Edição 387 | 26 Março 2012

A estética feminina como construção cultural

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Thamiris Magalhães

E, no mundo ocidental, as mais bonitas e bem vestidas são as que mais se destacam, frisa Rosângela Angelin

Existem várias concepções históricas sobre as mulheres ao longo dos milênios. “Assim, a condição da mulher, na atualidade, em termos de ‘estética corporal’, é resultado de uma construção cultural. A beleza, em sua própria essência, é algo muito relativo”, avalia Rosângela Angelin na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Prova disso é que os padrões de beleza foram se modificando e diferem entre si, dependendo da cultura de cada nação. Quando observamos o papel da mulher na sociedade da Idade Média, no mundo ocidental, percebemos, de forma clara, que a mesma coisa ainda hoje perdura, com raras exceções”, reflete. Para ela, as mulheres seguem sendo constrangidas à invisibilidade social e, portanto, ao silêncio em público. “Aliás, quem muito bem ilustra essa situação é Michelle Perrot, que compreende que estar bonita e vestir-se bem se tornou um capital de troca e uma forma de ser notada na vida pública. As mais bonitas e bem vestidas são as que mais se destacam. Tal cultura estética, aliada ao incentivo do capitalismo para tornar-se bonita, segue infelizmente sendo determinante na busca da aceitação social”.

Rosângela Angelin é doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück (Alemanha), docente do mestrado e da graduação em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, Campus Santo Ângelo-RS. É membro do grupo de pesquisa Tutela dos Direitos e sua Efetividade. É ainda membro do grupo de estudos Direito, Cidadania e Políticas Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, e coordenadora do grupo de pesquisa: “Direitos humanos, cidadania e a consolidação dos direitos sociais: estudos sob a ótica do constitucionalismo contemporâneo e da teoria da complexidade de Edgar Morin”. Colaboradora na execução de projetos com mulheres agricultoras junto à ONG Associação Regional de Desenvolvimento e Educação e integra a Marcha Mundial de Mulheres.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em seu entendimento, por que a mulher ainda hoje continua sendo o alvo mais visado da “estética” corporal dominante em nossa sociedade?

Rosângela Angelin –
É importante que tenhamos presente a existência de várias concepções históricas sobre as mulheres ao longo dos séculos. Assim, a condição da mulher, na atualidade, em termos de “estética corporal”, é resultado de uma construção cultural. A beleza, em sua própria essência, é algo muito relativo. Prova disso é que os padrões de beleza foram se modificando e diferem entre si, dependendo da cultura de cada nação. Quando observamos o papel da mulher na sociedade da Idade Média, no mundo ocidental, percebemos, de forma clara, que a mesma coisa ainda hoje perdura, com raras exceções. As mulheres seguem sendo constrangidas à invisibilidade social e, portanto, ao silêncio em público. Aliás, quem muito bem ilustra esta situação é Michelle Perrot , que compreende que estar bonita e vestir-se bem se tornou um capital de troca e uma forma de ser notada na vida pública. As mais bonitas e bem vestidas são as que mais se destacam. Tal cultura estética, aliada ao incentivo do capitalismo para tornar-se bonita, segue infelizmente sendo determinante na busca da aceitação social.


IHU On-Line – A que se deve o fato da crescente corrida das mulheres para as academias de ginástica e para a medicina estética, bem como o uso de produtos dietéticos para emagrecer? Por que a maioria delas ainda busca um corpo perfeito? O que isso revela?

Rosângela Angelin –
Em primeiro lugar, deveríamos perguntar o que significa ter um corpo perfeito. Ou ainda: quem determina esses padrões de “perfeição”? A partir de que critérios? A sociedade é composta por padrões de comportamento social que criam identidades tidas como “ideais”. A corrida desenfreada para as academias de ginástica e para a medicina estética, o uso de produtos dietéticos para emagrecer, a anorexia e a bulimia, revelam uma espécie de “ditadura da beleza” à qual a maioria das mulheres se condiciona em busca de um corpo “perfeito”. Antes considerada um atributo da natureza, a beleza passou a ser encarada como uma questão de “conquista” e, nessa lógica, torna-se imprescindível investir tempo e dinheiro a fim de se alcançar a aprovação da sociedade. Creio que isso revela um empobrecimento do ser humano, uma dialética da busca desenfreada por um padrão físico, muitas vezes inatingível.


IHU On-Line – De que maneira o capitalismo se apropria da “beleza” nos dias de hoje?

