Edição 386 | 19 Março 2012

Um grave mal entendido contemporâneo: a inversão do tempo e do saber

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Márcia Junges

“Neurose de destino” na qual a depressão prevalece, a melancolia surge quando perdemos nossa ingenuidade, observa Alfredo Jerusalinsky. Para aplacarmos a angústia de nossa ignorância, vivenciamos a morte antecipadamente a fim de darmos sentido à vida

Ficha técnica

Nome: Melancolia

Nome original: Melancholia

Cor filmagem: Colorida

Origem: Dinamarca

Ano de produção: 2011

Gênero: Drama

Duração: 130 min

Classificação: 14 anos

Direção: Lars von Trier

Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Charlotte Rampling, John Hurt, Stellan Skarsgard, Rudolf Klein-Rogge, Udo Kier

Um mal epidêmico, produto de nossa perda de ingenuidade e da garantia que as crenças religiosas outorgavam, além da perda da fé na razão da ciência. Esses são os pilares atuais da melancolia coletiva, assinala o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Nada nos garante o que irá aparecer no horizonte no próximo amanhecer. Trata-se, então, de um horizonte tomado pela melancolia: uma neurose de destino onde prevalece a depressão”. A discussão antecipa aspectos do debate que será conduzido por Jerusalinsky após a exibição de Melancolia, filme de Lars von Trier, cuja exibição acontece em 21-03-2012, na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dentro da programação da Páscoa 2012.

“Efetivamente é um filme sobre o ‘mal de hoje’: a depressão causada pela ciência, que não é qualquer depressão”, explica o psicanalista. “O sujeito contemporâneo padece pela captura de sua subjetividade numa inversão do tempo e do saber: supõe que sabe antecipadamente o que só saberá depois; supõe que as coisas acontecerão de acordo com seu saber, sendo que só saberá depois de acontecerem. Eis aí seu fracasso cotidiano”.

Doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo – USP e mestre em Psicologia Clínica, Alfredo Jerusalinsky lecionou na Universidade de Buenos Aires e atualmente é psicanalista Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, da Association Lacaniènne Internationale – ALI e colaborador do Grupo de Estudos Sigmund Freud – SIG. É também professor convidado na Universidade de Fortaleza – Unifor.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que aspectos Melancolia é um filme sobre o “mal de hoje”, a depressão?

Alfredo Jerusalinsky – Efetivamente é um filme sobre o “mal de hoje”: a depressão causada pela ciência, que não é qualquer depressão. Esse é um ponto em que Niestzche , Lars von Trier  e eu, talvez, possamos coincidir. Embora a Lars von Trier seguramente lhe importe um rábano minha coincidência e, certamente, Nietzsche ficaria tentado de me oferecer um sorriso “Colgate” diante da hipótese de eu não coincidir. Como disse Justine no filme: “Mas não estou me comportando bem? Estou sorrindo para vocês o tempo todo”.

IHU On-Line – O que essa produção revela sobre a subjetividade do sujeito em nosso tempo?

Alfredo Jerusalinsky – Eu não sei até que ponto se aplica legitimamente, no caso, o termo “revelar”, porque não sei qual é o nível de consciência do diretor, e ao mesmo tempo escritor, do que ele colocou em ato no seu filme. De qualquer modo, nietzscheanamente falando, que ali houvesse pouca consciência até poderia ser anotado como mais um mérito. Inclinar-me-ia mais a falar de um desvelamento do que de uma revelação.

O que a meu ver fica desvelado é a inversão do tempo e do saber: é pelo que se sabe depois que os acontecimentos anteriores se ordenam, e não pelo que se sabe antes (como a ciência moderna pretende). Mas também é pelo que acontece depois que o saber se constitui como sendo anterior e não porque efetivamente se saiba antes (como as religiões propõem).

Dialética esta, do tempo e do saber, que a ciência popperiana e a razão cartesiana tentam ainda congelar numa causalidade linear. É por isso que, se a versão religiosa entre pela via do racionalismo (“Deus é um grande matemático”, como diria Nicolau de Cusa  em curiosa coincidência com Stephen W. Hawking ), ciência e religião passam a compartilhar, na pós-modernidade, um ponto essencial de convergência nas suas suposições: saber e tempo correm sincronizados e paralelos, respondendo a uma lógica similar e, portanto, funcionando como aliados num vetor de progresso e sempre previsíveis. Mas, sobretudo, as verdades são sempre anteriores, portanto, elas já estão ali, é só descobri-las, ou decifrá-las, ou atuar em consonância com elas. Quanto mais, tempo e saber somente podem sofrer a nuança de pequenos atrasos, seguramente não mais dos poucos segundos de impontualidade que se atreveria a cometer um lorde britânico.

O sujeito contemporâneo padece pela captura de sua subjetividade numa inversão do tempo e do saber: supõe que sabe antecipadamente o que só saberá depois; supõe que as coisas acontecerão de acordo com seu saber, sendo que só saberá depois de acontecerem.

Eis aí seu fracasso cotidiano. Ele, então, para acalmar a angústia de sua ignorância (a ciência erra, a religião não oferece garantias) vivencia antecipadamente a morte para dar sentido à vida (experiências radicais), e vivencia intensamente a vida para dar sentido a morte (overdose de gozo).

IHU On-Line – Por outro lado, pode-se perceber essa produção de von Trier através de uma leitura “pessimista” da existência, algo como o mito de Sileno?

Alfredo Jerusalinsky – Que a melancolia seja epidêmica é produto de termos perdido a ingenuidade. E quando a ingenuidade se perde, perde-se para sempre. Temos perdido a garantia que as crenças religiosas outorgavam, temos perdido a fé na razão da ciência. Nada nos garante o que irá aparecer no horizonte no próximo amanhecer. Trata-se, então, de um horizonte tomado pela melancolia: uma neurose de destino onde prevalece a depressão. Gozamos da vida sob a ameaça de virarmos nada. Justine, certamente, é a versão feminina do sátiro Sileno , pai adotivo de Dionísio e seu mestre na arte de beber, sabedor do nada ser,  aquele que no mesmo gesto dá ao rei Midas a fortuna e a morte: lembre-se de que por gratidão Sileno outorga a Midas o dom de transformar em ouro tudo o que toca, o que acaba matando-o de fome. É o cunhado de Justine quem metaforiza Midas (a quem sua fortuna não poupa), assim como pode suspeitar-se uma sombra dionisíaca no seu devasso pai (que vive na prática incessante do bacanal).

IHU On-Line – No filme, melancolia não é apenas o nome de uma doença, como o de um planeta em rota de colisão com a Terra. Em que medida a sabedoria de Justine é uma espécie de “profecia” sobre a vida?

Alfredo Jerusalinsky – Justine-Sileno é nomeada diretora de arte: precisamente no polo em que Nietzsche a colocaria para fazer oposição à razão, ou, como disse seu cunhado: “em coisas tão delicadas é necessário levar em conta que a ciência pode errar”. Razão não é da ordem da poiese.  Arte, tal como o desvelam as instalações contemporâneas, é para mostrar com que facilidade vira-se de ser pouco a nada. Então, qual é a verdade que a poiese sustenta segundo Nietzsche e Lars von Trier? Será que entre razão eterna de um lado, e niilismo do outro, não há nada mais do que vazio?

Pela minha parte gostei mais do profeta: o Abraham, belo potro negro, nobre e primário nos seus afetos, fiel aos limites de sua compreensão, capaz de sentir quando tudo ameaça a acabar. Gosto de seu alarme e respeito sua inquietação e ansiedade, de sua negativa a entrar na zona de risco, de sua poética pastagem perto do buraco que fica além da conta: o buraco 19.

IHU On-Line – O fato de apontar a vida ou a Terra como maus, e que nossa existência é um eterno sofrer, não seria uma tentativa de antropologizar algo que não tem, em sua essência, esse caráter?

Alfredo Jerusalinsky – A propósito de Abraham, precisamos lembrar que foi graças a ele e seus magos que Moisés conseguiu tirar a seu povo de Egito logrando o faraó e encaminhando-o para a “Terra Prometida”, e sem o qual certamente nem Jesus Cristo teríamos. A metáfora surrealista de von Trier coloca sobre a mesa que a pós-modernidade acaba até com a “terra prometida”, a das doces maçãs “à sombra de cujas macieiras, quando elas crescerem, daqui a 10 anos, poderás te sentar quando estiver triste, e assim poderás te sentir protegida e confortada”. Justine esquece da pequena foto dessa terra que constitui o melhor poema de amor que ela recebeu: ela substitui a poesia pelos lemas (slogans), ou seja, significantes carregados de doces maçãs por signos cheios de nada. É essa, sua escolha, a que determina que seus pés tenham afundado pesadamente na grama, e se enredem na “lã cinzenta”.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar alguma questão não perguntada?

Alfredo Jerusalinsky – Que tenhamos descoberto nossa radical solidão, que conhecimento não é sinônimo de saber, que nada garante o que irá aparecer no nosso horizonte, que a terra que habitamos tem limites, que toda antecipação é fictícia, são descobertas que não permitem concluir que o real é malvado. Definitivamente, somos nós que inventamos os objetos e as realidades que acreditamos perder.

Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Alfredo Jerusalinsky e publicadas na IHU On-Line:

* Mãe e mulher não são sinônimos. Entrevista publicada na edição 359 da Revista IHU On-Line, de 02-05-2011; 

* Doze perguntas sobre o inferno. Entrevista publicada na edição 323 da Revista IHU On-Line, 29-03-2010 nas Notícias do Dia; 

* A impunidade alenta o retorno da barbárie. Entrevista publicada em 17-08-2008 nas Notícias do Dia;

* Borat, Babel e A Rainha e suas relações. Entrevista publicada em 09-03-2007 nas Notícias do Dia.

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