Edição 196 | 18 Setembro 2006

A contribuição de Anchieta e Nóbrega para a história do Brasil

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IHU Online

O tema Anchieta e Nóbrega: jesuítas fazendo a história do Brasil será conduzido pelo Prof. Dr. Nicolás Extremera Tapia, da Universidade de Granada, Espanha, durante o Seminário Internacional A Globalização e os Jesuítas, que ocorrerá na Unisino, de 25 a 28 de setembro.

 

Nicolás Tapia ensina no Departamento de Filologia Românica da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Granada. É licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de Granada e doutor em Filologia Românica pela mesma instituição, com a tese História e Estéticas do Modernismo Português: a revista Orpheu.

Tapia é autor de diversos livros, entre os quais citamos Fernando Pessoa e as Estéticas de Orpheu. Granada: Editora da Universidade de Granada, 1979 e Padre Antônio Vieira: O Mito do Quinto Império e a Utopia Social no Brasil. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

Confira, a seguir, a entrevista que ele concedeu, por e-mail, para a revista IHU On-Line, falando sobre o tema que desenvolverá no evento da próxima semana.

IHU On-Line - Como o senhor relaciona o ser jesuíta e seu trânsito pela literatura, especialmente pela literatura brasileira?

Nicolás Tapia
- A cultura foi uma das peculiaridades da ordem desde suas origens. De fato, os primeiros membros tinham um título adquirido na Universidade de Paris e estavam excepcionalmente bem formados para aqueles tempos. Além disso, Santo Inácio insistia em que os jesuítas deviam cultivar também “os meios humanos”, especialmente a doutrina e a eloqüência, para alcançar os próprios fins. O momento de inflexão no empenho cultural jesuítico chegou em 1548 com a abertura, em Messina, da primeira escola da Companhia. Os jesuítas compartilhavam o ideal humanista de que toda a boa literatura tinha um objetivo didático de estímulo e de moralidade dirigido à vida ativa, ou seja, para a construção do próprio caminho, para tornar-se, assim, um leader na vida.

A formação do caráter

O objetivo da educação jesuítica não consistia tanto na busca de uma verdade abstrata ou especulativa – objetivo da universidade – quanto na formação do caráter dos estudantes. Além disso, os fundadores conheceram em Paris um método que permitia aos estudantes realizarem rápidos progressos: era o comumente chamado “método parisiense” ou modus parisiensis. Um aspecto particularmente importante do estilo parisiense era o principio de que o melhor modo de adquirir aptidão para escrever ou falar não consistia, simplesmente, em ler bons autores, mas sim, em ser um estudante ativo, motivado para compor discursos e pronunciá-los em classe ou em qualquer outro lugar. O mais relevante era a aplicação desse princípio ao teatro. Não bastava ler os grandes dramaturgos da Antigüidade. As obras teatrais tinham que ser representadas por atores-estudantes. Em muitas cidades pequenas, os colégios jesuíticos com seus teatros e seus programas públicos chegaram a ser as maiores instituições culturais locais. Assim, os jesuítas estabeleceram um compromisso com a cultura em geral, de tal ordem, que muitos dos grandes autores do século: Corneille , Molière , Lope de Vega , Calderón  etc. se formaram em seus colégios.

O caso brasileiro

No Brasil, a aplicação destes princípios didáticos teve características especiais. O precário estado cultural de seus habitantes determinou que a literatura, especialmente a lírica, surgisse vinculada à música. Os primeiros textos literários produzidos no Brasil foram compostos sobre músicas populares procedentes do cancioneiro e romanceiro peninsulares, cujas letras eram mudadas “para o divino”. Essa prática, que tinha suas origens imediatas em São João de Ávila , foi freqüentemente utilizada por Anchieta e pelos primeiros missionários. Também o teatro jesuítico teve, no Brasil, suas peculiaridades. Enquanto na Europa surgiu com adaptações de Terêncio  e dos clássicos gregos e romanos para derivar a seguir para formas mais espetaculares como as óperas e as montagens cortesãs de Claude François Menéstrier; no Brasil, adotou, no início, formas primitivamente espetaculares, construídas como enfrentamentos entre anjos e demônios para progressivamente ir-se dotando de conteúdos cultos.

IHU On-Line - Que aspectos o senhor destacaria como marcantes do jesuíta José de Anchieta?

Nicolás Tapia
- Os mesmos que foram destacados pelo padre Peter-Hans Kolvenbach, Geral da Companhia de Jesus, em uma carta que escreveu para toda a Ordem, por ocasião do 4º Centenário da morte do padre Anchieta (1997), quando disse a seu propósito: “Missionário e místico, poeta com notável sentido prático, apaixonado pelo Senhor e pelos pobres, próximo aos homens e à natureza, culto e singelo, ENFERMO, com enorme capacidade de resistência, FECUNDO, apesar da carência absoluta de recursos, o brilho de sua figura simpática não ofusca, mas atrai”.

IHU On-Line - Como caracterizaria os escritos do padre José de Anchieta?

