Edição 197 | 25 Setembro 2006

Pe. Vaz e o diálogo com a modernidade

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IHU Online

O diálogo com a modernidade atravessa a obra de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Sua forma “foi marcada pelos instrumentos conceituais adquiridos na rigorosa formação escolástica e na fecunda apropriação de elementos da filosofia moderna e contemporânea”. A afirmação é do filósofo Marcelo Perine, em entrevista exclusiva, por e-mail, à IHU On-Line, refletindo sobre o legado do importante filósofo brasileiro. Baseado na diretriz de Santo Agostinho, crer para entender e entender para crer, Pe. Vaz teve uma “convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava”, menciona Perine. E conclui que isso pode ser aplicado “às relações entre a fé e os compromissos éticos e políticos que incumbem ao cristão na qualidade de cidadão”.


Coordenador da Comissão da área de Filosofia e Teologia da CAPES, Perine é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (FFNSM) e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), na Itália, com a tese Filosofia e violência. Um estudo sobre o sentido e a intenção da filosofia de Eric Weil, publicada pela Editora Loyola em 1987. Fez pós-doutorado na Università Vita Salute San Raffaele (UVSSR), na Itália. De sua produção intelectual, citamos as obras Um conflito de humanismos. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2001, escrito em parceria com Henrique Cláudio de Lima Vaz; Platão. República. São Paulo: Scipione, 2002 e Quatro lições sobre a ética de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola, 2006. Perine esteve na Unisinos em 4-9-2006, quando proferiu a aula inaugural do curso de Filosofia da Universidade, intitulada Implicações éticas da cosmologia platônica. Uma leitura do mito do político. Sobre o tema, confira a entrevista que concedeu à edição 194 da IHU On-Line, de 4-9-2006, editoria Entrevista da semana, intitulada As implicações éticas da cosmologia de Platão.

IHU On-Line - Como se encontram ética e política na pessoa e no pensamento do Pe. Vaz?
Marcelo Perine
- Na pessoa do Pe. Vaz, encontram-se como se encontram na vida de qualquer honesto cidadão que tem consciência da sua dignidade humana e dos seus direitos e deveres de cidadão. Como cristão e como sacerdote, ele sempre foi reconhecido pela integridade com que viveu as exigências da moral cristã e pela fidelidade exemplar com que respondeu ao apelo da vocação religiosa e sacerdotal. No seu pensamento, os temas da ética e da política tiveram um lugar destacado. Basta um rápido olhar para a sua bibliografia para dar-se conta de que foram objetos privilegiados da sua meditação filosófica. Ética e política encontram-se no pensamento do Pe. Vaz como se encontram os grandes temas que fazem de um pensamento uma verdadeira filosofia e de um conjunto de escritos uma verdadeira obra filosófica. Com efeito, os seus escritos não traduzem a fugacidade de uma rapsódia dado que o seu pensamento se apresentou, desde muito cedo, como uma vigorosa apreensão do seu tempo no conceito, para fazer aqui uma evocação hegeliana.

IHU On-Line - Quais foram as principais contribuições de Vaz para compreendermos as relações entre fé-ética-política?
Marcelo Perine
- Reporto-me aqui à entrevista concedida a Marcos Nobre e José Marcio Rego, publicada em Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2000. Naquela entrevista a pergunta era sobre a relação com a religião e a fé, mas a resposta pode ser transposta para o problema da relação entre fé, ética e política. Pe. Vaz diz, substancialmente, que jamais experimentou conflitos interiores a respeito da compatibilidade entre suas convicções religiosas e sua profissão de filósofo e professor de filosofia, porque se guiou sempre pela diretriz de Santo Agostinho : crer para entender e entender para crer. Essa dialética agostiniana entre fé e razão, que assegurou ao Pe. Vaz uma convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava, pode ser aplicada às relações entre a fé e os compromissos éticos e políticos que incumbem ao cristão na qualidade de cidadão. A fé cristã não é um código de ética nem muito menos um programa político. Mas a adesão à oferta de salvação que Deus faz à humanidade na pessoa de seu filho, Jesus Cristo, tem conseqüências muito concretas no comportamento ético das pessoas e dos grupos, assim como nas suas opções políticas. Nesse ponto, Pe. Vaz nunca tergiversou, seja no seu comportamento pessoal, seja nas posições teóricas que assumiu em seus escritos.

