Edição 387 | 26 Março 2012

Um cientista e humanista inteiro

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Para Miguel Trefaut Rodrigues, Aziz Ab’Saber era um cientista que jamais deixava de lado o homem militante que faz parte de um país e que está inserido em uma sociedade, com todos os seus problemas

“Aziz sempre foi uma pessoa inserida na sociedade brasileira, participava dela como militante ativo, usando o conhecimento científico para tentar planejar estrategicamente o país, coisa que pouquíssima gente faz aqui no Brasil. Ele sempre teve uma participação muito grande como cientista. Esse é o seu maior legado: Aziz Ab’Saber era um cientista inteiro, uma pessoa que tinha um conhecimento científico extremamente grande, prático e teórico, ou seja, ele conhecia o Brasil como a palma da mão”. A declaração é do professor da USP, Miguel Trefaut Rodrigues, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line alguns dias após o falecimento do geógrafo e professor universitário brasileiro Aziz Nacib Ab’Saber, ocorrido dia 16-03-12 em função de uma parada cardíaca. Para Miguel, outro grande mérito de Aziz Ab’Saber “é que ele era um homem justo, que não se deixava levar por influências partidárias e políticas. Ele tinha sua posição. Como cientista, defendia suas ideias completamente afastado de qualquer influência política que pudesse ter”. E continua: “Aziz era um cientista que jamais deixava de lado o homem militante que faz parte de um país e que está inserido em uma sociedade, com todos os seus problemas. Ele nunca tomava uma decisão sem, por exemplo, pensar no homem do Nordeste ou sem pensar no lado social, na questão do progresso do país, de melhoria da condição de vida do povo”. 

Miguel Trefaut Rodrigues, herpetólogo brasileiro, diplomou-se em Ciências Biológicas pela Université Paris VII – Diderot e doutorou-se em Zoologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha no Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da mesma universidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De forma geral, qual o principal legado intelectual e pessoal de Aziz Ab’Saber para a academia e a sociedade brasileiras?

Miguel Trefaut Rodrigues – É difícil avaliar a contribuição de Aziz, porque ele foi uma pessoa atuante em tantos ramos (na formação de pessoal, de jovens brasileiros), transmitiu sempre o espírito da necessidade de uma multidisciplinaridade em ciência, o que pouca gente vê e faz. Aziz, desde o tempo de jovem, achou que a multidisciplinaridade era algo extremamente importante. Ele tentava integrar o conhecimento da geografia com o conhecimento da geomorfologia, da geologia, com o conhecimento da distribuição da fauna e flora, das biotas, da alternância do tempo e do espaço das paisagens brasileiras ao sabor das flutuações climáticas no quaternário . Tudo isso acompanhado sempre de uma forte militância social. Aziz sempre foi uma pessoa inserida na sociedade brasileira, participava dela como militante ativo, usando o conhecimento científico para tentar planejar estrategicamente o país, coisa que pouquíssima gente faz aqui no Brasil. Ele sempre teve uma participação muito grande como cientista. Esse é o seu maior legado: Aziz Ab’Saber era um cientista inteiro, uma pessoa que tinha um conhecimento científico extremamente grande, prático e teórico, ou seja, ele conhecia o Brasil como a palma da mão. Outro grande mérito de Aziz é que ele era um homem justo, que não se deixava levar por influências partidárias e políticas. Ele tinha sua posição. Como cientista, defendia suas ideias completamente afastado de qualquer influência política que pudesse ter. 

IHU On-Line – Qual a importância de Aziz Ab’Saber para o conhecimento e a definição dos biomas brasileiros? 

Miguel Trefaut Rodrigues – Total. Ele foi a primeira pessoa que fez a grande síntese dos domínios morfoclimáticos brasileiros, os quais serviram como plataforma para tentar entender ecologia e evolução da biota, da fauna, da flora no Brasil. Todas as grandes ideias sobre conservação começaram a partir dos domínios morfoclimáticos. Até então tínhamos uma divisão em províncias, que era extremamente fraca, não tinha a solidez que teve o conceito dos domínios morfoclimáticos. A partir disso, conseguiu-se compreender como esses domínios flutuavam no tempo e no espaço durante as oscilações climáticas. E isso foi uma alavanca fundamental para tentar entender a evolução e ecologia das paisagens brasileiras. 

IHU On-Line – Como o senhor percebia em Aziz Ab’Saber a relação entre o cientista e o humanista?

