Edição 380 | 14 Novembro 2011

O complexo caminho da bossa nova ao rap

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Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira

Para Walter Garcia, a canção popular brasileira extrapolou a banalidade que se espera das produções feitas para competir no mercado

Ao estabelecer possíveis relações entre a bossa nova e o rap, o professor da USP, Walter Garcia, afirma que “se formaram dois sistemas na canção brasileira de mercado (...). Num desses sistemas, João Gilberto ocupa o lugar central. Noutro, o Racionais MC’s ocupa o lugar central”. A afirmação foi feita em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.

Walter Garcia da Silveira Junior é professor da área temática de Música do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – USP, pesquisa a canção popular comercial e a canção popular tradicional brasileira. Violonista e compositor, é doutor e mestre em Literatura Brasileira pela USP. Publicou o livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto (São Paulo: Paz e Terra, 1999).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram as maiores dificuldades para conciliar os estudos da linguística aos estudos da música popular brasileira e do rap?

Walter Garcia – Sou formado em jornalismo pela Universidade de São Paulo. Desde quando iniciei o mestrado na área de literatura brasileira, em 1993, também na USP e sob orientação de José Antonio Pasta, sujeitei o meu (limitado) estudo de linguística à compreensão do trabalho de análise da canção desenvolvido por Luiz Tatit . Assim, não houve nenhuma dificuldade, uma vez que nunca estudei qualquer tópico de linguística senão para estudar a canção popular brasileira.

IHU On-Line – Em que medida o seu estudo sobre João Gilberto, trazido no livro Bim Bom, contribui para o estudo da música dos Racionais MC’s? Como é percorrer o caminho que vai da bossa nova de João Gilberto ao rap dos Racionais MC’s?

Walter Garcia – Não sei avaliar se a minha dissertação de mestrado sobre João Gilberto , depois publicada em livro, contribui ou não para o estudo dos Racionais MC’s . Mas penso que não há exatamente um caminho da “bossa nova” ao “rap”. Aliás, como não é nada fácil lidar com esses rótulos, seria melhor afirmar que não vejo um caminho que vá de João Gilberto aos Racionais MC’s. Penso, sim, que se formaram dois sistemas na canção brasileira de mercado (remeto-me à noção de sistema trabalhada por Antonio Candido  na literatura, adaptando-a evidentemente às condições de realização da canção popular). Num desses sistemas, João Gilberto ocupa o lugar central. Noutro, o Racionais MC’s ocupa o lugar central.

IHU On-Line – Haveria algo em comum entre o gesto de João Gilberto e o gesto de Mano Brown ?

Walter Garcia – Sim, o fato de ambos serem grandes artistas. Nesse sentido, aguçar a sensibilidade ouvindo um pode ajudar no reconhecimento da qualidade artística de outro. Mas é lógico que, para tanto, a sensibilidade deve ultrapassar determinações de classe que, muitas vezes, se confundem com o chamado gosto pessoal.

IHU On-Line – De que se servem os Racionais MC’s em termos literários e musicais, na tentativa de traduzir esse olhar a partir da periferia de São Paulo?

Walter Garcia – Sem nenhuma pretensão de identificar todos os elementos, é possível dizer que o Racionais MC’s, até o momento, se serviu de: a) coragem para cantar a relação entre a vida nas periferias e a vida no centro expandido de São Paulo – ou, de modo mais amplo, entre a vida nas periferias urbanas e a vida das classes A e B no Brasil; b) inteligência para identificar a amplitude dessa relação econômica e social, uma relação que se estabelece de vários modos mas sempre com desvantagem para a vida nas periferias, sobretudo para a vida dos negros que nelas habitam; c) coragem e inteligência para converter em orgulho diversas marcas de humilhação; d) talento para cantar a violência, sem deixar de ser contundente, sem fazer melodrama e sem vender sadismo; e) talento, outra vez, para rimar e para ritmar palavras de rua, comunicando-se assim de forma simples e bastante eficiente com quem lhe interessa; f) talento, uma vez mais, para utilizar figuras da mídia (propagandas comerciais, marcas de sucesso, personagens de filmes) na construção poética, desmitificando-lhes o poder de encantamento.

IHU On-Line – Para você, o rap produzido no Brasil extrapola os domínios da canção?

Walter Garcia – Para mim, nos melhores momentos dos dois sistemas aos quais aludi, a canção popular brasileira extrapolou a banalidade que se espera das produções feitas para competir no mercado. Para citar um só disco de João Gilberto, é o caso de seu “Album Branco”, de 1973. Mas também se poderia citar Caymmi e seu violão, lançado por Dorival Caymmi em 1959, ou ainda Clara Crocodilo, lançado por Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno em 1980, como exemplos de produção artística desse sistema. Já para citar um só disco do Racionais MC’s, é o caso de Sobrevivendo no inferno, de 1997. E também se poderia citar Tarja Preta, CD duplo lançado por Gog  em 2004, como exemplo de produção artística desse outro sistema.

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