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Márcia Junges
Acabam de ser traduzidas do russo para o português as obras Guerra e Paz, de Tolstoi, O duplo, de Dostoievski, e Nova antologia do conto russo (1792-1998). Na opinião da crítica literária Aurora Bernardini, “a tradução indireta é hoje quase inadmissível. A não ser que o tradutor escreva uma outra obra”. Enquanto o traço característico fundamental dos escritos dostoievskianos é a exacerbação, em Tolstói isso não existe: “Ele consegue o estranhamento (considerado um de seus traços fundamentais) por outras vias e no sentido em que o os formalistas russos o vêem: capaz de fazer com que as coisas sejam vistas sob uma luz diferente, como que ‘pela primeira vez’”.
Bernardini é graduada em Letras - Língua e Literatura Inglesa, mestre em Letras - Língua e Literatura Italiana, doutora em Literatura Brasileira e livre-docente em Literatura Russa pela Universidade de São Paulo – USP, onde leciona. Traduziu, com Haroldo de Campos, poemas de Giuseppe Ungaretti em Daquela estrela à outra (São Paulo: Ateliê, 2003) e de Marina Tsvetáeiva em Indícios flutuantes (São Paulo: Martins Fontes, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Acabam de ser traduzidas diretamente do russo ao português Guerra e Paz, de Tolstoi , O duplo, de Dostoievski , e Nova antologia do conto russo (1792-1995), coordenada por Bruno Gomide. O que essas traduções trazem de novidade sobre a literatura russa considerando que são vertidas do original?
Aurora Bernardini - Em primeiro lugar, são apresentadas ao público brasileiro obras de autores importantes e desconhecidos, aqui: Karamzin , Odoévski, Platónov , Chalámov , entre eles; de autores conhecidos, obras de gênero diferente (de quem se conhecia romance, contos); de autores traduzidos indiretamente, obras em tradução direta. A introdução de Bruno Gomide ao livro mencionado explica muito bem os critérios e os possíveis méritos das escolhas.
IHU On-Line - Qual é a importância e diferença de se ler uma tradução feita direito do original?
Aurora Bernardini - A tradução indireta é hoje quase inadmissível. A não ser que o tradutor escreva uma outra obra. Este foi o caso jocoso que contou Ricardo Piglia num evento recente na Livraria Cultura, em São Paulo: um escritor chinês, que não conhecia espanhol, ouviu a tradução oral em chinês do Dom Quixote , de um tradutor que não sabia escrever chinês. A partir daí o escritor escreveu um novo Dom Quixote em chinês que – espera Piglia - quem sabe venha a ser retraduzido para o espanhol. Ele está curiosíssimo e o caso é verdadeiro.
Mesmo em se tratando de tradução direta, ninguém garante que o êxito será positivo. Há uma série de considerações a respeito, algumas das quais, baseadas em minha própria experiência, explicitei no texto “Algumas manhas da tradução” em Literatura Italiana traduzida no Brasil e Literatura brasileira traduzida na Itália (org. Patrícia Peterle. Florianópolis: EDUFSC, 2011). Mas a premissa que abre o ensaio, é a seguinte: Em Algumas manhas da tradução refiro-me à tradução literária, obviamente, pois, embora a tradução não artística possa e – é de se desejar – deva ser também elegante, basta-lhe ser correta, compreensível e irrepreensível ( vejam-se, quanto a isso, os itens do princípio empírico de Hjelmslev em seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem: primeiro o rigor, depois a simplicidade, etc.). Mas à tradução literária isso não basta: sua linguagem tem suas manhas, justamente as que a tornam artística, marcando – como bem vê Roman Jakobson – sua diferença da linguagem comum”.
IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, a senhora diz que a comutação da pena de morte em trabalhos forçados na Sibéria teve impacto decisivo sobre a obra de Dostoiévski. O que muda em sua literatura depois desse episódio?
Aurora Bernardini - O estilo de Dostoiévski é variado, tanto antes quanto depois de sua experiência como condenado. Depende do projeto do livro que passa a escrever, embora haja características constantes. Mas o que muda nele, após a comutação da pena de morte em condenação a trabalhos forçados, é sua atitude para com a vida, que passou a ser vista sob o prisma do milagre, e para com a instituição do czarismo, contra a qual antes – mesmo que idealisticamente – conspirava, e que passou a preservar, depois.
