Edição 378 | 31 Outubro 2011

Destacar o sensível das relações para aprender melhor o sentido das experiências

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Márcia Junges e Thamiris Magalhães

Esse era, aliás, o lema inicial da fenomenologia, “voltar às coisas mesmas”, frisa Reinaldo Furlan

“Creio que assistimos a uma crise de pensamento, onde as filosofias ou determinados saberes das ciências humanas são usados como ferramentas teóricas consolidadas no enfretamento da realidade, quando se deveria fazê-las ‘tremer’ com a própria experiência, para o que sempre favorece o diálogo crítico com outras perspectivas de pensamento. Se não, para usar um termo de Deleuze-Guattari, o pensamento se torna sedentário, fixo, estratificado, o que vai a contrapelo de sua própria filosofia”, afirma Reinaldo Furlan, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ao se referir a Merleau-Ponty, o professor destaca que, desde o princípio, Ponty, “através de uma filosofia da percepção, e não da consciência, fez a inflexão que tornou possível sua aproximação da noção de inconsciente, sem que ela representasse por princípio um impedimento de sua própria filosofia”.

Reinaldo Furlan possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor da Universidade de São Paulo – USP.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como acontece o enlace entre expressão, linguagem e subjetividade na filosofia de Merleau-Ponty?

Reinaldo FurlanÉ tema para uma tese. São noções-chave ou de grande alcance e que sofreram mudanças ao longo de sua obra. Posto isso, apenas para anunciar de forma mais esquemática um princípio de encaminhamento a essa questão, talvez possamos privilegiar na filosofia de Merleau-Ponty a noção de expressão como referência básica às demais. Afinal, a fenomenologia, como o próprio nome sugere, implica a investigação do sentido fundamental do fenômeno, isto é, do aparecer das coisas ou da abertura de mundo para nós – visto que as coisas se revelam sempre num horizonte de mundo. Claro que um “sujeito” se encontra implícito ou implicado nas estruturas desse aparecer, mas definir o seu sentido também faz parte da elucidação do sentido do próprio aparecer. Ora, como destaca Thévenaz, a fenomenologia, enquanto “escola” ou corrente de pensamento inaugurada por Husserl, consiste mais na retomada sucessiva dessa tarefa de elucidação da experiência originária de mundo (sua abertura) do que na instalação de princípios básicos comuns a seus autores. O próprio Husserl, como destaca Merleau-Ponty, sentiu intermitentemente a necessidade de um novo recomeço, como se a fenomenologia estivesse sempre por se iniciar. Ou seja, como diz Merleau-Ponty, nada é mais difícil dizer do que é isso que nós vemos, o que é outra maneira de afirmar o princípio fundamental de uma teoria da expressão.

Quanto à linguagem, que é uma forma privilegiada de expressão e com a qual a filosofia se realiza, a questão é saber em que medida ela brota nos interstícios da expressão sensível (percepção), provocada ou estimulada por esta, e em que medida ela participa da estrutura da própria percepção. Essa questão assumiu diferentes contornos em sua obra, mas é notável a importância crescente da linguagem em sua filosofia. Em que pese isso, Merleau-Ponty jamais assumiu a exclusividade da linguagem na formação de nosso sentido de mundo. Também é notável sua aproximação da linguagem literária, mais apta, segundo ele, para expressar nossa relação originária com as coisas, uma expressão, vale notar, que toma o sensível como protótipo ao mesmo tempo em que é a criação do seu próprio sentido. Isso porque a literatura, assim como a pintura, diz Merleau-Ponty, não tem a pretensão de possuir qualquer de seus sentidos como a um objeto definido e delimitado. Como se sua capacidade expressiva fosse justamente a de abrir um campo de pensamento, ser “matrizes de ideias”, inseparáveis da maneira de sentir ou ser no mundo. Da mesma forma, para ele o Ser (bruto) só se mostra mantendo-se à distância como horizonte inobjetável do sentido das próprias coisas, ou ainda, como horizontes de mundo que se passam entre si, que se invadem ou se tocam docemente, como um sistema aberto de reenvios de sentidos para a configuração de mundos.

 

IHU On-Line – Como situar a filosofia de Merleau-Ponty entre a psicanálise e a filosofia de Wittgenstein?

