Edição 383 | 05 Dezembro 2011

Uma crise das finanças para além da crise do capitalismo

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Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

Na visão de Rubens Ricupero, a crise que assola os Estados Unidos e a zona do Euro é consequência do fato de que esses países não foram capazes de fazer reformas que se impunham à luz da crise financeira iniciada já em 2008

“Noto que quase todos, quando falam na atual crise, tendem a associá-la a uma crise do capitalismo. O que existe é uma crise nos países que praticam um tipo de capitalismo dominado pelas finanças globalizadas”. A opinião é do economista e diplomata Rubens Ricupero, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ele, o que a crise atual coloca não é um ponto de interrogação sobre o regime capitalista em geral, tal como adotado na Índia, na China, na Ásia, mas no modelo de domínio da economia pelas finanças. “Essa crise coloca um grande ponto de interrogação sobre o futuro do sistema econômico dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, países que se deixaram levar pelo domínio das finanças”. A partir da sua análise, afirma que “a crise que começou nos Estados Unidos como uma crise do setor bancário, dos imóveis, e depois se propagou pela Europa como também uma crise do setor bancário e financeiro, agora passou a ser uma crise soberana dos países, atingindo diretamente suas finanças”.
Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo. Diplomata de carreira desde 1961, foi representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Assumiu ainda os ministérios do Meio Ambiente entre 1993 e 1994 e da Fazenda em 1994 e foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, nos mandatos de 1995 a 1999 e de 1999 a 2004.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Podemos falar que estamos diante de uma crise do capitalismo?

Rubens Ricupero –
O regime capitalista como tal é uma versão do que é aplicado nos países mais avançados (Estados Unidos, Europa e Japão). Hoje há uma dicotomia: um lado do mundo vive em dificuldade muito grande há vários anos, mas há países como a China, a Índia, os asiáticos, em geral, e, em grau menor, na América Latina e no Oriente Médio, que estão crescendo e fazendo com que a média de crescimento da economia mundial seja razoável. Nos últimos anos, desde que a crise se tornou mais grave, o crescimento mundial tem sido em torno de 4%, que é uma taxa bastante boa em termos históricos. E, nesses países em que a economia cresce, o regime econômico que se aplica é também o capitalista. É basicamente um regime de mercado, de grandes empresas de capital privado, com as decisões básicas de produção e de consumo tomadas de forma descentralizada por meio do mercado e não por meio de um planejamento central, com acúmulo de lucros e desigualdade na acumulação de riquezas. Portanto, é preciso tomar esse cuidado. Noto que quase todos, quando falam na atual crise, tendem a associá-la a uma crise do capitalismo. O que existe é uma crise nos países que praticam um tipo de capitalismo dominado pelas finanças globalizadas, sem quase nenhum controle sobre os movimentos internacionais de capital, ou no nível de endividamento, e com muito pouco controle em termos de produtos sofisticados ou muito complicados, como os derivativos. É preciso qualificar bem isso. É esse tipo de capitalismo que está ameaçado no momento e, por outro lado, provoca a crise do euro, que é uma vítima desse processo. O que a crise atual coloca não é um ponto de interrogação sobre o regime capitalista em geral, tal como adotado na Índia, na China, na Ásia, mas no modelo de domínio da economia pelas finanças. Essa crise coloca um grande ponto de interrogação sobre o futuro do sistema econômico dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, países que se deixaram levar pelo domínio das finanças e terão que voltar a fazer com que elas estejam a serviço da produção.


IHU On-Line – Onde se encontra a raiz da crise do euro?

Rubens Ricupero –
Ela vem dessa crise das finanças globalizadas, porque a Europa foi contagiada pela crise das chamadas hipotecas podres (subprime) dos Estados Unidos. Essas hipotecas que tinham sido vendidas, em grandes pacotes consolidados, a bancos europeus, quando deixaram de ser pagas, atingiram esses bancos muito duramente. Os estados ou governos europeus tiveram que socorrer os bancos com o receio de que a crise financeira/bancária pudesse levar a um colapso total da economia. E, ao fazerem isso, os países europeus, de certa forma, assumiram as dívidas, os passivos dos bancos, socializaram esses prejuízos e os estenderam como grandes despesas de orçamento, tornando-se altamente deficitários. Esses países ampliaram muito as dívidas públicas a um ponto tal que, num certo momento, isso começou a comprometer a economia dos governos europeus. Portanto, a crise que começou nos Estados Unidos como uma crise do setor bancário, dos imóveis, e depois se propagou pela Europa como também uma crise do setor bancário e financeiro, agora passou a ser uma crise soberana dos países, atingindo diretamente suas finanças. E como isso atingiu vários países da zona do euro, sobretudo a Grécia, Irlanda, Portugal e agora Espanha e Itália, que são todos do grupo dos 17 que adotaram o euro, obviamente, essa crise põe em perigo a moeda comum. Portanto, o colapso da economia desses membros ameaça a saúde de toda a área do euro.


