Edição 375 | 03 Outubro 2011

Hans Jonas e a vida como valor máximo

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Márcia Junges

Relações da humanidade com o meio não podem prosseguir subjetiva e egoisticamente, aponta Bartolomeu Leite da Silva. Atentado à vida promovido pelo “antropocentrismo ocidental” beira os limites da irracionalidade e é autofágico

“A discussão de Jonas em torno do tema da vida vem exatamente preencher a lacuna da vaguidão dos conceitos metafísicos deixados pela filosofia da consciência, e mostrar quão prática, em tom forte, é a questão do ser em sentido biológico, vital, a ponto de encontrarmos vinculações necessárias e fundamentais com a manutenção da vida no planeta”. A constatação é do filósofo Bartolomeu Leite da Silva, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, analisando o legado filosófico de Hans Jonas. Para ele, esse filósofo alemão “representa uma corrente de pensamento que está consciente de que nossas relações com o meio não podem continuar seguindo os parâmetros de uma racionalidade pautada em certos princípios subjetivos, egoístas”. A vida como valor maior é o grande norte de Jonas. Sem ela “não há pergunta nem respostas, nem linguagem, nem sentidos, nem homem, nem mundo”. Crendo na possibilidade da vinda de um “homem novo”, Jonas “encontra o mundo da vida, a ética, o próximo, que pode ser qualquer um que preserve a vida, que não atente contra a vida do próximo e do planeta”.

Bartolomeu Leite da Silva é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS cursou doutorado em Filosofia com a tese O conceito de mundo de Heidegger como base filosófica da crítica de Apel a Habermas. Leciona na UFPB e é autor de Problemas de teoria do conhecimento: Tópicos especiais de filosofia moderna (Maceió: EDUFAL, 2007) e Crítica e metacrícitca: de Kant a Habermas (João Pessoa: EDUFPB, 2010).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em que aspectos Hans Jonas  é autor de uma “biologia filosófica”?

Bartolomeu Leite da Silva –
A pergunta pela origem (Parmênides ), mais tarde pelo ser (Aristóteles ), sempre foi a mais respondida pela tradição filosófica ocidental. Isso já bastaria para vincular Hans Jonas ao primado da existência e da vida no planeta, ainda que numa perspectiva bastante geral, dado que sua filosofia se vincula originalmente ao tema da vida, da bioética. Tomemos Heidegger  com sua crítica a essa generalidade, no sentido de que a pergunta pelo tema tem conduzido a respostas vazias, e, por isso, caído num vazio de sentido, e então teremos Jonas num ambiente bastante atual e particular de questões relativas ao problema da existência, hoje, no planeta Terra. Saímos da generalidade da questão e passamos para uma particularidade de horizonte, no qual a vinculação filosófica da pergunta pela vida pelo meio ambiente se torna a mais expressiva e atual das questões humanas em relação à vida. Assim, uma “biologia filosófica” funda a pauta da vez na discussão filosófica em tom imperativo nos tempos atuais.
A discussão de Jonas em torno do tema da vida vem exatamente preencher a lacuna da vaguidão dos conceitos metafísicos deixados pela filosofia da consciência e mostrar quão prática, em tom forte, é a questão do ser em sentido biológico, vital, a ponto de encontrarmos vinculações necessárias e fundamentais com a manutenção da vida no planeta. Filosoficamente, perguntar pela vida é perguntar por aspectos fundamentais que dão prioridade a um dado interpretativo palpável, visível, mensurável, antecipatório que está logo ali, à nossa frente, e independe de opinião ou interpretação. Apenas depende de uma semântica positivada como uma constatação. A vida é, simplesmente é. Existo, logo penso! Parafrasearíamos Descartes . Ela não funda o ser, eis que é o próprio ser. Tudo o mais dela deriva.
Se em Heidegger a linguagem inaugura o mundo, parafrasearíamos em Jonas que o bios fundamenta o ser da linguagem. Ela é a condição de tudo e todas as coisas. Há que se ter vida para ser, falar, pensar, agir... Sem vida não há pergunta nem respostas, nem linguagem, nem sentidos, nem homem, nem mundo, assim pensa Jonas. Portanto, uma biologia filosófica torna-se o tema pelo qual o ser humano pode alcançar, ainda que tardiamente, respostas para questões relativas à ciência, ao sentido, ao ser e ao mundo em geral. A biologia entra pela porta da frente na casa da filosofia e descortina a questão do sentido como questão biológica fundamental, uma biologia filosófica.


IHU On-Line – Qual é a relação entre o “princípio responsabilidade” de Jonas com o movimento ambiental na Alemanha?

Bartolomeu Leite da Silva –
Muitas relações podem ser feitas entre o “princípio responsabilidade” e o movimento ambiental na Alemanha, sobretudo se escolhêssemos um determinado período histórico, dado que este tipo de filosofia comprometida com o seu tempo bem reflete o espírito cultural e filosófico dos alemães. Desde que Hegel compreendeu a filosofia como expressão do seu tempo em pensamento, os alemães não pararam de encarar a relação com o meio ambiente como fator não apenas de responsabilidade, mas como condição de vida. Homem e mundo passam a definir, ainda no século XX, uma única esfera de valor e vida, tendo que aprender uma nova forma de relação com o meio ambiente e tendo que aprender novos hábitos para poderem vislumbrar aquilo que, em conceito, já se prefigurava: um futuro enquanto presente contínuo. A noção de tempo como epocalidade (Hegel) constitui, portanto, a chave de entrada do problema do meio ambiente, a antecipação de uma bioética, na filosofia e na vida do povo alemão, e com isso descobre-se uma vinculação necessária entre o “princípio responsabilidade” e o movimento ambiental. A partir dessa vinculação, compreende-se que o tempo deixa de existir apenas enquanto um presente, proveitoso e cheio de oportunidades econômicas, para se conviver com uma noção de tempo como existencialidade (Heidegger), uma relação com o outro (alter/Anderen). E este outro Jonas bem sabe que não é uma figuração puro-conceitual na cultura. O “princípio responsabilidade” tem um alcance ontológico fático, existencial, o outro como gente-irmã. Esse outro é o próprio eu manifestado sociobiologiamente, o “nós” que constitui a nação, o povo. A alteridade é carne e vida que extrapola o meio humano. A natureza deixa de ser objeto de uso duvidoso e incontrolado, e assume um lugar na vida da sociedade, ou seja, assume uma finalidade. Como finalidade ela adquire uma nova posição ontológica perante o homem e o mundo, perante a sociedade constituída. É essa nova ontologia do meio ambiente que faz com que, na vida do povo alemão, seja criada uma nova esfera de respeito e valor para com a vida no planeta, ou seja, que adquire sentido e validade o “princípio responsabilidade” de Jonas.


IHU On-Line – Em que aspectos o pensamento desse filósofo é atual para a compreensão das questões de bioética?

Bartolomeu Leite da Silva –
A bioética se define atualmente por uma ética aplicada ao meio ambiente (Umwelt), a tudo que está ao nosso redor, o mundo num sentido mais prático e cotidiano. Hans Jonas representa uma corrente de pensamento que está consciente de que nossas relações com o meio não podem continuar seguindo os parâmetros de uma racionalidade pautada em certos princípios subjetivos, egoístas. Racionalidade e vida se perfazem numa relação de parceria pela existência não apenas do pensamento, mas também do corpo, da vida, e isso Jonas compreende como nenhum outro filósofo do seu tempo. O império da técnica mostrava-se estagnado na sua aplicabilidade pelo homem, de modo que é preciso repensar incondicionalmente a relação do homem com seu meio em termos de uma ética da responsabilidade, se se quer ter vida num tempo próximo. A bioética assume uma posição ontológica fundamental no esquema da compreensão e assunção da questão da vida ao nosso redor. Desde que a técnica assumiu os horizontes de uma razão incontrolada, denunciada como ofuscamento das luzes (Adorno e Horkheimer), uma nova mitologização do saber e da cultura, Hans Jonas se faz atual e duradouro em seu pensamento de reconfiguração das relações do homem com seu meio. A atualidade da filosofia de Jonas certamente será grande e permanente, na medida em que a tecnologia presente no mundo inspira cuidados e controle, de tal modo que qualquer deslize se configura com a morte para o homem, quer dizer, para a vida no planeta. A tecnologia nuclear, por exemplo, não apenas criou o medo na humanidade, mas a certeza de que o incontrolado pode acontecer, pode fugir do nosso controle; há um monstro visível e palpável, não adormecido, que pode se revelar como no instante de um raio, criado pela cultura científica moderna, que assusta o homem naquilo que de mais valor ele cultivou: sua própria vida. Portanto, enquanto formos dependentes da técnica moderna, e creio que isso é a permanente condição de vida do homem moderno, nós, o pensamento de Hans Jonas será nosso guia para uma reflexão perene sobre a vida e a morte aqui e agora, ou seja, sempre.


IHU On-Line – Qual é a importância do legado heideggeriano no pensamento de Jonas sobre a técnica?

Bartolomeu Leite da Silva –
A técnica é a ciência aplicada, a tecnologia transformada em conhecimento prático. Essa noção Heidegger deixa como legado para seu aluno. Com isso Jonas não discorda de um ponto de vista intelectual. O problema aparece quando o sentimento de mundo do homem entra de férias e parece não se dar conta de um perigo iminente, real, ao alcance de qualquer parte no planeta: a falta de controle do pensamento sobre os meios de produção, sobre o que está envolvido nessa adorável tecnologia. Antes que nos apressemos e falemos de um consumo desenfreado, como se ele fosse freável, é importante lembrar dos recursos não renováveis do planeta. São eles, em suas quantidades e qualidades, que deveriam regrar o uso de certas tecnologias no planeta. Ou seja, a esgotabilidade dos recursos deve ser a chave para o estabelecimento dos limites de consumos das energias dos recursos não renováveis do planeta. O capital determina os lucros, mas não determina a vida. Ao contrário, extermina a vida quando incontrolado. Heidegger não se enganou ao compreender a técnica como expressão universal do espírito europeu no mundo, uma europeização do mundo. Mas Jonas crê que essa europeização corre perigo quando dela perdemos a noção do controle, quando o lucro do capital parece extrapolar o compromisso com o meio ambiente. Ou seja, quando se perde a noção de humanidade. E aí parece que o homem se predestina, prescreve o seu próprio fim. Mas não é essa a escatologia que Jonas defende; é antes uma responsabilização para com o outro que se respalda no meio ambiente. Antropologicamente, Jonas quer destacar, contra filosofias existencialistas, que não temos a opção pela vida, mas somente a condição de viver. E aí entra o tema da responsabilidade nossa com o meio ambiente.


IHU On-Line – Após a filiação de Heidegger ao partido nazista, Hans Jonas questiona o valor da filosofia. Em que medida essa decepção se reflete em suas obras posteriores?

Bartolomeu Leite da Silva –
Creio que Jonas se recente da condição teórica da filosofia como um todo ao ver seu mestre se comprometer com um regime pressuposto de posições político-metafísicas duvidosas e totalitaristas, que perdeu a noção do real e alça voo para um imaginário, para um céu de ilusões conceituais da raça idealizada, e por isso ele busca uma realização radical da filosofia noutra esfera, num lugar em que as nuvens do erro da metafísica não se confundam com o céu da verdade, quer dizer, contra Hegel idealista, com o chão da verdade. Para Jonas, a filosofia da consciência ainda decepciona na sua atitude política, na medida em que ela ainda se limita a uma metafísica da vida que exagera em sua compreensão política de homem, ainda concebe a pureza de raça como realização de pensamento, uma espécie de idealismo alemão reencarnado. Parece o fim último de todas as teorias. Contra essa atitude, Jonas conclama a esfera esquecida não do mundo da vida, como na fenomenologia, mas da vida no mundo. De novo o debate sobre o tema da condição e não da opção pela vida que temos. Só podemos viver. E Jonas parece acreditar pouco que o rumo da filosofia heideggeriana, atrelada ao Führer, favoreça a uma unidade do ser da nação alemã, quer dizer, favoreça a vida. Desilusão? Melancolia? Saudade de viver? Apenas lutar! Viver!


IHU On-Line – Sob quais aspectos a filosofia de Jonas é uma reação ao antropocentrismo ocidental?

Bartolomeu Leite da Silva –
A filosofia de Jonas é uma reação ao antropocentrismo ocidental no sentido em que este se guia pela ideia de um racionalismo idealista autoconstituído e possuído por uma ideia de vida vinculada a um princípio de dominação sobre o objeto. É isso o que acontece com a filosofia de Descartes e Kant, e piora em Hegel. O objeto, o real, não passa de uma ficção e pressuposição da consciência. Como afirma Heidegger, o ser é uma posição, algo posto pelo sujeito. Isso é o idealismo. O espírito da cultura europeia parece agir no mundo com essa atitude, desde tempos remotos, e parece que os limites de tal atitude racionalista chegam ao seu limite porque compromete a sobrevivência da própria cultura. O atentado à vida que o antropocentrismo ocidental dissemina beira os limites da irracionalidade, ele é autofágico. O velho Marx já pensava assim, na medida em que propunha uma inversão na filosofia, que ela começasse a existir pelo real material, não pelo real idealizado da cultura idealista europeia. Jonas alarga essa fronteira e acredita no homem novo, um novo conceito que atravessa os limites da existência do real e do racional do idealismo alemão, e encontra o mundo da vida, a ética, o próximo, que pode ser qualquer um que preserve a vida, que não atente contra a vida do próximo e do planeta. Contra uma ressaca metafísica de conceitos vazios, Jonas propõe recuperar uma noção de humanidade ligada à vida e à existência dos seres em suas relações vitais. A vida humana reinterpretada perde o lugar e a noção de sua centralidade e assume-se como contiguidade do mundo, biosfera viva e inseparável de si mesma. Uma fuga para dentro de si, para a vida do mundo. Viver para pensar e sentir, e não sentir e pensar para viver.


IHU On-Line – Frente aos dilemas do pós-humanismo, qual é a relevância da obra de Jonas?

Bartolomeu Leite da Silva –
O pós-humanismo coloca-se inicialmente com uma atitude de representação dos valores, e isso parece convencer a muitos: uma certa transvaloração assumida como mediação linguística no trato das relações interpessoais. E nisso parece que uma responsabilização ética surge e se torna eficaz, e basta para a vida social dos indivíduos. Ora, a meu ver isso convence temporariamente, dado que qualquer consenso acerca dos valores vividos é sempre temporário e vinculado a gostos e tradições que, em muitos casos, não alcança o vizinho. Guerra dos grupos particulares frente à cultura de paz universal? Penso que até o conceito de guerra já foi relativizado a ponto de não fazer mais diferença para a cultura pós-humanista. No fundo, o prazer representa a vida e a vida alimenta o prazer, a ilusão do conceito transmutada em dados materiais. E culturas de grupos se afirmam e se destacam na universalidade da multidão. Antes que se geste um preconceito contra o advento da diversidade, que se se conscientize dos limites da criação e da necessidade de afirmação de um tipo de comportamento como esse. Até que ponto essas culturas particulares interagem entre si é a questão que se deve discutir. Se os totalitarismos falham por pressuporem demais, a cultura pós-humanista falha por pressupor de menos. E o perigo reside na quebra do limite de transposição rumo aos outros, à vida e ao todo da sociedade. Assim, Jonas permanece atual no sentido de vincular uma finalidade para nossas ações. Nessa finalidade, entrevemos uma vinculação ética do homem consigo mesmo e com o meio ambiente. Ou seja, uma diversidade de vidas e culturas que concorrem para uma universalidade da biosfera, da genialidade da vida que nos pertence, da alegria de viver!

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