IHU On-Line - Após os trabalhos forçados, podemos dizer que vida e obra se imbricam e são inseparáveis em Dostoiévski? Por quê?
Aurora Bernardini - Mesmo antes dos trabalhos forçados, vida e obra se imbricavam em Dostoiévski. Quanto maior a experiência de vida (real e virtual: não se esqueça a importância da leitura, para o autor), mais rica a sua obra.
IHU On-Line - Como podemos compreender o conceito de polifonia apontado por Bakhtin na obra dostoievskiana? Há algum outro autor que se assemelhe a Dostoiévski nesse aspecto?
Aurora Bernardini - A polifonia em Dostoiévski, como magistralmente mostrado por M. Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski (2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997), de leitura obrigatória, era a possibilidade que ele conferia a cada personagem de expor e viver sua ideia-força, independente da autoridade (e mesmo da intenção) do autor. É uma grande revolução na história do romance que – como diz Bakhtin, marca o fim do paternalismo na literatura. Entre outros autores que procedem como Dostoiévski, nesse aspecto, lembro Tchekhov , em cujos contos cada personagem tem sua voz e seu estilo próprios. Na literatura ocidental moderna e pós-moderna, praticamente só se escreve assim.
IHU On-Line - A exacerbação como traço fundamental de Dostoiévski encontra paralelo na obra de Tolstoi? Que traço é igualmente marcante e característico na obra de Tolstoi?
Aurora Bernardini - Na obra de Tolstói não há exacerbação. Ele consegue o estranhamento (considerado um de seus traços fundamentais) por outras vias e no sentido em que o os formalistas russos o vêem: capaz de fazer com que as coisas sejam vistas sob uma luz diferente, como que “pela primeira vez”.
IHU On-Line - Em que medida as obras desses dois autores questionam o lugar do homem no mundo?
Aurora Bernardini - Em Dostoiévski os protagonistas têm que passar pela experiência do mal, mesmo se redimindo depois e optando pelo bem ( algum deles). Em Tolstói o que importa é “saber ouvir a voz da consciência” que diz ao indivíduo o que é bem e o que é mal, e “ fazer aos outros o que se deseja seja feito a si”. Como ele era um escritor a tese (ou seja, a voz dele enquanto autor imperava sobre suas personagens) ele constrói seus romances com isso em mente.
IHU On-Line - Por que a senhora afirma que Tolstoi disseca, e Dostoiévski reconstrói?
Aurora Bernardini - Dostoiévski reconstrói depois da experiência do mal, Tolstói disseca para expor a voz da consciência.
IHU On-Line - Qual é sua obra preferida desses dois escritores?
Aurora Bernardini - De Dostoiévski: Memórias do subsolo (Trad. SCHNAIDERMAN, Boris. São Paulo: Editora 34, 2003); de Tolstói: A morte de Ivan Ilítch (Rio de Janeiro: BUP, 1963).
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Aurora Bernardini - Cada obra dos dois autores abre aspectos interessantíssimos: o discurso é infindável.
Leia mais...
Confira outras entrevistas concedidas por Aurora Bernardini à IHU On-Line:
* Um poeta revolucionário nas distorções das regras da gramática e da sintaxe. IHU On-Line número 282, de 17-11-2008, Gerard Manley Hopkins: poeta e místico. Do cotidiano imediato ao plano cósmico
* A exacerbação como traço fundamental de Dostoiévski. IHU On-Line número 296, de 08-09-2009
Baú da IHU On-Line
A Revista IHU On-Line já publicou uma edição especial e outras entrevistas sobre Dostoiévski. Confira.
* Fiódor Dostoiévski: pelos subterrâneos do ser humano. Edição nº 195, de 11-09-2006
* Polifonia atual: 130 anos de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Entrevista com Chico Lopes, Edição nº 288, de 06-04-2009
* Dostoievski chorou com Hegel. Entrevista com Lázló Földényi, Edição nº 226, de 02-07-2007