IHU On-Line – O Estado de bem-estar social irá resistir à crise ou poderá sair debilitado dela?

Rubens Ricupero –
Na verdade, o Estado de bem-estar social não tem uma ligação direta com essa crise. Como já foi salientado pelo economista americano Paul Krugman , os países europeus que se encontram atualmente em melhor situação, que não adotam o euro, mas são da União Europeia, como a Dinamarca ou a Suécia, por exemplo, praticam o estado de bem-estar social e estão com desempenho excelente. A Suécia tem crescido mais agora do que no período de cinco ou seis anos atrás, antes da crise. E a Dinamarca, um dos países mais sólidos da União Europeia, acaba de ter uma eleição em que os sociais-democratas ganharam e voltaram ao poder. O que se deve dizer é que a crise nesses países que estão afetados, como Portugal, Espanha, Itália e Grécia, está levando a uma terapêutica de corte do orçamento e isso está afetando as despesas com o bem-estar social. Mas não são essas despesas que estão na causa da crise. Elas são, de certa forma, como a população em geral, vitimas inocentes de uma crise.


IHU On-Line – O mercado está substituindo a democracia na Europa?

Rubens Ricupero –
Está, em certa medida, ditando terapêuticas que não são as mais adequadas. No momento, esses países estão com problemas muito graves, já de recessão, e precisam voltar a crescer, até mesmo para poder diminuir a proporção da dívida. E os mercados impõem a terapêutica errônea que é apenas a do corte, da contenção de despesas, de uma austeridade que vai agravar ainda mais a situação, porque vai acentuar a recessão e reduzir a receita de impostos, portanto, vai tornar mais difícil a recuperação desses países. O mercado está, de fato, influindo de uma maneira muito negativa – entre outras formas – pelo trabalho das agências de classificação de riscos, que estão agravando a situação de países que já se debatem com problemas ao depreciarem as notas desses países, tornando ainda maior o preço dos juros a ser pago. Mas tudo isso é consequência de um fato: os países europeus, assim como os Estados Unidos, não foram capazes de fazer reformas que se impunham à luz da crise financeira. Quando a crise começa em 2008, era nítido que havia um número grande de reformas que eram indispensáveis. Uma delas era de controlar a maneira como agem as agências de classificação de risco. Em segundo lugar, controlar a emissão de produtos financeiros de alta periculosidade, como os derivativos, “por cima do balcão”, sem nenhuma transparência. Além disso, aumentar de maneira significativa o capital dos bancos; diminuir a alavancagem, isto é, a possibilidade de empréstimos muito maiores do que os capitais dos bancos. Tudo isso ou não se fez em termos absolutos, ou só se fez de maneira muito insuficiente.


IHU On-Line – O Brasil se sairá bem dessa nova crise mundial ou ela tende a ser mais prejudicial que a crise de 2008?

