Edição 380 | 14 Novembro 2011

Samba, MPB e Mangue Beat: a cultura em permanente transformação

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Graziela Wolfart e Pedro Bustamante Teixeira

Carlos Sandroni fala sobre a literatura como forma de registro musical, comparando com outras formas de resgate das canções do passado, como as partituras e as gravações

“No fundo, tradição e modernidade são elementos que têm muito mais interação do que geralmente se fala. Costuma-se apresentá-los como sendo coisas opostas. Na realidade, um conceito depende do outro. Tradição é uma expressão que começa a ser usada justamente com mais força no sentido que é dado hoje em dia junto com a modernidade. A ideia de tradição é algo que pressupõe uma transformação constante. As coisas, para permanecerem, precisam mudar. A alternativa para isso é a morte. A única maneira de algo permanecer é mudar. E tradição pressupõe a mudança”. A reflexão é do professor e músico Carlos Sandroni, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line.

Carlos Sandroni possui graduação em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e doutorado em Musicologie pela Université de Tours (Universite Francois Rabelais). Atualmente é colaborador da Universidade Federal da Paraíba e professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Entre seus livros publicados citamos Mário contra Macunaíma – cultura e política em Mário de Andrade (São Paulo, Vértice, 1988) e Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-33 (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001). É também compositor e letrista. Algumas de suas produções lítero-musicais foram gravadas por artistas como Adriana Calcanhoto, Olívia Byington, Clara Sandroni e Milton Nascimento.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em que medida a literatura serve como documento histórico e como as partituras e gravações contribuíram para a formação de uma música popular brasileira?

Carlos Sandroni –
A literatura serve como documento, lembrando que o registro é feito a partir da maneira como o autor do texto literário vê ou repercute os elementos musicais que insere. Temos no Brasil uma série de escritores que falaram, de uma maneira ou outra, sobre música: o próprio Machado de Assis , Freire Jr., Julio Ribeiro e Aloísio Azevedo. Esses autores, por exemplo, repercutem no seu texto literário as impressões que lhes foram causadas por vivências musicais. Outra questão é saber até que ponto essa repercussão representaria o documento da vida musical, que é um pouco diferente, porque essa música que aparece no texto vem transfigurada pela experiência do autor e pela escrita literária, que não é a própria música, mas a transfiguração feita pelo autor literário. Com essa ressalva, ainda é possível tentar enxergar, através dos olhos do escritor, alguma coisa do que seria essa vida musical também. Até porque outras fontes às quais a gente recorre para falar da música do passado também não deixam de transfigurar. Nunca se alcança o passado em si, mas sempre através de alguma fonte que o transfigure. Do mesmo jeito que recorremos a partituras, recorrem-se também a escritores. A música do século XIX, quando não tinha gravação, é uma presa arisca, difícil de alcançar. Com relação às partituras, também são uma fonte muito rica. No entanto, mais uma vez, constituem uma fonte parcial, porque muita música que era feita no século XIX, principalmente a música popular, não era transcrita em partitura.


IHU On-Line – Em um artigo famoso intitulado Adeus à MPB você problematiza esta sigla tão consagrada já que observa que ela não se sustenta mais, principalmente pelo uso do qualificativo popular. Como você vê essa questão hoje? O que é e o que não é MPB na produção atual?

Carlos Sandroni –
A minha abordagem com relação a isso é a de observador. Minha preocupação principal não é criar uma definição do que é MPB, mas procurar observar como socialmente essas definições são usadas. Em minha formação, feita nos anos 1970, 1980, na faculdade e nos meus estudos como músico, o sentido que aprendi de MPB era uma simples abreviação da ideia de música popular brasileira, que era muito ampla e abrangia todo um leque muito diverso do que podia se fazer no Brasil enquanto música popular, difundida amplamente através dos meios de comunicação modernos. Portanto, era popular nesse sentido. Ao mesmo tempo, era brasileira, porque eram gêneros musicais em sua maioria criados no Brasil. O caso emblemático, sem dúvida, é o samba, com algumas variantes, e abria para músicas que tendiam desde estilo erudito, de Tom Jobim , até autores que podiam quase ter sido criados numa experiência de tradição oral. Todo esse espectro entrava nessa ideia de MPB. Dos anos 1990 para cá essa ideia de um espectro muito amplo, mas que pode ser resumido e unificado pela expressão “música popular brasileira”, perdeu muito da sua vigência. Nos anos 1990 os gêneros que se tornaram mais populares, como o axé, o sertanejo, o brega e até mesmo o pagode romântico, também foram criados no Brasil e tinham um apelo popular muito forte e uma difusão nacional. Mas, diferente da MPB, eles não serviam como identificação de uma ideia de povo brasileiro no sentido mais político que a MPB inicialmente teve. Até por causa do momento nos anos 1960 e 1970, pelo contexto ditatorial que se vivia, quando se fala em “povo brasileiro” tinha uma conotação política forte, ou seja, era um popular qualitativo. Não dependia de quantos discos se vendia. Ao passo que quando se fala no popular dos anos 1990, já tem um sentido quantitativo, ou seja, é popular o que vende muito, que é o popular do axé, do brega, do sertanejo, que está um pouco esvaziado do conteúdo político.


IHU On-Line – Como vão os estudos da canção brasileira ou que tratam do diálogo entre música popular e literatura no Nordeste? Quais são as perspectivas? Como é acompanhar o debate fora do eixo Rio-São Paulo?

Carlos Sandroni –
É bastante interessante, sobretudo por causa das teses e dissertações que vêm sendo produzidas na área de Letras, de História, de Sociologia. Do meu conhecimento, o único polo aqui do Nordeste que vem fazendo dessa discussão um tema central é no Ceará, com o professor Nelson Barros da Costa , na Universidade Federal do Ceará. Lá se criou um núcleo de pesquisa sobre essa questão da canção popular. O Nelson é da área de Letras e tem feito vários encontros em torno disso. Fora do Ceará há trabalhos na área de História aqui na Paraíba, e na área de Sociologia, no Recife, sobre o manguebeat , que deu margem a muitas dissertações e teses em Sociologia e em Comunicação.


IHU On-Line – Como você avalia o tombamento do samba do recôncavo baiano como patrimônio histórico imaterial da humanidade?

Carlos Sandroni –
O termo “tombamento” vem sendo usado popularmente, mas tecnicamente não é correto, porque justamente por ser patrimônio imaterial o termo legal é “registro” e não tombamento, já que a ideia de tombamento, usada para cultura material, pressupõe a restrição a qualquer tipo de alteração. Não se pode mexer num prédio tombado sem autorização. No caso da cultura imaterial não existe essa restrição. As pessoas que fazem e praticam o samba de roda e outros gêneros musicais que foram registrados como patrimônio imaterial podem alterar e fazer como quiserem. O patrimônio imaterial pressupõe uma cultura viva, um patrimônio vivo, e assim sendo está sempre sendo mudado e mexido pelas pessoas que o fazem. E sobre isso, eu avalio muito positivamente. A partir do reconhecimento que a Unesco deu ao samba de roda e que contribuiu muito com a mobilização dos próprios sambadores, levou-se à criação de uma associação de sambadores e do chamado “pontão de cultura do samba de roda”, além da casa do samba em Santo Amaro. Todo esse movimento foi visto como muito positivo.


IHU On-Line – Como tradição e modernidade interagem no discurso Mangue Beat?

Carlos Sandroni –
Há uma interação muito forte. No fundo, tradição e modernidade são elementos que têm muito mais interação do que geralmente se fala. Costuma-se apresentá-los como sendo coisas opostas. Na realidade, um conceito depende do outro. Tradição é uma expressão que começa a ser usada justamente com mais força no sentido que é dado hoje em dia junto com a modernidade. A ideia de tradição é algo que pressupõe uma transformação constante. As coisas, para permanecerem, precisam mudar. A alternativa para isso é a morte. A única maneira de algo permanecer é mudar. E tradição pressupõe a mudança. O Mangue Beat é um exemplo muito bom disso, na medida em que começou a usar elementos considerados tradicionais, como os tambores de maracatu, junto com uma postura de banda de palco, com guitarra, bateria e baixo elétrico. Isso ocasionou uma valorização e uma repercussão positiva nas pessoas que estavam fazendo esses movimentos e que estavam num momento de desvalorização por parte da sociedade. Na medida em que o Mangue Beat foi para os festivais de rock, também os maracatus passaram a ser mais valorizados nas próprias comunidades que os praticavam.

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