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Graziela Wolfart
“As lutas pelo SUS (principalmente das décadas de 1970 e 1980) foram capazes não apenas de exigir uma política pública de teor igualitário, mas conseguiram agregar à definição de saúde as grandes questões sociais – expondo o quanto as dramáticas desigualdades e as condições gerais da existência são não apenas razões de adoecimento, mas integram a condição geral da saúde humana”. Essa é a opinião da professora Virginia Fontes, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Historiadora, com mestrado pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em Filosofia pela Université de Paris X, Nanterre, Virginia Fontes atua no Programa de Pós-Graduação em História da UFF, onde integra o NIEP-MARX, e na Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), integrando o grupo de pesquisa sobre Epistemologia. É autora de Reflexões Im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo (Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a especificidade do SUS enquanto luta teórica e social da sociedade civil brasileira?
Virginia Fontes – Gostaria de lembrar que não sou uma especialista no tema, mas venho há alguns anos trabalhando em instituição voltada para a saúde, onde aprendo muito. Respondo a essas questões como alguém preocupada com grandes questões gerais que atravessam a sociedade brasileira contemporânea. As lutas pelo SUS (principalmente das décadas de 1970 e 1980) foram capazes não apenas de exigir uma política pública de teor igualitário, mas conseguiram agregar à definição de saúde as grandes questões sociais – expondo o quanto as dramáticas desigualdades e as condições gerais da existência são não apenas razões de adoecimento, mas integram a condição geral da saúde humana. Ocorreu um encontro peculiar e importantíssimo entre lutas populares com um movimento intelectual, capaz de mobilizar extensos setores de trabalhadores da própria saúde. O SUS é uma conquista, assim como a Seguridade Social a qual ele integra. Como toda conquista popular sob condições da dominação do capital, também teve severas limitações e sua implantação, expansão e generalização (até hoje não realizada) enfrentam todo o tipo de adversidades.
Nesse sentido, a atualização dessa formidável luta envolve certamente exigir a plena aplicação da legislação conquistada na Constituinte, pois as desigualdades perduram, assim como as péssimas condições para extensos contingentes populares, na cidade e no campo. Mas envolve também retomar os fundamentos daquelas lutas, para integrar os novos aspectos da vida social que atingem a saúde das populações, a começar pela intensa e profunda desregulamentação das relações de trabalho que se aprofundaram a partir da década de 1990. Aliás, essa desregulamentação – que se revela nas subcontratações terceirizadas, nas precarizações das relações de trabalho – atinge na atualidade especialmente os trabalhadores da saúde. Mas exige ir ainda além, e incorporar os novos ataques à saúde humana, como os agrotóxicos, os transgênicos, sem falar do registro de patentes proprietárias da vida (inclusive da vida humana).
Quanto ao papel da sociedade civil, é preciso esclarecer o uso que fazemos dos conceitos: o que é sociedade civil? Muitas vezes ocorre certa confusão semântica, como aqueles que tendem a contrapor sociedade civil a Estado. Essa interpretação corresponde a uma base teórica de cunho liberal. Segundo a conceituação que adotamos, formulada por Antonio Gramsci, a sociedade civil integra o Estado (que se amplia) e não se contrapõe a ele. Ademais, é constituída por aparelhos privados de hegemonia, locais de associação e de produção de vontades coletivas, que se estabelecem no interior de uma sociedade “configurada por classes sociais”. Nesse sentido, as lutas de classes atravessam em cheio a sociedade civil.
Assim, para responder a essa pergunta – o sentido do SUS para a sociedade civil brasileira – é preciso ter claro de que segmento da sociedade civil estamos falando: se daqueles setores que organizam as formas de dominação; se daqueles setores que se acreditam neutros e fora da existência social (e que contribuem para a manutenção do status quo) ou se dos setores populares e da classe trabalhadora.
IHU On-Line – O que a estrutura do SUS revela sobre a configuração da sociedade civil brasileira nos últimos 20 anos?