Rubens Ricupero –
O Brasil, em 2008, teve um baque grande na indústria. Muita gente aqui não percebeu, porque isso ocorreu, sobretudo, no último trimestre do ano de 2008 e no começo de 2009. Como a recuperação se deu durante o ano de 2009, essa queda não se traduziu num número muito negativo durante o ano todo. Mas ela foi grande. O que houve é que as medidas tomadas pelo Banco Central e pelo Ministério da Fazenda no Brasil foram rápidas e adequadas, que permitiram que o país se recuperasse de uma forma relativamente acelerada. Isso se deveu, em parte, ao fato de que a China, que também adotou um pacote de estímulo à economia interna muito vigoroso, teve um êxito enorme e manteve a demanda dos produtos oriundos do Brasil, sobretudo o minério de ferro e a soja. Desta vez, nós vamos ter dificuldades de tipo diferente. A China já está desacelerando. Ela tem problemas com o crédito bancário, além de preocupações com a inflação. E isso já está se refletindo no consumo do aço e do minério de ferro. Na medida em que se acentua a crise europeia, é claro que a exportação chinesa diminui e esse país vai se voltar mais para as necessidades internas. No caso do Brasil, há um outro problema, que é muito diferente do que ocorre na Europa ou nos Estados Unidos. O crescimento da China é basicamente impulsionado pelos investimentos internos, visto que a China tem uma capacidade gigantesca de investir. No Brasil, a taxa de poupança interna é pequena – 16% – e a taxa de investimento, contando os capitais que vêm de fora, também é modesta – 18 ou 19%. Então o Brasil cresce não pelo investimento, mas pelo consumo. O consumo interno aqui no país representa hoje mais de 60% do tamanho da economia. Ainda está longe dos 70% dos Estados Unidos, mas está mais longe ainda dos 36% da China, que tem muito pouco consumo interno. A tendência é que o consumo interno no Brasil continue, porque quase não há desemprego, os aumentos salariais que foram dados agora nos dissídios são, em geral, altos, e vamos ter um aumento do salário mínimo no ano que vem entre 13 e 14%. Tudo isso vai manter a demanda dentro do Brasil muito grande. Mas está acontecendo aqui no país, de alguns anos para cá, um fenômeno preocupante, que era apenas incipiente em 2008/2009, que é o seguinte: embora o consumo interno seja muito forte, a indústria brasileira está se contraindo. É um paradoxo, porque a indústria deveria estar aproveitando o aumento do consumo interno. Mas o que está acontecendo é que, como a indústria nacional perdeu muita competitividade em relação à China, basicamente, muitos setores da indústria, em vez de produzir, estão se transformando em importadores de produtos chineses, reduzindo a sua produção no Brasil. Com isso os empregos que deveriam ser criados pelo consumo no Brasil são criados na China. O modelo brasileiro está se aproximando da sua exaustão. Daqui a alguns anos, para crescer, o Brasil vai precisar aumentar a taxa de poupança e de investimento, e terá que melhorar a competitividade e a produtividade da economia como um todo, e da indústria em particular, que está muito fraca. E isso depende de fatores que a política atual ainda não tocou.


IHU On-Line – Há riscos de uma recessão mundial?

Rubens Ricupero –
Mundial, não. Para haver uma recessão mundial, tecnicamente é preciso que haja dois trimestres seguidos com uma produção abaixo de zero na economia mundial como um todo. Isso não vai acontecer, porque a economia mundial continua sustentada pelo crescimento da China, da Índia, dos países asiáticos, e em grau menor pela América Latina. O mais provável é que vá haver uma recessão na Europa (e já há indícios de que esteja ocorrendo) e talvez nos Estados Unidos. O que não há dúvidas é de que vai haver uma redução na taxa de crescimento da economia.


IHU On-Line – Como sair ou romper com a subordinação da política ao capital financeiro?

Rubens Ricupero –
As medidas são claras e conhecidas. Temos que voltar à situação que imperava até o começo dos anos 1980, que foi quando a chegada ao poder do presidente Reagan , nos Estados Unidos, e antes, da Margaret Thatcher , na Inglaterra, desencadearam uma onda de desregulamentação do sistema financeiro. Tudo indica que vamos ser obrigados a voltar ao tempo em que existiam controles que asseguravam uma gestão mais prudente das questões financeiras. Até agora não está havendo muito sinal do apetite de países como Estados Unidos e Inglaterra por essas reformas. Tanto que na última reunião do G-20, na França, a ideia de uma taxa sobre as transações financeiras, proposta pela França, com apoio de muitos países, inclusive o Brasil, foi rejeitada pelos americanos e ingleses. É provável que apenas a continuação dessa crise leve a essa evolução.


Leia mais...

>> Rubens Ricupero já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.

* A teologia e a ideia de desenvolvimento nacional. Edição 103, de 31-05-2004

* “Vivemos uma desindustrialização precoce”. Edição 218, de 07-05-2008

* “Brasil só pode competir com os gigantes na área da agricultura”. Edição número 267, de 04-08-2008

* Na busca de um sistema financeiro internacional mais equilibrado. Edição 330, de 24-05-2010

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