Edição 196 | 18 Setembro 2006

Malagrida: um humanista radical

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IHU Online

O cineasta Renato Barbieri participará do Seminário Internacional A Globalização e os Jesuítas, que acontece na Unisinos, de 25 a 28 de setembro, debatendo com o público o filme Malagrida, dirigido por ele.


Barbieri é graduado em Psicologia e especialista em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Além de cineasta, ele é diretor e produtor de filmes, documentários e campanhas para TV, e sócio-diretor da produtora Videografia, de Brasília. Em sua filmografia há aproximadamente 40 filmes. Foi premiado diversas vezes, recebendo este ano o prêmio IBERMIDIA, pelo desenvolvimento do projeto O Homem de Dentro.
A seguir, leia a entrevista que ele concedeu, por e-mail, para a revista IHU On-Line, falando sobre o documentário que dirigiu e será exibido na próxima semana, na Unisinos. Na entrevista, ele também fala da personagem central que inspirou o vídeo, o jesuíta Gabriel Malagrida. Confira.

IHU On-Line - O que o motivou a fazer um documentário sobre Malagrida? O que despertou no senhor a vontade de saber mais e difundir a trajetória deste jesuíta?
Renato Barbieri -
Fui apresentado à história de Gabriel Malagrida  em meados dos anos 1990 pelo Victor Leonardi, escritor, historiador, roteirista, viajante, poeta e professor, meu parceiro de muitos anos na realização de diversos documentários, que já havia feito comigo Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás. O Victor tinha feito uma pesquisa sobre esse extraordinário jesuíta e escrito para tanto um libreto de ópera, que ainda não saiu do papel, ainda. E surgiu a oportunidade de um concurso nacional de documentários do MinC. Resolvemos que a vida e a obra de Malagrida seria o tema para um belo documentário, e ganhamos este prêmio. Depois disso, ficou mais fácil levantarmos os recursos complementares e realizamos um filme-documentário de longa-metragem finalizado em 35mm. É o meu primeiro longa-metragem. Ganhamos também um concurso internacional importante de finalização de longas da OCIC. Desde quando o Victor me apresentou seu libreto da ópera Malagrida, fiquei instigado pelo personagem e por fazer este documentário.

IHU On-Line - O que mais encanta na vida e na obra de Malagrida? Qual sua maior paixão?
Renato Barbieri -
O Malagrida foi um homem de seu tempo, no que diz respeito ao sistema de crenças, que amou profundamente o Brasil. Ele olhou o Brasil com amor e agiu com estratégia humanista para a evolução da sociedade brasileira, num tempo em que quase ninguém enxergava o Brasil a não ser como uma colônia a ser explorada. Ele acreditava na verdade que a ele se revelava, e ele se lançava com paixão naquilo. Era um homem da natureza do fogo. Era puro coração. Por isso, tantas lendas e símbolos que ligam Malagrida ao coração. Era um homem muito destemido, algo raro, que agia na doação total ao outro.

IHU On-Line - Por que ele ficou conhecido como "o Taumaturgo do Brasil"?
Renato Barbieri -
Ele ficou conhecido em todo o mundo português da época, inclusive na África e na Ásia, como “o Taumaturgo do Brasil”. Muitos milagres foram a ele atribuídos, coisas fantásticas, como relatos de salvar um navio em uma tempestade terrível na travessia Brasil - Portugal. E muitos outros. Os escritos e relatos da época mostram que ele tinha vidência, via para além da matéria, chamava pessoas pelo nome à primeira vista, alertava outras para o dia em que iriam morrer (o que de fato acontecia), coisas assim, estranhas, de um homem que estava vivendo outra dimensão.

IHU On-Line - O que mais o senhor priorizou no documentário? O que é importante registrar da vida dele? 
Renato Barbieri -
Nós seguimos os passos do Malagrida ao longo de toda a sua vida: filmamos a casa onde ele nasceu, inclusive o quarto onde passou sua infância, que está preservado, em Managgio, na Itália; filmamos o colégio onde estudou, em Como; o local onde teve sua formação de jesuíta, em Gênova; o porto de Gênova, para onde ele partiu para Portugal e, depois, para o Brasil; filmamos seis estados do Norte e Nordeste brasileiro por onde ele peregrinou, ensinou filosofia, trabalhou com índios, caboclos e colonos; passamos por diversas cidades onde ele esteve e filmamos suas obras que ainda estão de pé, a maioria funcionando, em diversas cidades do Ceará, do Maranhão, da Bahia, da Paraíba e de Pernambuco; filmamos os locais por ele freqüentados em Portugal, inclusive os palácios de João IV; a região de Setúbal onde ele fazia seus Exercícios Espirituais e depois foi preso; com base em ilustrações de época, fizemos um relato minucioso e sensorial do terremoto de Lisboa, de 1755; a Praça do Comércio, em Lisboa, onde teve seu auto-de-fé e onde ele foi queimado pela Inquisição. Refizemos o percurso de sua vida e reconstituímos algumas cenas de época com não-atores.

IHU On-Line - Por que a escolha de inserções de "catolicismo popular" no documentário?
Renato Barbieri -
O Malagrida foi um expoente do catolicismo fervoroso do Nordeste brasileiro, que existe até hoje em Juazeiro do Norte, em Bom Jesus da Lapa e outras cidades daquela região. Com base em nossa pesquisa, defendemos no documentário que Malagrida foi um precursor desse catolicismo rústico no Nordeste, antes mesmo de Ibiapina , Conselheiro  e Cícero Romão . Para esta parte do filme não foi preciso fazermos reconstituição de época: está lá, vivo.

IHU On-Line - Como entender Malagrida nos dias de hoje? Qual sua principal herança cultural e de fé?
Renato Barbieri -
Malagrida é uma peça importante no processo civilizatório brasileiro, ainda em curso. Era um humanista radical, pioneiro em trabalhos sociais com mulheres excluídas da sociedade brasileira patriarcal. Ele pensou o Brasil estrategicamente, criando diversas obras de infra-estrutura social e educativa. Viveu o Brasil profundamente, fez diversas caminhadas pelo sertão, uma delas de sete mil quilômetros, dialogando, construindo, provocando as pessoas a olharem a vida de um outro modo. Foi ele quem introduziu no Brasil as tradições do “Sagrado Coração” e da “Boa Morte”, muito vivas até hoje. Com o seu amor à verdade e ao outro ele acabou se chocando com as idéias e ideais do Marquês de Pombal . O século XVIII foi talvez o mais cruel no Brasil, em que sua riqueza despontou de forma evidente. E, nesse processo, Malagrida foi uma forte resistência humanista. E acabou sendo vítima, a última fatal, da Inquisição portuguesa. O documentário não deixa de render a ele uma justa homenagem. Não é à toa que Malagrida é também, ao lado de Anchieta, “Apóstolo do Brasil”.

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