Edição 383 | 05 Dezembro 2011

Desenvolvimento, criatividade e poder. Uma leitura de Celso Furtado

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César Bolaño

Furtado definia criatividade e inovação como atributos dos agentes com poder econômico, entendido como a capacidade de alterar parâmetros sociais, influenciando o comportamento dos outros em seu favor, ou seja, de provocar mudanças de atitude ampliando sua participação na apropriação do excedente.

A inovação crucial trazida pela burguesia mercantil europeia, no quadro da dissolução do feudalismo, graças à expansão da forma mercadoria, está relacionada com uma ruptura no plano da racionalidade, de modo que o excedente passa a ser investido, crescentemente na própria acumulação de capital.

Com a Revolução Industrial, esse processo chega a transformar radicalmente o próprio processo produtivo, que passa a ser administrado de acordo justamente com a lógica expansiva do capital, antes limitada às operações de intermediação comercial. Isso promove um aumento de produtividade sem precedentes, sob a hegemonia de uma nova fração burguesa especializada na produção industrial. Com isso o conjunto do mercado mundial se transforma, pois a pujante economia inglesa – e no seu encalço, o conjunto dos países que constituiriam o novo centro capitalista – torna-se forte polo demandante, promovendo a especialização também das economias periféricas, que se expandem via exportação de commodities.

No caso dos países centrais, esse processo se dará em condições históricas de relativa escassez de mão de obra, de modo que a classe trabalhadora, assalariada, poderá, a partir de um determinado momento, apropriar-se de uma parte dos ganhos de produtividade do sistema. Os capitalistas respondem através de recorrentes avanços tecnológicos poupadores de mão de obra. A pressão social aumenta, pela participação dos trabalhadores no consumo dos novos bens criados pela industrialização, ao passo que as velhas estruturas de poder pré-capitalistas vão sendo destruídas.
Na periferia, ao contrário, o progresso técnico penetra pela via do consumo, por parte das elites locais, dos novos produtos ofertados pelas economias industriais. Para tal, e dadas às condições de oferta elástica de mão de obra, a expansão do consumo por parte daquelas elites não promoverá transformações de fundo nas estruturas sociais. Ao contrário, haverá em geral um reforço dos mecanismos tradicionais de exploração do trabalho, visando ampliar a participação no excedente dos grupos locais com poder econômico.

Essa é a diferença entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, de acordo com a perspectiva histórico-estrutural latino-americana, que rejeita explicitamente as visões convencionais das etapas do desenvolvimento. Trata-se, ao contrário, de dois processos simultâneos, fruto de um mesmo impulso modernizador, relativo à difusão da civilização industrial. A relação que se estabelece, então, entre o centro desenvolvido e a periferia subdesenvolvida é de dependência cultural, derivada da importação, pelas elites periféricas, de uma cultura material ligada a padrões de consumo, estilos de vida e, com eles, valores, formas de pensamento e estruturas mentais transplantados do centro.

Com os processos posteriores de industrialização periférica, via substituição de importações, os padrões tecnológicos centrais são copiados, de modo que a dependência cultural se duplica em dependência econômica e tecnológica, cristalizada nas estruturas industriais instaladas na periferia. Note-se que a perspectiva de Furtado é oposta à das teorias da dependência cultural vigentes no campo da comunicação nos anos 1960 e 1970, que partiam de uma recepção althusseriana, bastante criticável, das teorias da dependência de corte sociológico. A perspectiva de Furtado é não economicista, não apenas porque incorpora elementos de ordem sociopolítica na explicação da estrutura do sistema, mas sobretudo porque incorpora, na base da sua explicação, o elemento cultural.

O seu conceito de cultura, na verdade, situa-se, segundo afirma Octavio Rodriguez, em diferentes trabalhos, em três níveis: cultura material, cultura institucional e cultura espiritual. Os processos de inovação e de criatividade situam-se em cada um desses níveis. A criatividade político-institucional é essencial para a transformação das estruturas e se vincula fortemente ao elemento de poder citado no início.
Note-se que não apenas os grupos hegemônicos detêm poder econômico. Os trabalhadores, por exemplo, através de seus sindicatos e organizações, podem influenciar – como de resto influenciaram, nos países centrais – as formas específicas que assume o desenvolvimento. Justamente a luta contra o subdesenvolvimento passa, para o autor, de forma crucial pela incorporação das amplas massas excluídas e, especialmente, no que nos interessa mais de perto, por uma autonomia cultural só possível pela valorização da cultura popular, depositária de valores éticos e visões de mundo garantidoras de uma identidade que se opõe aos padrões hegemônicos da cultura global.

Assim, contra o mito do desenvolvimento econômico (imitativo e excludente), o “verdadeiro desenvolvimento” passa por uma mudança na balança de poder em favor das grandes massas, cuja criatividade, em todos os níveis, especialmente no da cultura espiritual, que é aquela mais vinculada à construção das identidades, deve ser estimulada e respaldada por uma política cultural que garanta as mais amplas condições de autonomia. O que não pode deixar de incluir políticas de comunicação efetivamente democráticas e vinculadas a um projeto de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentável, privilegiando o local e o concreto, em oposição àquele do grande capital monopolista.

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