Reinaldo FurlanNesse caso, é mais fácil estabelecer sua relação com a psicanálise, que explicitamente foi incorporada em sua obra, sempre de maneira crítica. O grande interesse em se cotejar a filosofia de Merleau-Ponty com a psicanálise encontra-se, em primeiro lugar, sobre a noção de inconsciente, afinal, a fenomenologia se estabeleceu com Husserl através de uma nova concepção de consciência, ou como uma filosofia da consciência. Ora, como nota Nelson Coelho, desde o princípio Merleau-Ponty, através de uma filosofia da percepção, e não da consciência, fez a inflexão que tornou possível sua aproximação da noção de inconsciente, sem que ela representasse por princípio um impedimento de sua própria filosofia. O que assistimos ao longo de sua obra, então, foi o acolhimento mais radical da noção de inconsciente, sem abandonar a prioridade do sentido percebido. Esquematicamente, se em Fenomenologia da percepção encontramos uma versão bastante mitigada da noção de inconsciente através da noção de cogito tácito, isto é, como horizonte de sentido de uma vida, muito mais amplo do que os seus sentidos colocados em tese, ao final de sua obra encontramos a noção de inconsciente como princípio de organização da própria percepção, não separado dela, como se fosse outro lugar, tal como supõe a psicanálise através da ideia de divisão do aparelho psíquico, mas como armação no próprio sentido percebido. Nesse sentido, Merleau-Ponty diz que o inconsciente não é o que está atrás e sim o que está à frente. Ele passa a ser, assim, padrão perceptivo, estabelecido ou modificado através da práxis ou das relações com os outros. Por isso ele diz que “as decisões mais fundamentais de uma vida não são de momento”, ou “que não se decide fazer, mas deixar-se fazer”, frisando com isso que a mudança ocorre mais na estrutura ou forma de ver e sentir do que no nível do sentido que se destaca.

 

Um discurso filosófico próprio sobre a realidade

No caso da filosofia de Wittgenstein, o grande interesse em seu cotejamento com a filosofia de Merleau-Ponty encontra-se sobre a possibilidade ou não de um discurso filosófico próprio sobre a realidade. Grosso modo, Wittgenstein, assim como Foucault, e na esteira de Kant, entende a atividade filosófica como um exercício de esclarecimento de nossas formas de pensar e ser no mundo, pois a linguagem, como ele diz, faz parte de uma forma de vida. Ou seja, os significados da linguagem são definidos pelos usos das palavras, pela forma como são empregadas, configurando, assim, determinada situação ou atividade linguística, e por isso a linguagem é uma forma de viver. Ora, isso tudo, grosso modo, é bastante coerente com a filosofia de Merleau-Ponty, e poderíamos, com isso, traçar muitos paralelos entre suas filosofias. Ocorre que Wittgenstein crê que a atividade de esclarecimento de nossos jogos de linguagem é a própria atividade filosófica, enquanto para Merleau-Ponty esse aspecto apenas prepara ou favorece um discurso mais lúcido da filosofia sobre a realidade. Mais precisamente, Wittgenstein, de modo geral, enfatiza que a filosofia como discurso próprio sobre a realidade não passa de um efeito de confusões gramaticais, quando ela retira os significados da linguagem comum de seu uso próprio, e com eles pensa construir um sentido mais fundamental sobre as coisas. Então, segundo ele, a linguagem deixa de funcionar com as coisas ou nas atividades dos homens, e passa a girar em falso, sobre si mesma. Claro que, assim como a filosofia de Foucault (esta muito voltada para o aspecto político de nossas relações), pode-se ganhar muito com o esclarecimento dos nossos jogos de linguagem, na medida em que se revela uma forma de vida, ou, como diz Foucault, que a crítica do presente abre ou favorece possibilidades futuras. Na verdade, essa é uma questão muito complicada para ser tratada nos limites dessa resposta, que em última instância significa a possibilidade de uma ontologia geral, no caso de Merleau-Ponty, ou apenas histórica, conforme Foucault ou Wittgenstein. Ou ainda, trata-se de uma questão sobre o alcance ou os limites da razão.

 

IHU On-Line – Ainda nesse sentido, como se dá o diálogo entre a fenomenologia e a esquizoanálise na psicologia? Que avanços transdisciplinares surgem a partir desses debates?

Reinaldo FurlanGrosso modo, não creio que haja diálogo entre a fenomenologia e a esquizoanálise na psicologia, ou, de modo geral, nas ciências humanas. Se tenho escrito alguma coisa nesse sentido, é justamente para romper um isolamento que em geral constitui a regra em nossas pesquisas universitárias, e que não se limita ao caso dessas filosofias. Por exemplo, como diz José de Souza Martins (A Política do Brasil, lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011) a respeito do marxismo universitário ao longo de sua história, faltou diálogo e discussão crítica com as outras abordagens sociológicas, o que não só empobreceu o marxismo ensinado nas universidades como também favoreceu sua transformação em uma nova ideologia. Ou seja, há a tendência perniciosa nas pesquisas universitárias de se assumir determinada perspectiva teórica de modo mais ideológico do que de pensamento ou atividade crítica. Cito esse autor para indicar que o caso da fenomenologia e da esquizoanálise não é um fato isolado. Ou seja, creio que assistimos a uma crise de pensamento, em que as filosofias ou determinados saberes das ciências humanas são usados como ferramentas teóricas consolidadas no enfretamento da realidade, quando se deveria fazê-las “tremer” com a própria experiência, para o que sempre favorece o diálogo crítico com outras perspectivas de pensamento. Se não, para usar um termo de Deleuze-Guattari, o pensamento se torna sedentário, fixo, estratificado, o que vai a contrapelo de sua própria filosofia.

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