Virginia Fontes – Mostra exatamente como a luta de classes atravessa a sociedade civil brasileira. De um lado, a luta popular pela expansão e universalização do acesso jamais cessou, assim como a luta pela melhoria da qualidade do serviço público de saúde, tanto no conjunto da vida social como no interior das próprias instâncias públicas do SUS. Nesse âmbito, os setores populares foram instados a ocupar seus assentos nos conselhos de saúde estabelecidos pelo SUS como a forma específica do controle popular. Se isso é uma conquista real, sua plena execução depende da capacidade de organização popular (para enfrentar as entidades patronais e políticas locais) e a capacidade de expandir-se para todos os setores da saúde. Ora, essa conquista é sempre limitada quando sobrevive sob condições que tais setores populares não controlam. Assim, por outro lado, desde a década de 1980, iniciou-se um intenso processo de profissionalização de uma militância mercantil-filantrópica, que recusava qualquer “politização” e apresentava-se como neutra e voltada para fins sociais elevados. Nesse processo, entidades associativas de tendências e de bases sociais diversas passaram a apresentar-se como “gestoras” mais eficientes para os serviços públicos e para a redução da pobreza (esta, aliás, era considerada por essas entidades como um resultado histórico e não como processo social de construção de desigualdades). Tais entidades passaram, sobretudo nos anos 1990, em nome de pertencerem à “sociedade civil” (definida porém de maneira plenamente liberal) a disputar acidamente os recursos públicos, oferecendo seus próprios serviços como se fossem mais “transparentes” e “ágeis”. Tal processo desemboca em dois efeitos dramáticos. No primeiro, a criação de uma enorme miríade de organizações “filantrópicas” ou “sem fins lucrativos”, embora sejam diretamente capitaneadas por setores empresariais. Em segundo lugar, direcionaram sua ação para o aprofundamento do desmonte das conquistas sociais inscritas na Constituição, o que foi certeiramente aproveitado pelas demais Fundações e Associações sem Fins Lucrativos – FASFIL, que atingiam a cifra, em 2005, de mais de 330.000 entidades segundo o IBGE. Em terceiro lugar, tal pressão atinge parcela dos profissionais públicos que, em nome de uma gestão eficiente e ágil, pretendem desvencilhar-se dos controles públicos para “competirem no mercado”. Uma privatização realizada por dentro do próprio Estado, com o apoio e sustentação – como é óbvio – da grande imprensa e dos setores mais monopolizados da saúde.
O que isso significa do ponto de vista da saúde? Uma intensa pressão para que a urgência da prestação de serviços justifique a eliminação dos procedimentos estatais sob controle efetivamente público (apontados como enrijecidos). Com isso, se perde crescentemente a capacidade de controle social (especialmente a partir das entidades populares) nos processos de formulação central que incidem sobre o direcionamento e a gestão dos recursos públicos. Pior ainda: a privatização de parcelas do serviço público (via Organizações Sociais, por exemplo), elimina o próprio controle popular, que não incide sobre entidades privadas. Assim, este corre o risco de reduzir-se a algumas partes do processo, muitas vezes sem dispor dos elementos de conjunto.
Lembre-se que a saúde, embora a maioria das interpretações do senso comum a considere como limitada às práticas médicas, envolve uma enorme indústria de equipamentos, de materiais, medicamentos, próteses, conhecida como o complexo médico-hospitalar, que dispõem de recursos formidáveis para fomentar organizações e distribuir seu próprio material de convencimento.
IHU On-Line – Qual era o contexto social brasileiro quando da criação do SUS e o que mudou hoje em nossa sociedade que poderia sugerir uma mudança também no sistema de saúde?
Virginia Fontes – O processo histórico que nos separa do momento da Constituinte é denso e pode ser descrito como um salto de um período de lutas intensas para um longo processo regressivo, caracterizado normalmente como neoliberalismo. A derrocada das experiências socialistas do leste europeu, as privatizações, a desregulamentação das relações de trabalho, a imposição de um dramático desemprego nos anos 1990, a intensificação da atuação política voltada para o convencimento pelos setores patronais (que chegam a apoiar a criação, por exemplo, da Força Sindical no início da década de 1990), a intensa monopolização da economia brasileira e o crescimento de gigantescos conglomerados brasileiros (em geral associados subalternamente a grandes capitais internacionais) e, por fim, mas não menos importante, uma modificação das posições assumidas tanto pela CUT quanto pelo próprio PT. Estes se deslocaram do polo das lutas reivindicativas para uma política propositiva que visa mais adequar os trabalhadores às condições de expansão do capital do que a modificar tais condições. No âmbito da saúde isso pode ser percebido, por exemplo, na expansão de serviços privados de saúde (como os seguros-saúde) no âmbito dos próprios sindicatos, inclusive de trabalhadores do setor público! Isso se evidencia também, por exemplo, na adoção de programas focalizados em lugar de verdadeiras políticas de Estado para enfrentar as enormes desigualdades sociais.
Se pensamos o que sugerir hoje, há dois aspectos que precisam relacionar-se: em primeiro lugar, a própria implantação generalizada do SUS público e estatal para todos. Isso envolve a desprivatização da saúde enquanto vem ocorrendo exatamente o contrário. Em segundo lugar, a capacidade de expandir-se para integrar as novas – e gigantescas questões – que envolvem a privatização da própria vida enquanto existência biológica. Esse é um novo desafio a incorporar. Mas há ainda outro – e extremamente importante – aspecto. A grande maioria da população brasileira vem completando uma nova experiência. Em outras palavras, desde a reimplantação do Estado de Direito após o golpe civil-militar de 1964, estamos aprendendo que não basta conquistar direitos e inscrevê-los em leis: é preciso impedir a todo o tempo que sejam usurpados e essa usurpação é um processo permanentemente recriado pela expansão das relações capitalistas.
IHU On-Line – Analisando os governos federais no Brasil nos últimos 20 anos, como compreender os rumos do SUS e o que esperar do sistema a partir do governo atual?
Virginia Fontes – O SUS ao mesmo tempo cresceu e encolheu. Como instituição, o SUS cresceu e é hoje uma realidade de abrangência nacional. Porém, como política igualitária de Estado, o SUS encolheu e precisa voltar a incorporar o conjunto de questões que lhe deu origem, além de integrar os novos desafios. Encolheu teoricamente: em boa medida, reduziu-se o debate sobre a determinação social da saúde, centrando-se no acesso à própria política já instituída, tema importante mas não suficiente, pois o acesso por vezes vem sendo garantido através do setor privado. Com isso reduz-se a força instituinte das lutas pelo SUS. Boa parte das diretrizes políticas seguem-se tendo como foco o indivíduo, a doença e os serviços assistenciais, em detrimento de políticas públicas capazes de enfrentar as novas agressões realizadas pelo capital. Encolheu na prática pública, ao admitir uma distinção entre um SUS voltado para os pobres, ao lado de um serviço mercantil, oferecido pelas entidades privadas (hospitais, clínicas, seguros, etc.), que se nutrem contraditoriamente do SUS público, tanto pelos recursos que recebem para a prestação de serviços, como no acesso que garantem aos setores médicos de ponta, que seguem assegurados pelo setor público. A política implementada pelos quatro últimos governos e mantida pelo atual segue aprofundando a privatização, no caminho inverso de uma plena socialização da saúde para a população.
IHU On-Line – Em sua opinião, qual deve ser o papel do Estado brasileiro em relação ao SUS?
Virginia Fontes – Assegurar serviços de saúde igualitários para todos, não permitindo a separação entre uma saúde direcionada para os segmentos endinheirados e uma saúde pobre voltada para os setores com menos recursos.
– Não permitir recursos públicos para setores privados, cujas empresas (lucrativas ou não) procuram açambarcar cada vez mais recursos públicos para atuar privadamente.
– Não esquecer também do mau exemplo das deduções em imposto de renda para os que pagam seguros privados, o que mais uma vez mostra o Estado subsidiando o privado. Sabemos que o Estado não é neutro: é sempre uma correlação de forças entre frações de classes dominantes, objetivando assegurar a reprodução da própria forma de dominação. Por essa razão os trabalhadores – apesar de sua segmentação atual em múltiplas formas de contratação, o que e redundou em maior dificuldade de organização – precisam lutar coletivamente para assegurar sua humanidade plena frente à crescente desumanização do conjunto da existência, expresso em expropriações e mercantilizações que, em muitos casos, envolvem diretamente a saúde. A saúde humana depende de enfrentar a lógica devastadora do capital.
IHU On-Line – Em que sentido o SUS pode ser apontado como um modelo de democracia?
Virginia Fontes – Ainda que a Constituição abrigue na formulação do SUS os princípios de igualdade social, da determinação social da saúde e do controle popular, infelizmente o SUS não pode ser considerado como um modelo de democracia. Para tanto, as diferenças sociais não poderiam transparecer da forma como o fazem, através de portas de acesso diferenciadas para setores endinheirados e o restante da população. Não poderia haver a brutal segmentação de contratos de trabalho para os trabalhadores, inclusive os da saúde, o que suscita intensas desigualdades internas e se reflete em diferenciações que não deveriam ocorrer na acolhida à população. Houve avanços? Certamente, pois as lutas não cessaram e resultaram em maior controle público de algumas doenças; há grande empenho de grande número de trabalhadores da saúde em prestar um serviço de qualidade; há uma intensa luta para a generalização de políticas voltadas para a saúde da família. Porém, paralelamente cresce um intenso “empreendedorismo” para a venda de serviços de saúde. Não há democracia no setor empresarial: há donos e subalternos. Há a produção para a venda de mercadorias cujo objetivo é a valorização do valor, e somente ocorre através da reprodução e aprofundamento das formas de sujeição dos trabalhadores.
IHU On-Line – O que a Constituição de 1988 diz sobre nossa sociedade e como o SUS se insere nesse contexto?
Virginia Fontes – O SUS integra a política de Seguridade Social que reúne a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde. Nos termos da Constituição de 1988, o SUS é direito universal e dever do Estado, conforme especifica seu artigo 196. Apesar do texto constitucional garantir os princípios da VIII Conferência Nacional de Saúde, o SUS (e a Seguridade Social brasileira) desde cedo enfrentou forte reação. O processo de regulamentação legal e de implantação do SUS segue sendo um espaço de permanentes embates. Em lugar de um processo de complementação transitória entre o setor público e o setor privado (filantrópico e sem fins lucrativos) foram abertas portas de acesso para privatizações multiformes (contratação de profissionais, repasse de recursos públicos para a atuação de setores com fins abertamente lucrativos, etc.). Os próprios princípios do SUS, ponto alto da Constituição, foram sendo crescentemente contornados ou ressignificados: da equidade como garantia de direitos, que deveria levar obrigatoriamente em consideração as desigualdades sociais e as reparações socialmente necessárias, para uma redução dessa concepção, redesenhando os conteúdos para uma equidade sem igualdade, traduzida num SUS exclusivamente voltado para os pobres, ao lado de um SUS cuja complementação se volta, na prática, para o privado (e não para o público). Finalmente, o SUS conta permanentemente com recursos escassos, em função da desvinculação das receitas da Seguridade Social.
IHU On-Line – Em que sentido a filantropia e o trabalho das ONGs podem ser apontados como parceiros do SUS?
Virginia Fontes – A filantropia é o exercício da doação dos que têm muito para os demais. Em outros termos, os que muito têm precisam continuar a usufruir de sua posição (que deriva de exploração da força de trabalho), para em seguida doarem o quanto quiserem, para fazer o que eles acharem conveniente, permitindo-se inclusive selecionar que setores da população serão os “alvos” de sua filantropia. É portanto o contrário de qualquer política igualitária e pública, democrática e capaz de assegurar a socialização da qualidade de vida. Quanto às ONGs, o termo é muito impreciso. Já falei anteriormente das lutas de classes na sociedade civil e na expansão do empresariamento nas mais diversas áreas de atuação pública, que buscam desmantelar as conquistas populares e converter essas atividades em formas de obtenção de lucro. Se se tornam “parceiras” do SUS, isso significa o aprofundamento das desigualdades através das privatizações e o encolhimento das conquistas constitucionais. Na saúde, isso vem sendo realizado através de organizações sociais, Organizações Sociais de Interesse público e de Fundações (ou empresas) Públicas de Direito Privado, que buscam gerenciar privadamente as políticas sociais; atuar como intermediárias para a contratação de pessoal (eliminando direitos de trabalho e intensificando a concorrência entre os trabalhadores); extrair mais-valor de diferentes categorias de trabalhadores e apoderar-se de fatias dos recursos públicos.