Edição 197 | 25 Setembro 2006

O voto nulo e a fratura exposta da política oficial

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IHU Online

Tales A. M. Ab´Sáber é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e doutor em Psicologia clínica / Psicanálise pela USP. Ele é autor de O Sonhar Restaurado . São Paulo: Ed. 34, 2005 (Prêmio Jabuti 2006).

Nesta entrevista, realizada por e-mail para a revista IHU On-Line, o psicanalista falou sobre política brasileira e os políticos, campanha pelo voto nulo e as próximas eleições de outubro no Brasil. Confira a entrevista a seguir que foi veiculada nas Notícias Diárias da página do IHU, no dia 18-9-2006.

IHU On-Line - O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio de Mello, tem tentado estimular o voto até mesmo comparando o voto nulo a uma avestruz que na tempestade de areia enfia a cabeça em um buraco, o que mostraria a desinformação e o desinteresse. O senhor diz o contrário, afirmando que o voto nulo é o voto hiperinformado. O senhor poderia falar desse seu ponto de vista? O que representa o voto nulo para as próximas eleições?
Tales Ab’Sáber
- Tanto na clínica psicanalítica contemporânea quanto no desenvolvimento de uma certa filosofia política do século XX, foi necessário conceber um tipo de trabalho simbólico que poderíamos chamar de "o trabalho do negativo". Nas condições atuais da vida pública e no andamento da política no Brasil, com a crise ética revelando a verdade de fundo do que é a política sobre o controle estrito do capital, hoje capital financeirizado e globalizado, o grande e velho balcão de negócios das classes privilegiadas, fica muito claro o aspecto particular, ineficaz, privatista e desinteressado que é a verdade da política entre nós. O Brasil continua atrasado com relação a todos os parâmetros sociais desejáveis para um país moderno e para uma ação social contemporânea, e continuamos a ver todos os agentes políticos praticarem uma sistemática recusa e uma constante denegação da verdade das condições fracassadas nacionais, incluindo aí o funcionamento catastrófico da política oficial, fratura exposta à vista de todos. A denegação é o centro da política de propaganda e autocomplacência que se generalizou, técnica desenvolvida ao extremo pela república privatista tucana, e levada às últimas conseqüências pelo cinismo popular do alto mandatário petista. No Brasil, parafraseando um antigo clássico da antropologia francesa, o Estado, e seus setores sociais interessados, se posiciona, cada vez mais, contra a sociedade. Assim tem sido, com toda a falsa, e muito interessada, modernização neoliberal, que paralisou a economia nos últimos 15 anos, não resgatou a tragédia social local, e garantiu o rentismo irresponsável do mínimo andar de cima brasileiro, do qual fazem parte, e com muito gosto, pessoas como o presidente do TSE. O mesmo processo garantiu também, e tal submissão consentida e masoquista não é pouco importante na coisa toda, o conforto ideológico do andar de cima global, que funciona pautado pelos think tanks de Wall Street  e Washington. O negativo já está funcionando a todo vapor na própria positivação de tal cisão radical entre política e vida social no Brasil, que vem mesmo do centro oficial da política, com seus aparelhos ideológicos de Estado conexos, coisas como o grande TSE. O voto negativo, política radical e informada, é, para muitos de nós, a única nomeação da verdade das coisas desta república particular, que nega a verdade da vida nacional, esta coisa nova, mas tão velha, que mal é um país, e que resta nomear, chamada Brasil.

IHU On-Line – Já se pode ter uma base de que parte da população irá votar nulo nesse ano? Se são eleitores urbanos, do interior, com estudo etc.?
Tales Ab´Sáber
- Seriam necessários estudos estáticos mais precisos para sabermos isso com clareza, mas os institutos não medem esta intenção com rigor, e não querem animar este debate, comprometidos pelos setores interessados na continuidade da política nacional sem fissuras. Por sua vez, o interesse vivo que entrevistas como esta tem despertado nas pessoas faz parte do movimento simbólico de desrecalque desta polaridade negativa mais radical do voto, um movimento que talvez esteja apenas se iniciando no Brasil. O que posso dizer, com base em uma avaliação qualitativa e simbólica que um analista está sempre a fazer, e que qualquer cidadão pode realizar, é que evidentemente o tema do voto nulo, sua dimensão significante, passou para o plano central do campo simbólico da política no Brasil, alcançando em cheio as classes médias nacionais, os formadores de opinião, como uma dimensão legítima da ação política no espaço e nas práticas fracassadas da república danificada brasileira. É o trabalho do negativo. Isso de um modo que a nossa democracia complacente jamais viu.

Pequeno exemplo

Posso dar um pequeno exemplo sobre isso, de caráter qualitativo, mas eloqüente. Minha família em São Paulo, meu pai minha mãe, meus irmãos, como talvez seja sabido, são muito ligados à política e ao PT. Meu pai, o geógrafo Aziz Ab´Sáber, foi um dos idealizadores das caravanas da cidadania, que mobilizaram Lula após a derrota de 2003 para FHC, e sua mágica Real. Na última eleição para prefeito em São Paulo, com base em uma avaliação da drástica guinada à direita petista, e seis meses antes das denúncias do mensalão, todos nós, com exceção de um, que sempre votamos no PT e em Lula, e avaliávamos muito positivamente a prefeitura de Marta Suplicy, anulamos o voto, como tentativa, fracassada, de sinalizar algo ao governo federal. É certo, como a própria Marta declarou que este voto negativo, enviado a Lula, ajudou na sua derrota. Sei de muitos cidadãos que tomaram esta posição, e já na época circulou em São Paulo um manifesto de intelectuais pelo voto nulo, ou por um voto à esquerda do governo. Posso dizer
que, dentre os de minha família, não fui eu quem votou na Marta.

IHU On-Line – O senhor acredita que aquele PT ideológico, de luta, de esquerda acabou?
Tales Ab´Sáber
- Este processo me parece selado. O PT é hoje um partido pragmático, cuja primeira ação no governo foi expulsar a ala esquerda do partido, para não ter nenhum texto ou contradição no seu alinhamento amplo, geral e irrestrito com as práticas políticas clientelistas e fisiológicas da tradição brasileira, e com o financeirismo desbragado dos mercadores de dinheiro público. Na seqüência do processo de normalização do PT com o continente da política e dos poderes brasileiros, o partido foi sacrificado e destruído em todo seu patrimônio histórico, com todas as suas lideranças hoje respondendo na justiça por graves crimes de responsabilidade e corrupção, apenas para salvar a pele da liderança popular e demagógica que é o Lula, que com o retorno ao poder deve trabalhar para salvar a pele de seus companheiros. O que esperar de tal gente?

IHU On-Line – Por que a oposição ao governo federal não é uma oposição questionadora e efetiva como o próprio PT fazia?
Tales Ab´Sáber
- Porque o PT alinhou Á direita, e a direita não mudou de posição. A passagem drástica do PT para as práticas políticas tradicionais e para o campo das garantias de ganho dos verdadeiros detentores do poder no Brasil equalizou todas as forças políticas, esvaziando o interesse e as paixões no campo, e o que se discute hoje é apenas uma ideologia de superfície, de caráter personalista: quem é melhor governante do mesmo, que não mudará de nenhum modo, o líder popular que andou de pau-de-arara quando criança, ou o bom moço de classe média paulista, o filho que toda a mãe pequeno burguesa gostaria de ter?

IHU On-Line – Qual a sua impressão: um segundo mandato de Lula ou um governo de Geraldo Alckmin? Como ficaria o Brasil em cada caso?
Tales Ab´Sáber
- Creio que, de todo modo, pior. Já há um adendo para aprofundar a reforma da previdência, tucano-petista, que aguarda na gaveta de qualquer candidato eleito, não há nenhuma sinalização de transformação na política de juros e de produção, não há nenhum interesse político na fortificação de salários, que no Brasil historicamente recuam drasticamente após as eleições, o que não deve alterar em nada a vergonhosa pior concentração de renda do mundo, que é brasileira. A vitória da propaganda desbravada, e antipolítica, deve prorrogar indeterminadamente estes governos de propaganda da república particular do Brasil. Vamos ver como, neste cenário horrível para os pobres e as classes médias, enfim, para os trabalhadores, vão reagir às pós-modernas indústrias do crime e da corrupção generalizadas, as únicas que têm de fato crescido.

IHU On-Line – Qual o futuro da direita no País caso ocorra um segundo mandato de Lula? O senhor acha que Lula trabalharia um enraizamento do PT no Estado brasileiro?
Tales Ab´Sáber
- Lustrando a bola de cristal, e com base no que todos sabemos, vou arriscar um cenário quase óbvio. A direita é fisiológica e interessada. Já vimos o PFL sinalizando com o fim da aliança com o tucanato, que esgotou de fato a sua força ideológica real, e que somava o velho coronelato nordestino, advindo praticamente incólume da ditadura militar, com a elite tecnocrática paulista e uspiana, sintonizados com o momento atual do capitalismo global. Como na ocasião daquela aliança, em 2003, a direita vai demonstrar a sua enorme capacidade de mudar de lado, fazer mesura ao poder e encontrar um nicho de sobrevivência e reposição dos seus antiqüíssimos redutos e práticas de poder pré-modernos. Uma parte dela, provavelmente significativa, deve seguir Lula, como o cachorro que segue o cheiro da raposa. Não há nenhum constrangimento do PT a este movimento, que é esperado e bem-vindo, e que vai servir ao pacto de normalização da política, esquecendo-se de todos os culpados, no interior da política e no exterior dela, no mercado. O tucanato vai viver uma crise radical das forças políticas regionais distintas que compõem o PSDB, e que já encenaram sua guerra, na surdina e nos bastidores, nas decisões ao redor da candidatura Alckmin. Será difícil manter a hegemonia dos tucanos de alta plumagem paulista sobre o partido, mas eles vão tentar, e a recente e patética carta de FHC é uma tentativa, bem fraca, de sair nesta disputa com uma cabeça à frente. O PT deve dissipar completamente o seu caráter ideológico e de esquerda, aliás, o que já ocorreu, virando alguma coisa entre um PMDB, sócio remido do estado brasileiro, e o PSDB, uma sigla de elite de três ou quatro caciques em busca de uma mísera boa idéia.

 

 

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