IHU On-Line - De que forma Vaz dialoga com a modernidade? Como sua filosofia demonstra a crise que vive esse período?
Marcelo Perine
- O diálogo com a modernidade atravessa a obra filosófica do Pe. Vaz desde as suas primeiras publicações. As reflexões sobre o marxismo no final dos anos 1950, sobre cristianismo e consciência histórica no início dos anos 1960, o enfrentamento de temas candentes como a história, a ideologia e os direitos humanos nos anos 1970, as penetrantes análises da sociedade, das relações entre ética e política, da relação entre cristianismo e pensamento utópico, assim como sobre a democracia e a dignidade humana e sobre a idéia de revolução nos anos 1980, tudo isso culmina na impressionante síntese dos anos 1990 em torno dos temas da ética, da cultura e da própria modernidade, que desembocarão na sua última obra Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. A forma, portanto, do diálogo com a modernidade foi marcada pelos instrumentos conceituais adquiridos na rigorosa formação escolástica e na fecunda apropriação de elementos da filosofia moderna e contemporânea. Seria longo tentar dizer como a sua filosofia demonstra a crise desse período. Entretanto, estou convencido de que uma preocupação ocupou o horizonte intelectual do Pe. Vaz nos últimos vinte anos da sua reflexão: a crise ética como crise de sentido, cuja expressão mais aguda é o niilismo.

IHU On-Line - Como o senhor vê a forma como o Pe. Vaz expôs a problemática entre a consciência contemporânea da modernidade e a consciência cristã?
Marcelo Perine
- Penso que o próprio Pe. Vaz respondeu de maneira magistral a essa questão na já citada Conversa com filósofos brasileiros. Solicitado a explicar uma afirmação: “Pensar a liberdade ou unir dialeticamente liberdade e razão, eis a única tarefa da filosofia”, que aparece no artigo Filosofia e Cultura, ele disse o seguinte: “Como encontrar um lugar para a liberdade no universo da razão? Eis o desafio maior e, de certo modo, a tarefa única da filosofia, pois se trata de um problema que tem repercussões imediatas e decisivas na antropologia filosófica, na ética, na política, nas concepções, em suma, do universo, do ser humano e de Deus. Para o cristianismo, esse tornou-se, a partir sobretudo de Santo Agostino, um problema fundamental para a reflexão teológica, pois a fé se apresenta como uma “geratriz de razão”, no dizer de E. Gilson: Crede ut intelligas. Ele encontrou uma solução genial em Santo Tomás de Aquino , no qual nos inspiramos na nossa Antropologia filosófica, vol. 1. Pensar a liberdade foi, talvez, o leitmotiv maior do filosofar hegeliano, como procuramos mostrar no capítulo sobre a ética de Hegel , na Introdução à ética filosófica I”. Portanto, é principalmente na sua Antropologia filosófica que deve ser buscada a resposta à pergunta pelo modo como ele expôs a problemática entre a consciência contemporânea da modernidade e a consciência cristã.

IHU On-Line - O que significaria as bases de uma ética universal de fundo transcendental traçada por ele?
Marcelo Perine
- A resposta anterior abre caminho para responder a esta pergunta. Creio que as bases de uma ética universal de fundo transcendental devem ser buscadas numa filosofia que consiga encontrar o lugar para a liberdade no universo da razão. Quero recordar uma afirmação que aparece no impressionante artigo sobre Presença de Tomás de Aquino no horizonte filosófico do século XXI, publicado em 1998, na Revista Síntese, e incluído como capítulo 15 do seu último livro, Raízes da modernidade São Paulo: Loyola, 2001. Ele diz: “A formação histórica da chamada modernidade está provavelmente chegando ao seu fim. O que virá depois não será uma qualquer pós-modernidade mas a passagem da modernidade como programa e civilização para a modernidade como forma definitiva de uma nova civilização”. Pois bem, é diante desse horizonte, cujas linhas de fundo do seu relevo são constituídas pelos temas da história, da metafísica e da ética, que ele pergunta se é possível justificar a presença intelectual de Tomás de Aquino “num século que se anuncia como cenário das mais espetaculares transformações nas idéias e nas vidas dos homens, e que assistirá à provável consagração definitiva de uma civilização não-religiosa?” A sua resposta é afirmativa e, das quatro posições doutrinais que atestam a originalidade criadora do pensamento de Tomás de Aquino filósofo, quero citar apenas a quarta, que consiste na empresa de “integração orgânica da ética clássica, recebida sobretudo da sua conceptualização aristotélica, na tradição da ética cristã”. Creio que nessa luminosa intuição filosófica estaria o núcleo da resposta à pergunta pelas bases de uma ética universal de fundo transcendental.

IHU On-Line - De que forma o pensamento do Padre Vaz influenciou a ética que foi se formando na civilização brasileira?
Marcelo Perine
- A pergunta tem dois pressupostos passíveis de contestação. Não me parece evidente que se possa falar de uma civilização brasileira e nem que uma ética se tenha formado nela. Certamente se pode falar de cultura brasileira e de grandes influências que foram determinantes para a sua formação. É inegável que a moral de inspiração cristã teve um papel determinante na formação do ethos brasileiro desde a sua origem. Mas, a essa influência outras vieram se somar ao longo da nossa história. O positivismo, por exemplo, teve grande penetração nas elites brasileiras quase concomitantemente ao seu surgimento na França. Uma possível influência do pensamento do Pe. Vaz deve ser pensada no âmbito da reflexão filosófica, inspirada no humanismo cristão, sobre os grandes desafios éticos que o mundo moderno apresenta. Nesse ponto, a sua influência foi considerável. Basta pensar em alguns de seus textos que tiveram grande impacto em diferentes meios que podem ser chamados de formadores de opinião. Destaco apenas um à guisa de exemplo: “Cristianismo e mundo moderno”, publicado em 1968 na revista Paz e Terra, que logo depois foi fechada pelo governo militar após o AI-5 . Eu poderia citar também outros grandes textos formadores de opinião, publicados na primeira fase da revista Síntese, como os três sobre Marxismo e Filosofia (1959), os dois sobre Cristianismo e consciência histórica (1961), além das grandes reflexões sobre a ética, a política, a cultura, a história e a própria filosofia, publicados na nova fase da revista Síntese e reunidos posteriormente nos volumes de Escritos de Filosofia, a partir do final dos anos 1980.

IHU On-Line - Como ele entendia e vivia a relação fé e política em seu contexto? Ele tinha “inimigos” políticos e filosóficos?
Marcelo Perine
- O Pe. Vaz, antes de ter sido um filósofo e, certamente, depois de tê-lo sido, foi um homem de fé. Ora, viver a fé cristã implica assumir as exigências que ela apresenta para qualquer ordem social e política na qual ela se encarne. Ao longo da sua vida, Pe. Vaz respondeu de diferentes maneiras, todas elas coerentes com o contexto em que viveu, a essas exigências da sua fé. Por exemplo, no final dos anos 1960, como muitos de seus amigos provenientes da Juventude Universitária Católica (JUC) convergiram para o grupo político chamado Ação Popular , mesmo sem nunca ter sido membro do movimento, teve nele uma participação informal e colaborou na redação de alguns de seus documentos, como ele mesmo declarou em entrevista coordenada pelo Prof. Franklin Leopoldo e Silva , publicada nos Cadernos de Filosofia Alemã (n. 2, 1997). A partir dos anos 1970, dedicado totalmente ao magistério, na UFMG e, a partir de 1975, na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas, sua atuação foi mais na linha da reflexão sobre os problemas de fronteira entre a fé e a cultura. Não creio que ele tenha tido inimigos políticos nem filosóficos. Ele sofreu um processo político, mas a partir de 1968, por força de um habeas corpus recebido do Superior Tribunal Militar, não teve mais problemas com os órgãos de segurança. Certamente teve divergências teóricas com intelectuais brasileiros, mas nunca se ouviu em suas conferências, nem se encontra em seus textos, nenhuma palavra hostil ou mesmo deselegante com relação a essas pessoas. O tratamento que sempre deu a essas discordâncias foi estritamente teórico quanto ao conteúdo, e extremamente cordial quanto à sua forma de expressão, mesmo quando manifestou profundas discordâncias teóricas.

IHU On-Line - Hoje, quem retoma o pensamento do Padre Vaz no Brasil?
Marcelo Perine
- Não estou certo de que se possa dizer que algum filósofo hoje, no Brasil, retome o pensamento do Pe. Vaz. É sabido que em muitos centros acadêmicos no Brasil os livros do Pe. Vaz são lidos, estudados e até servem de base para cursos, como, por exemplo, os Escritos de Filosofia II. Ética e cultura, a Antropologia Filosófica ou a Introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 2000. Sabemos também que um crescente número de dissertações de mestrado e de teses de doutorado estão sendo produzidas sobre diferentes aspectos da sua obra. Eu mesmo já dirigi uma tese de doutorado que foi publicada na Coleção Filosofia, das Edições Loyola. Trata-se da obra de Rubens Godoy Sampaio , Metafísica e modernidade. São Paulo: Loyola, 2006. O Prof. Rubens é também autor de outro livro sobre o Pe. Vaz, fruto da sua dissertação de mestrado: O ser e os outros. São Paulo: Unimarco, 2001. No momento, eu dirijo outra tese de doutorado sobre a filosofia do Pe. Vaz no Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia da PUCSP. Como se vê, há um grande interesse pela obra do Pe. Vaz, mas não creio que se possa falar de alguma retomada do seu pensamento por algum filósofo brasileiro.

IHU On-Line - O senhor afirma que os debates de moral e política podem ser articulados “numa teoria da ação que sirva de fundamento antropológico adequado às exigências éticas de um conceito de democracia que seja, ao mesmo tempo, expressão da dignidade humana e efetivação da comunidade ética”. Como isso é possível? O senhor poderia dar mais detalhes sobre essa afirmação?
Marcelo Perine
- Se não me engano, essa afirmação ou algo parecido encontra-se num texto que apresentei em 2001, na semana de filosofia em homenagem aos 80 anos do Pe. Vaz, e que foi publicado no volume Saber filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, organizado por João Augusto Mac Dowell . Veja bem, a teoria da ação do Pe. Vaz está formulada no segundo volume da sua Introdução à ética filosófica. Nas duas partes em que se divide a obra são analisadas as estruturas subjetiva, intersubjetiva e objetiva do agir ético e da vida ética. Essa teoria da ação é perfeitamente coerente com a concepção do homem que o Pe. Vaz elabora com grande acribia nas três seções da parte sistemática da sua Antropologia filosófica, ao analisar as estruturas fundamentais do ser humano, as suas relações fundamentais e a unidade fundamental do seu ser. Ora, é essa concepção do ser humano e do seu agir que permite pensar filosoficamente um conceito de democracia como o espaço eminentemente político da relação entre os homens tecida como relação da igualdade na diferença ou como “domínio da igualdade reconhecida”, como escreveu o Pe. Vaz num texto de 1985 sobre Democracia e sociedade. Portanto, esse conceito político de democracia supõe um radical fundamento ético para que possa permitir que a idéia de liberdade, constitutiva da consciência moral dos cidadãos, ocupe na comunidade democrática a posição e matriz conceptual que a idéia de justiça ocupa no universo político. Pensada com base nas exigências éticas intrínsecas à ação política, a democracia é o regime que mais adequadamente expressa a dignidade humana, que reside no seu ser moral. Foi exatamente isso que pretendeu mostrar o Pe. Vaz num texto de 1988 sobre Democracia e dignidade humana. E foi isso que eu pretendi mostrar naquele texto de 2001, do qual me permito citar aqui um parágrafo da conclusão: “Pensar a democracia como a mais elevada expressão política da dignidade humana, cuja raiz se encontra no seu ser moral, é o mesmo que pensar possibilidades ainda inéditas para nossa história, possibilidades que nos permitam inaugurar caminhos para atravessar seus inevitáveis desertos e, mais ainda, formular estratégias que conjurem de nossa civilização um triste destino de criadora de desertos”.

IHU On-Line -  Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Marcelo Perine
- Sim. Quero concluir, recordando aqui o parágrafo final de um pequeno texto que apresentei num colóquio realizado na PUC-Rio, poucos meses depois do falecimento do Pe. Vaz, e que foi publicado num volume que organizei em sua homenagem: Diálogos com a cultura contemporânea. São Paulo: Loyola, 2003. O texto se intitula Pe. Vaz: a plenitude de uma vida filosófica, e conclui-se assim: “A meu ver, a explicação para a admirável unidade entre a vida e a obra de Pe. Vaz está em que nele a razão e o coração estiveram irmanados, reconciliados, na serena busca da verdade, que desde a origem foi a estrela polar da filosofia. Eis porque quanto mais ele se aproximou das suas vésperas, tanto mais a vida filosófica de Pe. Vaz revelou aquilo mesmo que a fez matinar. Foi por isso que no encerramento da Semana Filosófica em homenagem aos seus 70 anos, concluí minha saudação com um adágio italiano que, a meu ver, se aplicava perfeitamente à vida e à obra filosófica de Pe. Vaz. Com aquelas palavras, então, ditas no tempo presente, hoje, saudosamente no irreversível pretérito, concluo também esta homenagem: Padre Vaz era come il vino, invecchiando diventa fino”.

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