Miguel Trefaut Rodrigues – Nele era tudo integrado. Aziz era um cientista que jamais deixava de lado o homem militante que faz parte de um país e que está inserido em uma sociedade, com todos os seus problemas. Ele nunca tomava uma decisão sem, por exemplo, pensar no homem do Nordeste ou sem pensar no lado social, na questão do progresso do país, de melhoria da condição de vida do povo. Por que Aziz era contrário à transposição do rio São Francisco? Primeiro, porque obviamente a obra tinha uma série de problemas científicos, misturando faunas, de bacias completamente diferentes, sem que elas tivessem sido devidamente estudadas, e os projetos não estavam preocupados em tentar melhorar o nível de vida das populações desassistidas. Os grandes projetos culturais e sociais que deveriam ser feitos no momento da transposição desse rio não foram feitos, e por isso que ele era contra. Ele sempre teve esse lado humanista carregado ao lado do cientista. 

IHU On-Line – O que deveria ser ouvido como o eco de Aziz Ab’Saber sobre o novo Código Florestal?

Miguel Trefaut Rodrigues – Exatamente o que ele dizia: tem que manter as áreas de preservação, que são muito importantes, bem como as encostas e matas ciliares, que devem ser preservadas. Nada disso está sendo preservado nesse Código Florestal . O que Aldo Rebelo fez foi uma vergonha. Aziz Ab’Saber foi um homem que viveu lutando pela preservação das encostas, da qualidade da água no Brasil. O que o novo Código Florestal está fazendo é pisar por cima de tudo o que Aziz sempre defendeu a vida inteira. 

IHU On-Line – O que caracterizava a visão macro que Aziz Ab’Saber tinha do Brasil, principalmente em relação à geografia e à ciência feitas no país?

Miguel Trefaut Rodrigues – Ele conseguia ver o Brasil por cima, de maneira íntegra, integral. Ele tinha um conhecimento profundo da prática do campo, conhecia o Cerrado , a Caatinga, a Mata Atlântica, todas as paisagens naturais do país como ninguém. Aziz conhecia os problemas que envolviam a ocupação das paisagens naturais bem como os problemas associados à presença do homem pobre no campo, nos locais onde estava, e tentava ver que projetos poderiam, de uma maneira ou outra, contribuir para a melhoria da condição de vida social dessa gente. Isso é um sujeito que vê macro e não enxerga apenas um probleminha pequeno. Ele enxergava a situação inteira, em diferentes momentos do tempo e do espaço. E conseguia integrar isso em uma visão multidisciplinar. Todas as vezes que ia falar, ele fechava os olhos e começava a “passear” falando.

Saiba mais...

Aziz Nacib Ab’Saber (São Luís do Paraitinga, 24 de outubro de 1924 — Cotia, 16-03-2012) foi um geógrafo e professor universitário brasileiro. Considerado como referência em assuntos relacionados ao meio ambiente e a impactos ambientais decorrentes das atividades humanas, foi um cientista polivalente, laureado com as mais altas honrarias científicas em arqueologia, geologia e ecologia. Foi Membro Honorário da Sociedade de Arqueologia Brasileira, Grã-Cruz em Ciências da Terra pela Ordem Nacional do Mérito Científico, Prêmio Internacional de Ecologia de 1998 e Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente. Era Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Professor Honorário do Instituto de Estudos Avançados da mesma universidade e foi presidente (além de Presidente de Honra) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC.

Embora aposentado compulsoriamente no final do século XX, manteve-se em atividade até o fim da vida. Na véspera da sua morte, entregou à SBPC os arquivos de sua obra completa, em DVD, com a seguinte dedicatória: “Tenho o grande prazer de enviar para os amigos e colegas da universidade o presente DVD que contém um conjunto de trabalhos geográficos e de planejamento elaborados entre 1946-2010. Tratando-se de estudos predominantemente geográficos, eu gostaria de que tal DVD fosse levado ao conhecimento dos especialistas em geografia física e humana da universidade”.

>> Aziz Ab’Saber concedeu duas entrevistas exclusivas à IHU On-Line. Confira: 

O aquecimento é bom para a floresta. Entrevista publicada na IHU On-Line número 321, de 15-03-2010;

“Meu grande sonho é que haja menos diferenças sociais no Brasil”. Entrevista publicada na IHU On-Line número 60, de 19-05-2003.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição