Edição 375 | 03 Outubro 2011

A testemunha, um acontecimento

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Castor Bartolomé Ruiz

Esquecimento é a técnica usada pelos regimes repressores para ocultar a barbárie, acentua Castor Bartolomé Ruiz. Para isso narrativas legitimadoras das atrocidades convertem as vítimas em “terroristas”, como no caso das ditaduras latino-americanas

“A violência tem seu anverso naqueles que são suas vítimas. Toda violência pretende esconder as consequências de sua barbárie ocultando aqueles que violenta, as vítimas. A técnica mais eficiente para encobrir a barbárie da violência é o esquecimento. O esquecimento não só desconhece o fato violento mas também projeta um manto de inexistência sobre aqueles que foram vítimas da violência”. A constatação é do filósofo espanhol Castor Bartolomé Ruiz, no artigo que escreveu especialmente à IHU On-Line. E completa: “Os fatos existem para a história quando são narrados. O que prevalece na história é a narrativa dos fatos. Toda narrativa é uma interpretação, uma significação do acontecimento. Poder narrar o fato é ter o poder de criar o sentido do fato”. Castor fala ainda sobre o estatuto epistemológico da testemunha a respeito da verdade histórica. “Sua relação com o acontecimento da violência lhe confere uma potencialidade política singular. A testemunha retém a memória direta da barbárie; ela contém a possibilidade de desarmar o pretenso naturalismo da biopolítica”.

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em filosofia da Unisinos, Castor Bartolomé Ruiz é graduado no curso de Filosofia, pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia, pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

Confira o artigo.


A violência tem seu anverso naqueles que são suas vítimas. Toda violência pretende esconder as consequências de sua barbárie ocultando aqueles que violenta, as vítimas. A técnica mais eficiente para encobrir a barbárie da violência é o esquecimento. O esquecimento não só desconhece o fato violento mas também projeta um manto de inexistência sobre aqueles que foram vítimas da violência. O encobrimento da barbárie requer estratégias de esquecimento. Através delas se garante a impunidade dos violadores, mas também se naturaliza a violência. A violência ocultada se perpetua como um comportamento natural da sociedade e dos indivíduos. O esquecimento garante a impunidade e consolida a perpetuação da violência.

As estratégias de esquecimento se tornam políticas de ocultação nos Estados e instituições autoritárias que querem esconder sua barbárie. Quase todos os Estados latino-americanos viveram a barbárie dos estados de exceção durante a segunda metade do século XX. Os fatos existem para a história quando são narrados. O que prevalece na história é a narrativa dos fatos. Toda narrativa é uma interpretação, uma significação do acontecimento. Poder narrar o fato é ter o poder de criar o sentido do fato. O poder de criar as narrativas sobre a violência e a barbárie se torna uma outra luta política em que o simbolismo da narrativa se constrói como acontecimento. Os regimes autoritários investiram em narrativas legitimadoras do estado de exceção e da violência cometida. Nessas narrativas as vítimas da violência são objetivadas como terroristas que ameaçavam a sociedade e cuja eliminação é um bem público. Em sua morte, desaparecimento e tortura vigora a lógica biopolítica que controla e aniquila as vidas perigosas para preservar a ordem.
O Estado brasileiro confronta-se com este dilema histórico: esquecer a barbárie do estado de exceção ou fazer memória do acontecido. O esquecimento da violência impele a sua repetição mimética. Os recentes episódios, infelizmente muito mais habituais do que qualquer um desejaria, envolvendo altas patentes da polícia militar do Rio de Janeiro no assassinado da juíza Patrícia Acioli , mostram que o esquecimento da violência estrutural só contribui para a sua perpetuação institucional. Os relatos cotidianos de torturas e maus tratos nas delegacias de polícias, a realidade das milícias agindo como paramilitares e vinculados a uma banda podre dos corpos de seguridade do Estado, o ensinamento extraoficial, mas comprovado, das técnicas de tortura como meios eficientes de interrogatório, as abordagens violentas e truculentas por agentes do Estado como algo corriqueiro de nossa sociedade: todos estes indícios apontam para o fato de que a violência não é algo casual nem pontual na estrutura do Estado brasileiro. Há uma naturalização da violência em muitos corpos e agentes do Estado, inclusive em muitos hábitos sociais. O esquecimento da violência estimula sua reprodução mimética como tática de polícia e governo das populações.


Violência estrutural

Como neutralizar a violência estrutural e Estatal? Esta é uma difícil tarefa conjuntural e histórica para a qual talvez a filosofia de Giorgio Agamben possa contribuir com alguns elementos que ajudem a elucidar caminhos de desconstrução e desarme da violência histórica. Agamben inicia sua obra O que resta de Auschwitz, o arquivo e a testemunha (São Paulo: Boitempo, 2008), com uma reflexão sobre a testemunha. Mais especificamente relacionada com os campos de extermínio nazistas. O estado de exceção, como técnica biopolítica que tem por objetivo o controle absoluto da vida humana perigosa, é uma forma de violência estrutural em que a vida humana se encontra sob o arbítrio de uma vontade soberana. A violência biopolítica aspira a replicar-se mimeticamente por efeito do esquecimento e ocultação de sua barbárie. Oculta-se pelo esquecimento, esquece-se ocultando.

No anverso da violência biopolítica encontram-se suas vítimas. Essas (des) aparecem invisíveis nas estratégias de ocultação e esquecimento. As estratégias de invisibilidade comentem uma segunda injustiça contra as vítimas, as apagam da história. Elas foram injustiçadas uma primeira vez quando sofreram a violência do Estado. Agora, pelas políticas de esquecimento, pretende-se cometer uma segunda injustiça, anulando-se seus rostos da história. No anverso do esquecimento da barbárie resiste a testemunha.

A testemunha tem um estatuto epistemológico próprio a respeito da verdade histórica. Sua relação com o acontecimento da violência lhe confere uma potencialidade política singular. A testemunha retém a memória direta da barbárie; ela contém a possibilidade de desarmar o pretenso naturalismo da biopolítica. Sua experiência direta do sofrimento outorga-lhe uma perspectiva histórica que lhe permite narrar em primeira pessoa as consequências perversas da violência.

No latim há dois termos para a experiência da testemunha: testis, supertestis. Testis, do qual deriva o termo testemunha, significa etimologicamente aquele que se coloca no lugar do terceiro, que no latim é terstis. O termo supertestis indica a pessoa que viveu em si mesma o evento do qual é testemunha. O supertestis é a testemunha implicada no acontecimento. Agamben lembra o testemunho de Levi a respeito dos campos de extermínio nazista. Levi é o tipo de testemunha que se conecta com todos aqueles que sofreram a repressão, violência e tortura em si mesmos. Esta testemunha não fala de fatos externos; ela não está distante do fato nem a distância é prova de objetividade do testemunho. Seu testemunho é singular, único, porque não tem distância da violência: ele é produto da violência. Ela se torna testemunha enquanto condição produzida pela violência. Pode testemunhar porque foi violentada. A violência a empurrou a tal condição e lhe conferiu uma relação singular com o próprio fato violento. Só a testemunha violentada poderá dar um testemunho desde essa posição. Seu testemunho de vítima é absolutamente singular porque ela fala a partir de dentro da violência. Ela revela o lado perverso que lhe atingiu e lhe tornou testemunha por ser vítima violentada.
A testemunha violentada fala a partir de dentro do acontecimento. Por isso sua fala é um acontecimento. A testemunha externa (testis) narra fatos acontecidos fora de si como espetáculo objetivo ao que assistiu. Seu testemunho exibe a objetividade da distância como prova de seu testemunho. Ela se distancia para ser objetiva, e a objetividade distante é aferida pelo Direito como um elemento comprovante da verdade de seu testemunho. Este testemunho tem o estatuto da objetividade empírica e se regula pela epistemologia da empiria. Qualquer um pode ser testemunha de um fato externo. Seu testemunho só reconstrói a exterioridade do acontecimento pela comprovação empírica dos fatos.

A testemunha direta (supertestis) tem um outro estatuto epistemológico. Ela não narra a objetividade da distância, mas a interioridade do acontecimento. Seu testemunho não tem o valor objetivo dos fatos empíricos, mas a potência histórica da significação desses fatos. Ela é testemunha, vítima da violência. Os testemunhos das vítimas não se limitam a narrar o acontecido de forma abstrata. Sua narrativa está carregada de significação ao ponto de se tornar um prolongamento do fato acontecido. O acontecimento da violência não se apaga no fato passado: ele repercute na vida dos que foram suas vítimas. Há uma relação diacrônica entre violência e vítimas. O tempo não apaga a violência, que vigora nas sequelas da vida das vítimas. Essa relação diacrônica correlaciona o testemunho das vítimas com o acontecimento de modo que seu testemunho é parte constitutiva do acontecimento violento. Sua narrativa se torna um novo acontecimento que se conecta por dentro da violência acontecida de modo a criar o sentido que ela teve para aqueles que a sofreram. A testemunha, em si mesma e nessa condição, é um acontecimento cuja rememoração presentifica a barbárie passada. Quando é negada a possibilidade de ser da testemunha, a violência impõe seu sentido mais brutal: se legitima como natural. Ao se apagar a possibilidade de a testemunha criar sua narrativa, a violência se legitima como ato necessário e estão dadas as condições para continuar sua reprodução mimética.
A testemunha narra o sentido do acontecimento, a barbárie da violência. A testemunha tem uma relação única com a violência. Tal peculiaridade lhe confere um estatuto de verdade específico pelo qual seu testemunho se torna um acontecimento que resignifica o sentido do acontecimento passado. A verdade da testemunha não se limita ao registro da empiria dos fatos, mas revela a significação inerente a esses fatos. Tal significação também é singular porque não se pauta pela distância objetiva de um observador nem pelo método distante de um historiador. A significação do testemunho das vítimas se transforma num acontecimento próprio na medida em que revela sua própria experiência do fato acontecido. A narrativa da vítima se funde com a sua experiência como testemunha do acontecimento originando um novo acontecimento: o testemunho.


Acontecer presente

Os testemunhos das vítimas revelam o lado oculto da violência que só elas poderiam narrar dessa forma. Sua narrativa é um acontecimento que desvela o sentido da barbárie sofrida. A verdade do testemunho das vítimas tem um estatuto epistemológico próprio. Ela excede a empiria dos fatos para desvelar o sentido oculto pela mera empiria. Ela traz para a história a memória. Seu testemunho é memória significante do acontecimento. Ao testemunhar retira o acontecimento do esquecimento colocando-o na história. O testemunho da violência constrói a memória histórica fazendo aparecer como verdade aquilo que o esquecimento tenta ocultar. A testemunha é história, seu testemunho é acontecimento porque ela constitui o acontecer ao narrar o acontecido. Sua narrativa se constitui como memória que resgata da história o acontecimento passado transformando-o num acontecer presente.

Seu testemunho torna-se um ato de justiça histórica. Poder testemunhar o acontecimento da barbárie traz à luz do presente a injustiça sofrida pelas vítimas da violência. A rememoração da injustiça sofrida é o primeiro ato de justiça. O seu testemunho se torna o primeiro acontecimento de justiça histórica que servirá de suporte para a consecução de outras formas de justiça às vítimas: justiça de transição, reparação, etc.
Agamben assinala que o testemunho da vítima, diferentemente do testemunho do observador, excede o processo. O processo requer a objetividade do testis; o testemunho direto da vítima, supertestis, narra esse lado oculto, cinzento, em que se trava a luta política pelo significado simbólico político dos acontecimentos. Ainda que o devido processo tem que ser realizado para que a justiça histórica possa vingar, nem o processo nem direito esgotam o sentido do testemunho da vítima. Há uma consistência no testemunho da vítima que o torna um acontecimento irredutível ao direito, ou seja, ao mero testemunho procedimental como peça de um processo. Cada sobrevivente e vítima da barbárie se constituem em testemunhas cuja narrativa excede qualquer questão de direito.

Ainda cabe uma distinção importante entre os termos supertestis e o termo grego martis, que significa testemunha. Foram denominados mártires os cristãos que nos primeiros séculos sofreram a perseguição do império por causa de sua fé e se mantiveram firmes nas torturas e até na morte. O mártir era uma testemunha de sua fé e dava testemunho dela confessando-a ante as autoridades do império, mesmo sob tortura e morte. O martírio é um tipo de testemunha que envolve dois momentos: num primeiro a testemunha é presa e levada para os porões e cadeias sem opção. Num segundo e como estratégia política para desmoralizar o novo grupo social do império, oferece-se ao cristão a liberdade de renunciar publicamente a sua fé. Se aceitar fica livre sem nenhum tipo de dano, mas ela não é testemunha porque se negou a testemunhar. Como é sabido, este dilema provocou intensos debates entre os cristãos com posições diversas. Sabia-se que, se não houvesse testemunhas, mártires, as comunidades cristãs perderiam toda a credibilidade, que era o objetivo primeiro. Mas muitos cristãos questionavam sobre se deixar-se matar era algo aceitável por Deus, se não seria muito mais evangélico preservar a própria vida. Independentemente desses debates, o que se colocou em questão é o sentido de testemunhar e o valor do testemunho.

Há uma diferença importante entre o mártir e o supertestis. O mártir tem uma opção que as testemunhas do estado de exceção não tiveram. Os torturados, mortos e desaparecidos pelos regimes autoritários sofreram a violência sem opção. Foram tornados testemunhas sem liberdade para não ser. Seu “serem testemunhas” é inerente a serem vítimas da violência. Embora existam alguns casos pontuais em que se oferecia a possibilidade de livrar-se da tortura caso delatassem seus colegas, esses são exceções e ainda cada caso envolve uma triste história de vida.
A pesar dessa importante diferença também há dois pontos de similaridade entre o mártir e o supertestis. O primeiro diz respeito à etimologia do termo grego, mártir, que deriva de um verbo que significa recordar, fazer memória. Tal raiz se conecta com o objetivo primeiro da testemunha e do mártir que é sua vocação de fazer memória. Ele tem a vocação da memória. Sua condição singular que lhe situou no interior da violência lhe confere uma perspectiva única para fazer memória do acontecido.

Há um segundo elemento que aproxima as duas experiências de testemunho. O debate interno dos primeiros cristãos a respeito da pertinência ou não de dar testemunho e, como consequência, tornar-se mártir remete ao absurdo de se ter que encontrar razões e argumentos para justificar uma morte insensata, o martírio. A morte dos inocentes, que se tornaram culpados porque serem vidas que ameaçavam o império, era um escândalo. O escândalo do absurdo de uma carnificina sem outro motivo que prevenir a segurança do império. A doutrina sobre o martírio surgiu para tentar compreender o sentido da morte dos inocentes e ainda para legitimar seu testemunho. De igual forma, destaca Agamben, o testemunho dos campos de extermínio nazistas exige uma constante justificação de sua existência. Parece que não mais seria necessário testemunhar. Que os dados empíricos são suficientes e eloquentes por si mesmos. Contudo, o absurdo das violências cometidas nos estados de exceção latino-americanos ou nos campos nazistas obriga a resgatar o testemunho como recurso narrativo que expõe o sem sentido da barbárie na dor das vítimas.

Há algo de indizível no próprio testemunho da vítima. Mesmo com a utilização de todos os recursos narrativos, nunca poderá dizer plenamente a sofrimento da violência. A narrativa da tortura não explica nem esgota todos os significados que a tortura provocou nas testemunhas. A zona de indizibilidade da violência é a mais dolorosa, aquela que a testemunha tem que sofrer sem poder expor porque a linguagem é insuficiente para tornar-se um pleno acontecimento. A testemunha expõe o lado oculto e perverso da violência, mas se torna impotente para dizer o todo da violência. Por isso seu testemunho é um acontecimento perene. Sua condição de testemunha e vítima desvela no seu ser aquilo que fica oculto pela impossibilidade da linguagem.


O direito contamina o estatuto ético da testemunha

Agamben chama atenção para o fato de que quase todas as categorias que utilizamos para pensar a dimensão ética e até teológica estão contaminadas pelo direito: culpa, responsabilidade, inocência, julgamento, absolvição... A marca do direito conduz estas dimensões da testemunha e da violência para uma armadilha, muitas vezes pouco percebida. Agamben sustenta que, por princípio, o direito não pretende o estabelecimento da justiça, nem sequer o da verdade. O que o direito pretende é estabelecer o julgamento. O direito existe por e para que se realize o processo e o julgamento. Tal tese se demonstra precisamente pela figura da força da coisa julgada, inerente ao direito. O julgamento encerra a possibilidade da justiça e da verdade. Ainda que depois do julgamento se comprove a injustiça cometida, a força da coisa julgada impede que se julgue outra vez. O direito produz a res judicata cuja sentença pretende substituir o justo e a verdade.

Estes são os limites do direito que cercam como sombra a compreensão da ética e também da condição singular da testemunha direta da violência. Uma das consequências da natureza autorreferencial do julgamento, segundo Agamben, é que a consequência principal do julgamento não é a pena, já que o próprio julgamento é a pena. No processo todos sofrem a pena do processo. Só quem conseguir ficar fora de qualquer processo ao longo da vida se tornará realmente inocente. Não é absolvição que outorga a inocência, mas a possibilidade de escapar ao processo.

Contudo, Agamben questiona a confusão que dilui a responsabilidade jurídica que um ato de violência e barbárie requer com o conceito de responsabilidade ética. A barbárie cometida nos estados de exceção contra milhares de pessoas desprotegidas não pode ser reduzida à mera culpa moral nem à fatalidade teológica. Não se pode esconder a responsabilidade por tamanha violência na forma de responsabilidade moral dos verdugos. Agamben, contra Hans Jonas e inclusive contra Levinas, reivindica que a responsabilidade é, desde a perspectiva genealógica, de origem jurídica e não ética ou teológica. O termo responsabilidade deriva do termo latino spondeo, que tinha uma significação jurídica pela qual alguém era fiador (responsável) por outro. Os esponsais era o rito em que o pai oferecia garantia do matrimônio da filha (sponsa) ou em seu lugar a reparação, caso não acontecesse os esponsais.

Agamben destaca que a genealogia histórica da responsabilidade nos remete ao âmbito da obligatio jurídica e não da magnanimidade ética. Daí deriva que a responsabilidade (jurídica) estava vinculada à culpa. Ou seja, o sujeito responsável era imputável pela obligatio contraída. Esta relação se estabeleceu originariamente no âmbito do direito e só posteriormente foi transferida para outros âmbitos: ética, teologia. Não há nada de nobre nos nazistas, como o caso de Eichmann, que assumiram para si a responsabilidade moral dos atos ante Deus, mas não reconheciam a sua imputabilidade jurídica porque executavam ordens superiores. Muitos torturadores latino-americanos invocaram a lei da devida obediência para eximirem-se da responsabilidade jurídica dos fatos. O argumento de que a lei de anistia do Brasil retirou qualquer responsabilidade pelos atos de tortura, mortes e desparecimentos de pessoas pretende relegar, em última instância, a um julgamento moral da barbárie.


Leia mais...

Castor Bartolomé Ruiz 
escreveu quatro artigos especiais à IHU On-Line sobre essa temática:

* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011

* O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011

* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011


* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição