Edição 380 | 14 Novembro 2011

Fazer música: uma prática de cidadania

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Graziela Wolfart

Na visão do professor norte-americano Christopher Dunn, a canção brasileira é uma boa indicação da diversidade do povo brasileiro

Estudioso da música e da cultura brasileira, o professor Christopher Dunn percebe que “além de tratar de temas políticos e sociais que têm a ver com a temática da cidadania, a própria prática de fazer música, muitas vezes, sobretudo no Brasil contemporâneo, é uma prática de cidadania”. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, ele afirma que “há uma tradição muito forte na música popular brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e fazer com eles música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do Brasil, de deglutir o que vem de fora e fazer algo novo”. E completa: “o Brasil é um país completamente integrado na economia mundial e está muito ligado à internet, sobretudo a classe média. Então não há dúvidas de que tais tendências culturais globalizadas irão exercer uma influência muito forte sobre a cultura brasileira”.

Christopher Dunn é professor de literatura e estudos culturais brasileiros na Tulane University, de Nova Orleans, Estados Unidos. É autor do livro Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian Counterculture (University of North Carolina Press, 2001) e coorganizador de Brazilian popular music and globalization (Routledge, 2001). Atualmente trabalha com a questão da contracultura dos anos 1970.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que a canção brasileira revela sobre as características de seu povo?

Christopher Dunn – Há tantas dimensões na música popular brasileira que é difícil resumir, mas acho que podemos dizer que a canção brasileira é uma boa indicação da diversidade do povo brasileiro, porque é muito variada. Eu acabo de terminar um livro sobre a música popular e a cidadania, que tem vinte artigos, tanto de pesquisadores brasileiros como de americanos, e nossa pesquisa revelou que há uma tradição na canção moderna brasileira de refletir profundamente sobre a condição de cidadania no Brasil. Além de canções de amor, que são muitas, há canções satíricas, humorísticas, e há também uma tradição de fazer música sobre a sociedade e sobre a situação social do brasileiro. Mas isso não é somente no Brasil, então se torna difícil distinguir precisamente uma característica brasileira. É melhor ver simplesmente as tendências.

IHU On-Line – Em que sentido a canção é uma forma de exercer a cidadania?

Christopher Dunn – Além de tratar de temas políticos e sociais que têm a ver com a temática da cidadania, a própria prática de fazer música, muitas vezes, sobretudo no Brasil contemporâneo, é uma prática de cidadania. Como, por exemplo, o movimento hip hop, em São Paulo, que é um verdadeiro movimento social, que envolve a comunidade, que busca trabalhar com jovens que estão em risco. O mesmo se pode dizer sobre o grupo Afro Reggae , do Rio de Janeiro, que é um grupo cultural, mas também tem um papel social muito importante na comunidade das favelas do Rio de Janeiro. A mesma coisa pode ser dita sobre o movimento dos blocos afro, que desde os anos 1970, na Bahia, em Salvador, funcionam como uma espécie de movimento social muito voltado para questões de cidadania e acabam envolvendo pessoas que não têm nada a ver com música em si, mas que têm mais a ver com outras atividades, sempre voltadas para questões de consciência social, política e racial. Com isso procuramos ver a música popular como uma espécie de exercício de cidadania, tanto do ponto de vista de canções e músicas que tematizam essa questão como de movimentos ou grupos culturais que funcionam com essa prática.

IHU On-Line – O que caracteriza a canção durante o movimento Tropicália?

Christopher Dunn – Com a Tropicália  há uma tentativa de redimensionar a canção brasileira de forma totalmente híbrida e, por que não, pós-moderna, no sentido de que, em vez de desenvolver um estilo próprio, como a Bossa Nova , produziu um som muito baseado na estética do pastiche. A estética do pastiche é justamente citar, sem necessariamente parodiar, uma variedade muito grande de sons. Existem aí citações de rock, de músicas latino-hispano-americana, de música nordestina, a bossa nova, o samba. A característica fundamental da Tropicália é justamente essa flexibilidade, esse trânsito entre vários sons e vários estilos, sem propor um estilo próprio e novo. É justamente essa multiplicidade da Tropicália à justa posição de sons, estilos e referências que é a característica principal do movimento.

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre a música popular brasileira e a globalização?

Christopher Dunn – Há uma tradição muito forte na música popular brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e fazer com eles música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do Brasil, de deglutir o que vem de fora e fazer algo novo. Vemos isso desde o samba, no início dos anos 1920, apesar de ser totalmente enraizado nas tradições brasileiras, até a bossa nova, que foi uma maneira de trabalhar com alguns aspectos do jazz norte-americano. A Tropicália é um exemplo disso. Podemos ver também o rock brasileiro dos anos 1980, o movimento Mangue Beat, que está totalmente inserido dentro de um contexto internacional de música popular, e o movimento rap. O Brasil é um país completamente integrado na economia mundial e está muito ligado à internet, sobretudo a classe média. Então, não há dúvidas de que tais tendências culturais globalizadas irão exercer uma influência muito forte sobre a cultura brasileira.

IHU On-Line – Qual a principal contribuição da canção para as transformações culturais de um país? Qual a especificidade brasileira nesse caso?

Christopher Dunn – Não sei se a canção é o motor transformador de uma cultura, ou se é um reflexo de transformações culturais que estão em curso, ou ainda se se trata de uma relação dialética, com movimentos pelos dois lados. Os tropicalistas encararam as transformações do Brasil que decorreram da ditadura e da implantação e instauração de um regime de modelo de modernização autoritária e que produziu ou exacerbou algumas contradições dentro da sociedade. Mas, ao captar, também conseguiram de alguma forma transformar a cultura brasileira e propor novos modelos de entender a sociedade. O mesmo ocorre em relação a esses grupos mais contemporâneos que, respondendo ao recuo do Estado em relação à participação social, as comunidades muito marginalizadas, praticamente excluídas do Estado, começaram a trabalhar a cultura como uma forma de exercer a cidadania. Essa foi uma resposta às condições materiais, sociais da sociedade durante a época posterior à ditadura, depois dos anos 1980. Esses grupos acabaram tendo uma influência muito grande sobre a forma como os brasileiros entendem sua condição social. É um reflexo que acaba também captando um processo, dessa forma transformando a sociedade ou, pelo menos, transformando nossa percepção da sociedade.

IHU On-Line – Como a música brasileira é vista no exterior?

Christopher Dunn – Com muito interesse, muita fascinação, muita alegria. A música brasileira sempre terá um público no exterior muito grande. Não posso falar muito de outros países. Sei que em quase todos os outros países há pessoas que apreciam a música brasileira, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Aqui nos Estados Unidos, já há uma tradição bem estabelecida, desde a bossa nova. Depois tem o caso de Milton Nascimento , que foi muito apreciado. Já no final dos anos 1980, o surgimento de um fenômeno muito curioso aqui no EUA, chamado de World Music, mostra um interesse em música popular de outros países. E o Brasil estava envolvido com isso. Quase todas as cidades grandes aqui no país têm suas próprias escolas de samba, todas as cidades grandes ou mesmo as medianas, têm escolas de capoeira, em que se canta música popular brasileira. Meu filho, que tem 6 anos, está fazendo capoeira com um grupo do Paraná e estão aprendendo a cantar as cantigas de capoeira. É mais uma forma de a música popular brasileira circular nos Estados Unidos.

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