Rosângela Angelin –
Essa é uma pergunta muito importante para compreendermos o papel das mulheres na sociedade globalizada. A maior propagação dos “modelos de beleza” ocorre através dos grandes meios de comunicação social que se preocupam em reforçar os ditames do consumismo neoliberal, construindo padrões tidos como obrigatórios. A busca da beleza acabou gerando um lucrativo mercado. Com muita propriedade, a escritora americana Naomi Wolf  afirma, em seu livro O mito da beleza: como as imagens da beleza são usadas contra as mulheres (Rio de Janeiro: Rocco, 1992), que a “beleza é um sistema monetário assim como o ouro. É o último e o melhor sistema de crenças que mantém a dominação masculina intacta. Assim, o capitalismo usa as mulheres ‘bonitas’ como isca para a venda dos seus produtos, lucrando com a discriminação das consideradas ‘feias’ que buscam o maior número de produtos possíveis para compensarem sua ‘feiúra’”.


IHU On-Line – Existem ou podem surgir políticas públicas que beneficiam a estética feminina?

Rosângela Angelin –
É relevante que se diga que o Sistema Único de Saúde – SUS dispõe de várias políticas públicas direcionadas ao atendimento da saúde das mulheres envolvendo questões estéticas, como, por exemplo, implantes de próteses mamárias em mulheres vítimas de câncer, cirurgias de redução mamária e cirurgias bariátricas. Percebe-se que as políticas públicas no Brasil procuram beneficiar não apenas a estética feminina, de forma isolada, mas também a saúde da mulher. Considero essa uma alternativa plausível e acertada, muito embora a saúde pública ainda não atenda a todas as pessoas que necessitam de cuidados envolvendo a manutenção da vida. Vale salientar que o Estado tem o dever de garantir políticas públicas que reforcem e viabilizem o acesso aos direitos fundamentais das mulheres e a equidade nas relações de gênero, especialmente quando se trata de mulheres com condições econômicas menos favorecidas ou em vulnerabilidade social.


IHU On-Line – Há vantagem da mulher “bonita” perante as outras formas de beleza? Como a mulher que não está dentro do padrão estético convencional é vista dentro da sociedade? Há preconceito? Em quais esferas ele é mais notado?

Rosângela Angelin –
Os padrões de beleza feminina condicionam uma identidade que não é somente imposta para as mulheres, mas reconhecida por toda sociedade. Nesse sentido, as mulheres que se “enquadram” nesses padrões, passam a ser reconhecidas e aceitas no convívio social. Para as demais, a vida costuma ser um pouco mais difícil. Muitas vezes, elas encontram dificuldades que se inserem no contexto do próprio lar, quando, por exemplo, mães induzem as filhas a fazer dieta para ficarem “bonitas”. Também é possível perceber esse preconceito na escola, mais tarde no mercado de trabalho e, inclusive, nas relações afetivas. Os padrões de “beleza física” acabam gerando uma inversão de valores nos quais a busca por um corpo perfeito é considerado um sinônimo de aceitação social, geralmente confundida com a felicidade.


IHU On-Line – Qual é o conceito de beleza da sociedade contemporânea?

Rosângela Angelin –
Atualmente, os padrões ocidentais de beleza são os que mais prosperam nos meios de comunicação social. É comum observar que através do marketing estético se multiplicam os exemplos alcançados com produtos cosméticos e intervenções cirúrgicas. Mulheres jovens, magras, esguias, de preferência com seios grandes e firmes, com cabelos bem tratados e que se vestem com figurinos “da moda”. No Brasil, cabe destacar um novo aspecto de padrão de beleza. O “bumbum grande” evidencia um “belo atributo” do corpo feminino. As consequências desses padrões aleatórios redundam numa infinidade de casos em que jovens e mulheres sofrem por conta da anorexia e da bulimia, talvez insatisfeitas com a sua vida e em busca do “corpo perfeito” e da tão difundida ideia da “juventude eterna”.


IHU On-Line – Você viveu por alguns anos Europa, onde estudou a vida das mulheres de culturas diferentes da nossa. Nesse sentido, que aspectos lhe chamou mais atenção na diferença da cultura feminina?

Rosângela Angelin –
Nesse período, pude constatar e confirmar, através do convívio com mulheres de diferentes nacionalidades, que a beleza e o papel feminino na sociedade é uma construção cultural. O conceito de “estética feminina” é muito variado. Para a sociedade alemã, embora sendo ocidental, a beleza da mulher não está condicionada ao corpo, como vemos com tanta evidência no Brasil. Talvez isso se deva às conquistas do movimento feminista que propiciou uma nova identidade, mais igualitária, em que os atributos do corpo não são fatores determinantes no reconhecimento da identidade feminina.


IHU On-Line – Você trabalha atualmente com mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família. Como vê esse tipo de política pública para as mulheres?

Rosângela Angelin –
O Estado brasileiro tem se esforçado para a viabilização da equidade nas relações de gênero e, através de políticas públicas de inclusão, tem contribuído para isso, como ocorre no caso do programa governamental Bolsa Família. Entendo que esse programa trouxe uma grande novidade no âmbito das políticas públicas no Brasil: o recurso é repassado diretamente para as mulheres da família, ao contrário de outras políticas públicas que repassavam os recursos para o “chefe” da família. Essa atitude governamental demonstra um saldo positivo na qualidade de vida das famílias beneficiárias, visto que os valores percebidos, embora sejam valores monetários baixos, são aplicados integralmente no grupo familiar. Além disso, a possibilidade de poder gerenciar os recursos propicia uma elevação da autoestima dessas mulheres. Por terem as políticas públicas um caráter temporário, o governo previu a ação conjunta de mecanismos interventivos (cursos de capacitação e acompanhamento) a fim de acompanhar essas mulheres, de modo a alcançar a emancipação financeira e, com ela, um estado mínimo de dignidade e cidadania. Porém, a complexidade da estrutura econômica, social e legal do Estado acaba dificultando essa intencionalidade que é barrada, principalmente, em virtude da burocracia institucional e da falta de recursos.


IHU On-Line – Acredita que está havendo avanços nas políticas públicas femininas? Em que sentido?

Rosângela Angelin –
As mulheres historicamente têm resistido ao papel que lhes foi imposto de invisibilidade social e travado embates que geraram avanços na emancipação e no reconhecimento de suas identidades como protagonistas da história. Isso influenciou o mundo jurídico através da criação de leis e políticas públicas de reconhecimento da alteridade e dos direitos de cidadania. Creio que é possível indicar vários avanços alcançados pela mobilização das mulheres, realizada através de movimentos de mulheres e feministas, entre os quais caberia destacar: a) o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres preconizado na Constituição Federal de 1988 bem como o reconhecimento das mulheres rurais como trabalhadoras; b) a criação de delegacias especializadas para as mulheres; c) a criação do Sistema Único de Saúde e as políticas públicas de saúde voltadas para a saúde das mulheres e da família; d) o combate à violência doméstica, através da Lei Maria da Penha e de políticas governamentais; e) ações voltadas à geração de renda para as mulheres; f) a criação da Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres, no âmbito Federal; g) a política de cotas nas eleições.


IHU On-Line – As mulheres tiveram tratamento diferente no decorrer da história da humanidade e, nos primórdios, eram consideradas deusas. A naturalização da opressão foi uma construção ocorrida no decorrer dos milênios? Como podemos desmistificar o fato de sermos consideradas seres secundários na vida pública, sendo que nem sempre foi assim?

Rosângela Angelin –
Uma releitura das descobertas arqueológicas, apresentadas em especial por Riane Eisler  e Maturana , demonstra que, desde o início da humanidade, existiram sociedades mais pacíficas e as mulheres tinham um papel de destaque na vida social, sendo consideradas deusas, pois eram capazes de gerar a vida. Porém, tal posição social não significava uma relação de dominação feminina sobre os homens. Tanto no período paleolítico como no neolítico, a relação entre os gêneros era de parceria, respeitando-se as diferenças. Com o passar dos tempos, essa condição foi sendo alterada e as diferenças entre os sexos transformaram-se em desigualdades, gerando a opressão das mulheres pelos homens. Dessa forma, percebe-se que a identidade e a opressão das mulheres sempre foi uma construção social, e não um determinismo biológico, como equivocadamente ainda é afirmado por alguns. Portanto, parece que a chave para a desmistificação da condição feminina é a “desnaturalização” da opressão. Essa tarefa foi assumida, no decorrer dos tempos, pelos movimentos de mulheres e feminista, propiciando uma maior valorização e protagonismo das mulheres na sociedade. Porém, ainda precisamos avançar mais. Talvez o exemplo mais ilustrativo desse fato diz respeito às mulheres que se encontram no mercado de trabalho, em suposta situação de igualdade com os homens, e seguem sendo as responsáveis pelas “obrigações domésticas” e o cuidado com as crianças. É preciso ressaltar que outro elemento importante para equalização das relações de gênero diz respeito ao Estado. Este deve contribuir na efetivação das normas jurídicas que versam sobre a isonomia nas relações de gênero e garantem direitos de cidadania para as mulheres. Enfim, construir uma relação mais equitativa entre homens e mulheres é uma tarefa conjunta que envolve toda a sociedade.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Rosângela Angelin –
Embora as mulheres, ao longo de muitos anos, com muita luta e persistência, tenham conquistado direitos e se afirmado em vários espaços da sociedade, lamentavelmente ainda é “normal” continuarmos sendo vistas e consideradas pelos contornos físicos de nossos corpos, o que evidencia um empobrecimento da capacidade de olhar o ser humano. Maria Rita Kehl , com muita lucidez, afirma que “a maior beleza está no corpo livre, desinibido em seu jeito de ser, gracioso porque todo ser vivo é gracioso quando não vive oprimido e com medo. É a livre expressão de nossos humores, desejos e odores; é o fim da culpa e do medo que sentimos pela nossa sensualidade natural; é a conquista do direito e da coragem a uma vida afetiva mais satisfatória; é a liberdade, a ternura e a autoconfiança que nos tornarão belas. É essa a beleza fundamental”.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição