Edição 380 | 14 Novembro 2011

Deus: uma invenção?

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Rodrigo Coppe

Publicamos a seguir o comentário de Rodrigo Coppe Caldeira, doutor em Ciência da Religião e professor da PUC Minas, sobre o livro Deus: uma invenção?, de René Girard, André Gournelle e Alain Houziaux. Para Coppe Caldeira, a obra é “uma ótima aproximação da teoria de René Girard, fornecendo os elementos principais para a compreensão de reflexão seminal para o momento em que vivemos, marcado por inúmeras questões no que diz respeito, especialmente, à crise de memória e aos debates em torno do multiculturalismo”. Confira o artigo.

GIRARD, R.; GOUNELLE, A.; HOUZIAUX, A. Deus: uma invenção?. São Paulo: É Realizações, 2011.

Caiu-me às mãos um livro que traz uma interessante coleção de três ensaios: do pensador católico René Girard, do teólogo protestante André Gournelle e do pastor Alain Houziaux, assim como um debate entre eles, que foi realizado num templo da Èglise Réforme de l’Étoile de Paris. Os três buscaram, em suas respectivas falas, responder a uma intricada pergunta filosófica: “Deus: uma invenção?”. Meus primeiros contatos com o pensamento de René Girard se deu faz uns três anos. De fato, confesso que de lá para cá não pude me dedicar da maneira que gostaria, nessa, que para mim, é uma das reflexões mais profundas – e de tal modo intelectualmente exigente – e originais do pensamento do século XX. Ler e tirar consequências práticas da leitura da obra girardiana demanda um longo caminho. Deparar-se a primeira vez, por exemplo, com Coisas ocultas desde a fundação do mundo  e Eu via Satanás cair do céu como um raio  e não ficar, de certa forma, perdoe-me a expressão, embasbacado com a complexidade e eloquência da proposta Girard é não compreender o mínimo das possíveis consequências que podem advir da sua leitura. O que proponho neste breve texto é apenas a apresentação deste livro, focando, em especial, na resposta de Girard para a questão proposta em seu título, que se concentra, especialmente, em apresentar as bases de sua teoria.

As primeiras, e peremptórias, palavras de Girard são: “‘Deus é uma invenção?’, eis uma pergunta à qual respondo sem hesitar: ‘Não’”. A fim de qualificar sua resposta, o pensador francês traz em sua fala os vários elementos que compõem sua teoria sobre a fundação das sociedades e das civilizações. Inicialmente, apresenta a pedra fundamental de sua construção teórica: o mimetismo. Tal capacidade de imitar, especialmente a imitação do desejo alheio é o que leva, para Girard, à rivalidade mimética, pois, diz, “quanto mais desejo esse objeto que você deseja, mais ele lhe parecerá desejável, e mais, por sua vez, ele se mostrará desejável aos meus olhos” (p. 67). Esta rivalidade pode tender ao infinito, levando à experiência da vingança, a primeira invenção humana de acordo com o intelectual. Levada ao extremo, transcendendo tempo e espaço, recaindo em parentes e famílias, a vingança tem algo de religioso. Sendo tolerada, a espécie humana se destruiria. Para Girard, vivemos atualmente numa situação apocalíptica, “no sentido de revelação drástica da violência humana” (p. 68). Se podemos observar a perpetuação da humanidade é porque em algum momento algo interrompeu o processo, impedindo que os homens matassem-se uns aos outros. Girard nos diz que quando as sociedades estão em crise, quando seus participantes desejam a mesma coisa e buscam obtê-la forçosamente, ocorre o que chama de crise mimética, marcada por violência extrema. Em sua análise das narrativas mitológicas, Girard concluiu que a maioria começa por uma crise deste tipo, como por exemplo a peste do mito edipiano. Para não desaparecerem totalmente devido à instalação da crise mimética, Girard acredita que uma solução foi elaborada. O objeto pelo qual a luta se instala devido ao desejo compartilhado, desaparece num estágio da crise, e o antagonismo torna-se puro entre os contentadores. Assim afima: “Uma reconciliação paradoxal torna-se possível: se todos os homens que desejam a mesma coisa nunca se entendem, porém, aqueles que odeiam juntos o mesmo adversário se entendem com muita facilidade. De certa forma, essa harmonia é o que chamamos de política! Também é o que chamo de mecanismo da vítima única, o mecanismo do bode expiatório” (p. 69).
Eis um dos pontos centrais da teoria girardiana. O herói mítico torna-se a vítima unânime e será morto por todos aqueles que, ao esquecerem o seu próprio adversário, adotam o adversário do vizinho, levando assim toda a comunidade a se posicionar de um mesmo lado contra um único indivíduo. Girard dá um nome a este fenômeno: “linchamento unânime”. O papel extraordinário de tal fenômeno pode ser lido nos grandes textos sagrados, também nos textos bíblicos, nos mitos e nos próprios Evangelhos, de forma mais atenuada. Tal linchamento reconcilia a comunidade pelo seu aspecto unânime, já que a vítima é vista como mau, pois aquele que causou a violência. Por outro lado, torna-se um deus, ao mesmo tempo mau e bom, já que seu sacrifício gera a paz e reconcilia a comunidade. Por trás deste deus existe um mecanismo, que chama de bode expiatório. Ter um bode expiatório “é não saber que se tem um, é ver essa vítima como o verdadeiro culpado” (p. 71). Assim, para Girard, o sacrifício é a primeira instituição humana e a repetição do mecanismo se dá pela procura da comunidade de experimentar novamente a reconciliação inicial trazida por ele. 

Tal dinâmica é observada também no cristianismo. Tendo no centro de sua narrativa o desejo de uma comunidade pela morte de sua vítima, os Evangelhos reformulam o ciclo que leva ao “linchamento unânime”. Por isso, muitos antropólogos assumiram a ideia de que o cristianismo e os mitos eram muito parecidos “e que o erro dos cristãos foi buscar um mito a mais para ter a verdade” (p. 72). Para Girard, estes antropólogos não compreenderam as diferenças entre os mitos, a Bíblia e o cristianismo. Estes dois últimos “têm uma dimensão da verdade que nenhuma outra religião pode ter, pois retomam o mesmo fenômeno, e em vez de ir até o fim da mentira, eles a contradizem e na realidade revelam a mentira tal como ela é” (p. 72). O intelectual francês explica que pela Paixão de Cristo reconheceu-se que os homens desempenham papel de criadores de vítimas e perseguidores. Assim, “é por proclamar as regras do Reino e renunciar totalmente à violência sacrificial, que o próprio Cristo é sacrificado” (p. 72). Para Girard, é possível apontar inúmeros trechos evangélicos a fim de sustentar sua tese, como “A pedra desprezada pelos construtores tornou-se a pedra angular”, “É melhor que um só homem morra e que o povo seja salvo”. É a experiência da Paixão pela qual Cristo mostra o que todos nós fazemos. Por outro lado, Girard diz que os deuses arcaicos, “mesmo não sendo reais, não são de forma alguma inventados” (p. 74), mas são as interpretações equivocadas de nossa própria violência. O cristianismo e o Antigo Testamento podem ser muito parecidos com as narrativas míticas, porém, são também muito diferentes, pois, no caso dos Evangelhos, “em vez de deixarem enganar por essa mentira, como fazem os mitos e as religiões arcaicas, denunciam na crucificação o que ela é de fato: uma injustiça detestável que os homens devem agora evitar, pois ela nunca será compensadora” (p. 74).
Como uma primeira leitura, este texto editado pela É Realizações, que tomou decididamente a frente destas importantes publicações do pensamento girardiano no Brasil, considero como uma ótima aproximação da teoria de René Girard, fornecendo os elementos principais para a compreensão de reflexão, para mim, seminal para o momento em que vivemos, marcado por inúmeras questões no que diz respeito, especialmente, à crise de memória e aos debates em torno do multiculturalismo.

Leia mais...

>> Rodrigo Coppe Caldeira já concedeu entrevistas para a IHU On-Line:

•    Tradicionalismo e conservadorismo católicos: as ideologias em jogo. Entrevista publicada em 30-07-2011;
•    ''A Igreja Católica encontrou o seu papel no século XX?''. A atualidade do Vaticano II. Entrevista publicada em 26-03-2011.

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