Edição 387 | 26 Março 2012

A Igreja feita de homens e de deuses

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Graziela Wolfart

Dom Bernardo Bonowitz, monge trapista e abade, comenta o filme dirigido por Xavier Beauvois e reflete sobre um trágico episódio que deixou uma lição de seguimento a Jesus

 

Ao refletir sobre o filme “Homens e deuses” (Xavier Beauvois, França, 2010, drama, 122 min), o abade Dom Bernardo Bonowitz, considera que a obra mostra “um rosto muito lindo da Igreja, no sentido do que poderia ser o seguimento de Jesus. Os monges da Argélia apresentam uma nova possibilidade para a vida religiosa, com uma ênfase muito forte nos valores do Evangelho, com uma adesão muito grande à imitação de Jesus, uma vida religiosa realmente atraente e que também tem a ver com valores da transformação da cultura e da sociedade. E isso é interessante, sobretudo, neste século quando a inter-relação entre o islã e o cristianismo vai ser muito importante para a paz mundial”. Dom Bernardo pertence à mesma Ordem de monges que foram massacrados Argélia, episódio retratado no filme “Homens e Deuses”, que estreou no Brasil em abril de 2011 e que será exibido na Unisinos no próximo dia 28-03, (saiba mais em http://bit.ly/GGwJ1B). Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, o monge trapista explica a decisão de seus companheiros de Ordem em não aceitar ajuda armada em pleno contexto de guerra civil na Argélia, o que os teria exposto à situação de martírio: “Era uma convicção ‘enraizada’ deles, como monges e como seguidores de Jesus, de que não poderiam ser violentos, por isso não admitiam armas no mosteiro nem aceitavam a proteção da polícia, pois achavam que seria uma contradição radical viver num claustro armado, mesmo eles não carregando armas, mas vivendo sob a proteção de pessoas armadas. Seria um contratestemunho. Por isso preferiram correr o risco. Mas eu acredito que quando eles tomaram essa decisão tinham a esperança de que esta maneira evangélica de viver seria respeitada pelos seccionistas”.

Nascido em Nova Iorque no seio de uma família judaica – e, portanto, judeu –, John Bonowitz, hoje com 62 anos, se converteu ao catolicismo na juventude e ingressou na Ordem dos Cistercienses da Estrita Observância (Trapistas), aos 24 anos, após se formar em Línguas Clássicas pela Universidade de Columbia. Com mestrado em Teologia pela Weston Jesuit School of Theology em Massachusetts (EUA) D. Bernardo Bonowitz (nome religioso) atualmente é abade do Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente-PR. Tem seis livros publicados no Brasil, dentre os quais citamos Os místicos cistercienses do século XXI (Juiz de Fora: Edições Subiaco, 2005) e Na presença de seu povo reunido (Juiz de Fora: Subiaco, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o contexto social e cultural da Argélia em 1996 nos ajuda a compreender o que provocou o massacre dos monges, episódio retratado no filme “Homens e Deuses”?

Bernardo Bonowitz – O contexto era de conflito entre o governo, a polícia militar (do governo) e vários outros partidos, em particular grupos seccionistas muçulmanos. Parece que a presença dos monges criava dificuldades para os dois grupos. Para o governo, a dificuldade era em função do fato de os monges estarem muito ligados com a população local e também por se recusarem a tomar partidos. Para os seccionistas os monges eram estrangeiros, cujo lugar não era mais na Argélia.

IHU On-Line – O senhor conheceu os monges que foram massacrados por muçulmanos radicais no norte da África? 

Bernardo Bonowitz – Eu conheci o prior (Christian de Chergé). Ele foi eleito, em 1984, como superior da comunidade na Argélia e veio participar de uma reunião de todos os superiores da Ordem, que se realizou próximo ao meu mosteiro, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Eu era noviço naquela época e ele, com os outros superiores, vieram do centro de espiritualidade, onde acontecia a reunião, para passar uma tarde em nossa comunidade. Então eu me encontrei com ele, mas foi um momento muito rápido.

IHU On-Line – Como repercutiu entre os monges da Ordem esse trágico episódio? 

Bernardo Bonowitz – Fazia anos que sabíamos da possibilidade de uma tragédia desse tipo, porque no natal de 1993 os seccionistas tinham avisado os monges que eles precisavam ir embora e que, se não saíssem, a vida deles corria perigo. Então, a Ordem vivia com a consciência de uma possibilidade desse tipo. Mas quando aconteceu foi um imenso choque para nós. O abade geral da época era um grande amigo de Dom Christian – o superior – e ficou muito tocado. Eu li várias cartas circulares sobre o testemunho e a mensagem deles. Então, desde 1996, o que eles faziam, a sua maneira de interagir com o povo, com um tremendo respeito pelo islã, são elementos que têm entrado na Ordem.

IHU On-Line – Como entender a opção daqueles monges pelo martírio, impedindo a entrada de armas no mosteiro em pleno contexto de guerra civil no país?

Bernardo Bonowitz – Era uma convicção “enraizada” deles, como monges e como seguidores de Jesus, de que não poderiam ser violentos, por isso não admitiam armas no mosteiro nem aceitavam a proteção da polícia, pois achavam que seria uma contradição radical viver num claustro armado, mesmo eles não carregando armas, mas vivendo sob a proteção de pessoas armadas. Seria um contratestemunho. Por isso preferiram correr o risco. Mas eu acredito que quando eles tomaram essa decisão tinham a esperança de que esta maneira evangélica de viver seria respeitada pelos seccionistas.

IHU On-Line – Que tipo de reflexão o filme “Homens e deuses” inspira sobre a benevolência diante da pobreza?

Bernardo Bonowitz – Os monges da Argélia viviam muito ligados à população local, especialmente através dos esforços médicos e, portanto, ficavam muito mais confiantes da situação da população local e criaram um tipo de cooperativa com o povo. Esse foi um dos estímulos para a comunidade, pois o mosteiro, mesmo vivendo em uma situação de claustro, não vivia em isolamento, e precisava ajudar concretamente em relação à pobreza das pessoas da localidade. Desde o tempo dos monges da Argélia as comunidades, em geral, estão experimentando um pouco mais essa proximidade com o povo local, também com iniciativas de ajuda econômica.

IHU On-Line – Como esse debate se relaciona com a Teologia da Libertação e a defesa da Igreja pelos mais pobres e oprimidos?

Bernardo Bonowitz – É possível ver uma ponte entre essas duas vivências. Não sei se os monges da Argélia tinham muita consciência desse movimento. Parece-me que o que eles faziam e a maneira deles de viver não tinham uma base particularmente filosófica, mas era fruto de sua vida de oração e simplesmente por estarem inseridos naquele contexto. Então foi a experiência da necessidade do povo que despertava essa relação.

Ênfase nos valores do Evangelho

Depois da guerra da independência da Argélia houve um grande êxodo de pessoas de origem francesa que voltaram para a França. Aqueles que ficaram tomaram uma decisão de criar uma nova identidade católica, não como dominante, mas com o objetivo de viver em harmonia com a maioria muçulmana e viver como simples testemunhos de Jesus, não fazendo esforço missionário, mas simplesmente ser uma presença de Cristo num país muçulmano. Essa foi a posição do arcebispo, dos bispos e todas as comunidades religiosas adotaram, cada uma a seu tempo, tal atitude de ser uma humilde presença. Nesse sentido, havia uma grande sintonia na Igreja argelina naquela época. O filme mostra um rosto muito lindo da Igreja, no sentido do que poderia ser o seguimento de Jesus. Os monges da Argélia apresentam uma nova possibilidade para a vida religiosa, com uma ênfase muito forte nos valores do Evangelho, com uma adesão muito grande à imitação de Jesus, uma vida religiosa realmente atraente e que também tem a ver com valores da transformação da cultura e da sociedade. E isso é interessante, sobretudo, neste século quando a inter-relação entre o islã e o cristianismo vai ser muito importante para a paz mundial.

IHU On-Line – O diretor Xavier Beauvois utiliza como epígrafe no filme “Homens e Deuses” o seguinte salmo 82: “Vós sois deuses/Todavia morrereis como homens”. Em que sentido, em preparação à Páscoa, esta obra pode nos ajudar a pensar sobre o Jesus que é divino, mas também humano?

Bernardo Bonowitz – É evidente que ele se inspirou nesse salmo para dar o título ao filme. Os monges daquela comunidade eram do primeiro mundo, alguns muito cultos, vinham de mosteiros diferentes da França, mas cada um optava por uma vida monástica mais despojada, mais simples, menos formal, e no meio de uma população sofredora. É um pouco como Jesus que se fez homem, que se fez pobre, e o fez por livre escolha e não por imposição. É interessante que isso marca nossa Ordem desde o início, pois nossa pobreza é voluntária. Os monges que viveram na Argélia buscaram ser irmãos iguais do povo no meio do qual eles viviam. E diziam que não poderiam fugir, mesmo quando encorajados, porque o povo da aldeia não tinha para onde fugir. Teoricamente eles poderiam ter voltado para a segurança da França, mas o povo da aldeia não. Então, eles fizeram uma escolha, assim como a de Jesus, de não fugir da sua hora e de acolher a possibilidade de martírio. Tenho certeza de que eles estão agora na glória de Deus, depois de terem oferecido suas vidas por amor e solidariedade. Essa é uma vivência pascal.

IHU On-Line – Qual a filosofia de vida de um monge trapista (da Ordem dos Cistercienses da Estrita Observância)?

Bernardo Bonowitz – Nós, trapistas, pertencemos à família beneditina, ou seja, seguimos as regras de São Bento. E o centro da nossa vida é uma busca de união com Deus através da oração contínua e de uma forma particular de seguir a Jesus, pela qual buscamos, primeiramente, ser transformados e, a partir da transformação interior, exercer uma forma de atuação no mundo. Temos uma vida bem definida de oração, de trabalho manual, de liturgia, mas o ponto principal é a união de cada um de nós com Jesus, tanto de forma individual como comunitária.

 

>> Saiba mais sobre o filme “Homens e Deuses”:

Direção: Xavier Beauvois

Com: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin

Gênero: Drama

Nacionalidade: França

Ano de produção: 2010

Sinopse: Década de 1990. Um grupo de oito monges franceses vive em um mosteiro localizado no alto de uma montanha na Argélia. Liderados por Christian (Lambert Wilson), eles vivem em perfeita harmonia com a comunidade muçulmana local. O exército oferece proteção contra as ameaças que surgem, mas os monges a recusam. Preferem levar sua vida de forma simples, dando continuidade à sua missão independentemente do que vier a acontecer com eles.

Leia mais...

Confira os materiais publicados pelo site do IHU a respeito do filme Homens e deuses:

* "Homens e Deuses" narra massacre de monges na Argélia, disponível em http://bit.ly/GHJ0nk

* "O espírito de Tibhirine soprou sobre nós’, diz cineasta francês, disponível em http://bit.ly/GVqR5f

* O espírito de Tibhirine soprou sobre o Festival de Cannes, disponível em http://bit.ly/GHJjP1 

* Juri Ecumênico premia filme sobre monges na Argélia, disponível em http://bit.ly/GRl1F7 

* Testamento do padre Christian de Chergé, disponível em http://bit.ly/GIY9FP 

* Christian de Chergé, o mártir de Tibhirine, disponível em http://bit.ly/GWMAv9 

* A história dos monges de Tibhirine, disponível em http://bit.ly/GJff4e 

* "Frei Christian foi o verdadeiro catalizador de uma comunhão profunda", disponível em http://bit.ly/GL480B 

* A Última Ceia dos monges de Tibhirine antes do martírio, disponível em http://bit.ly/GU5ccg 

* Monges de Tibhirine: "Pertenciam a um Outro", disponível em http://bit.ly/GRXVyi 

* "O sucesso no cinema revela como é forte o desejo de Deus", disponível em http://bit.ly/GS4TlS 

* A outra hipótese sobre os "monges mártires", disponível em http://bit.ly/GJfpbS 

* Os "homens de Deus" e o conflito religioso, disponível em http://bit.ly/GJQHII 

* "O exemplo dos monges de Tibhirine nos deu um novo elã’, disponível em http://bit.ly/GJsiq5 

* Monges de Tibhirine. "Uma parábola do mistério da encarnação’, disponível em http://bit.ly/GKxi9s 

* O filme sobre os monges de Tibhirine é um espelho da alma, disponível em http://bit.ly/GJwlog 

* Conhecer a religião do outro "é uma questão de vida ou morte’, disponível em http://bit.ly/GJRLfN 

* Os monges de Tibhirine. Uma lição de humanidade, disponível em http://bit.ly/GWPlfV 

* O monge sobrevivente."Que emoção aquele filme", disponível em http://bit.ly/GRUJgR 

* Longa se recusa a impor seu humanismo ao espectador, disponível em http://bit.ly/GKUMzu 

* O divino que há no ser humano, disponível em http://bit.ly/GJh0OL 

* Fotos do dia. O único sobrevivente dos monges de Tibhirine, disponível em http://bit.ly/GJRZU7 

* Jean-Pierre, um dos monges sobreviventes de Tibhirine. Uma entrevista, disponível em http://bit.ly/GJ0cd4 

* Paolo Dall'Oglio e a espiritualidade no mundo muçulmano, disponível em http://bit.ly/GRjATN 

* Homens e Deuses mostra a prática da fé, disponível em http://bit.ly/GWPWhC 

 

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