade humana pode não ter limites, como ocorreu nos campos de extermínio nazista. Nesse caso sempre se deve aplicar a justiça, bem como nas agressões das ditaduras contra os direitos humanos. Toda sociedade precisa, para sobreviver, da justiça, por um lado, e do perdão, pelo outro. O holocausto não destruiu o povo judeu e nem a humanidade. Ao contrário do que Adorno  escreveu, a poesia continua viva, pois sua morte seria uma vitória da crueldade.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Abrão Slavutsky –
Três questões finais – a primeira tem a ver com a política. Por exemplo, uma parte da mídia, hoje, tende a estimular certo desprezo pela Comissão da Verdade , que investigará os crimes do Estado brasileiro contra os cidadãos de nosso país. Recordo que há mais de cem desaparecidos políticos no Brasil, após 1964, de quem até hoje suas famílias não têm notícias e não podem fazer as cerimônias fúnebres. Esse é um direito humano acima até mesmo das leis, como Sófocles  em sua Antígona defendeu. Uma questão é o perdão; outras são o dever da memória e a responsabilidade do Estado diante de desparecidos. Dizem, aliás, que o Brasil é um país sem memória, e então eu pergunto: seremos cúmplices dessa falta de memória ou temos a obrigação de contribuir na defesa da Comissão da Verdade, que tem a ver com a recuperação da memória? Dizem que essa Comissão é vingativa, não quer perdoar, quando, na verdade, ela buscará recuperar a verdade da história. Logo, é uma expressão de amor.
A segunda questão é a difícil arte de perdoar, pois não se pode esquecer o severo supereu, fruto das identificações com as exigências, herdeiro do complexo de Édipo. Uma das vantagens das terapias, da análise, é que o psicanalista não escuta como um juiz, não julga moralmente o paciente. A questão em análise é abrir espaço para se entender algo do inconsciente, sistema em que o mal e o bem convivem sem diferenciação de valor. Sistema em que o tempo não passa, pois o passado, o presente e o futuro estão juntos, sem se diferenciar. Perdoar a si próprio pelas falhas, fracassos, limitações, distância do ideal de eu, é indispensável para se viver menos angustiado e fazer as pazes consigo próprio. Não só perdoar a si, como aos que amamos ao longo da vida, essência da fraternidade, pois, sem perdão a si e ao outro, a vida social se transforma em ressentimentos vingativos.

Finalmente, a terceira questão. A palavra perdão tem sua origem no latim vulgar perdonare; per, através de, e donare, doar, doar-se. Perdoar é o ato de libertar o outro da culpa, o perdão liberta a quem o pratica. For-give, ver-geben, per-dón, per-dão. Praticamente em todos os idiomas a palavra perdoar tem sua origem em “perdonare”. Em hebraico, o pedido de perdão, o arrependimento, se expressa por selichá ou mechilá. Palavra usada, por exemplo, na reza final de um ritual funerário judaico. Os vivos pedem ao morto selichá, um pedido de desculpas, um pedido de perdão. Expressam, enfim, seu arrependimento.


Leveza do ser

Com o perdão a pessoa doa a si e ao outro o que tem de melhor: compaixão e esperança. O perdão ajuda a aliviar o peso da existência, na instigante relação entre o peso e a leveza, que o escritor Italo Calvino  estabeleceu na primeira conferência do seu livro Seis propostas para o novo milênio. Afirma que é preciso diminuir o peso das palavras, bem como o peso de como se vê o mundo. Muitas vezes, a religião, a filosofia, a psicanálise, a mídia têm uma atração pelo peso, pelos argumentos de peso. É uma visão mais dramática do que bem-humorada. É possível aceitar que a condição humana tem uma tendência maior ao peso, à dor e ao sofrimento, até como expressão de nosso masoquismo. Felizmente, podemos pensar que a leveza é tão ou mais séria quanto o peso, pois, para chegar à quintessência da vida, convém pensar o que disse Millôr Fernandes . Ele propõe que o humor é a quintessência da seriedade. Quando se pode ultrapassar a seriedade, chega-se à verdadeira essência. Enfim, em tempos em que se lê e se fala tanto em diminuir o peso corporal, quem sabe possamos acrescentar também uma maior leveza de ser. Se nos perdoamos, se podemos perdoar o outro, viveríamos com mais leveza e bem estar.


Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Abrão Slavutsky e publicadas na IHU On-Line.

O Holocausto e o dever da memória. Entrevista publicada na IHU On-Line 323, de 29-03-2010

Uma vacina contra o desespero. Entrevista publicada na IHU On-Line 367, de 27-06-2011

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