Nicolás Tapia -
Por seu sincero pragmatismo posto ao serviço do apostolado e pela enorme diversidade de seus interesses. Da conjunção destes dois elementos procede uma resultante didática pedagógica, que é o fator que melhor o caracteriza. Para realizar seu trabalho apostólico, Anchieta se serve de um excelente domínio da língua da tradição cristã: o latim, e das línguas de uso vulgar: o espanhol, o português e o tupi. Nessas línguas, atende à formação do índio, do colono, do seminarista e nos transmite um imenso saber que interessa à lingüística, à oratória, à história, à literatura, à antropologia, à pedagogia, à sociologia, à etnografia, à medicina, à botânica, à zoologia. Tudo quanto, direta ou indiretamente, possa ser útil para o apostolado merece a atenção de Anchieta que, com o mesmo interesse, escreve aos irmãos enfermos de Coimbra e ao rei Felipe II. Em quase tudo, foi um pioneiro que escreveu sua obra com a mais absoluta carência de recursos, no meio do mato, sem bibliotecas, vivendo entre índios, sempre em trânsito de um lugar para outro.

Anchieta nasceu poeta e fez-se apóstolo

No campo da literatura, que é principalmente o objeto do meu interesse, Anchieta é, sobretudo, um pioneiro e não apenas por ser o primeiro a escrever poesia e teatro no Brasil, para o Brasil e sobre o Brasil, em todas as línguas que dominava. Anchieta é também o primeiro épico das Américas, o primeiro mariólogo da Companhia e das Américas, o primeiro historiador da Companhia no Brasil. O primeiro livro que foi impresso sobre o tema brasileiro é obra de Anchieta, e as primeiras canções que ressoaram nestas terras também são obra sua. Tudo dirigido ao apostolado, tudo traspassado de poesia, porque Anchieta nasceu poeta e fez-se apóstolo.

IHU On-Line - Que aspectos o senhor destacaria da vida e do pensamento de Manuel da Nóbrega?

Nicolás Tapia -
Nóbrega é, antes de tudo, um organizador. Sua formação de jurista em Coimbra e Salamanca e sua experiência e bom senso foram determinantes para que o padre Rodrigues, primeiro provincial da Companhia, o enviasse ao Brasil. Todos estavam cientes de que as características da Colônia eram completamente diferentes do habitual no mundo conhecido e era necessário um homem de firme convicção e de grande flexibilidade para encarregar-se da nova situação. A preocupação fundamental de Nóbrega, antes mesmo de pensar na evangelização, era a liberdade do índio. Neste país, antes de converter seus nativos em cristãos, era preciso convertê-los em homens. Convém recordar que Nóbrega chegou ao Brasil com o primeiro governador, quando não havia qualquer tipo de organização administrativa, nem de qualquer outro gênero, e o que encontrou era praticamente um punhado de marginais portugueses e alguns índios seminômades, que eram facilmente presa dos brancos, os quais viam neles uma mão-de-obra mais ou menos dócil.

A liberdade do índio para sua evangelização

O interesse de Nóbrega era, sem sombra de dúvidas, a liberdade do índio, condição indispensável para sua evangelização. No entanto, para chegar a isso teve que colaborar ativamente na criação de modos de organização social e econômica que lhe permitissem atingir seus fins. Sua habilidade política pronta para colaborar com os diferentes governadores, com a igreja secular e com os colonos, fazem dele o primeiro estadista do Brasil, pois seus interesses iam mais além do imediato e tendiam a definir modelos estáveis de convivência. Quando havia uma infra-estrutura colonial prévia, Nóbrega se decidiu pela mudança, como modo de assegurar a sobrevivência do branco e a liberdade do índio, mediando esse tipo de relação comercial; porém logo descobriu que era possível fundar assentamentos estáveis de índios, próximos aos dos portugueses e com autonomia própria. Essa experiência de organização social está na base do que a seguir foram as reduções jesuíticas que se estenderam também pela América espanhola.

IHU On-Line - Qual foi o impacto dos dois jesuítas no Brasil, tanto na Companhia de Jesus como na história do País?

Nicolás Tapia
- Ainda que, desde a chegada de Anchieta, em 1553, até a morte de Nóbrega, em 1570, ambos tivessem colaborado ativamente, cada um deles imprimiu seu próprio cunho. Nóbrega foi o primeiro provincial do Brasil e da América e o criador de uns modelos de organização que estavam limitados pelas peculiaridades da gens brasileira, porém essa falta de cultura dos nativos também lhe permitiu realizar experiências impossíveis em outros lugares; essas experiências seriam utilizadas depois, quando aos jesuítas foi concedido o acesso à América espanhola.

Aprendizagem e experiência mística

Anchieta foi o quinto provincial, em um momento em que a Ordem estava já bastante assentada e o País vivia uma fase de organização mais avançada; então o prioritário era a evangelização e Anchieta, partindo das diversas experiências dos membros da Ordem, definiu alguns modelos que iniciavam pela aprendizagem das línguas e culminavam na experiência mística. A literatura, e sobretudo o teatro, teve um importante papel nesse empenho, pois a gradação das obras para os diversos espaços: selva, aldeia, vila, colégio, direta e inversamente apontava para uma transitividade do índio para o sacerdócio e do sacerdote para o índio. Esses modelos, de um pragmatismo e de uma beleza exemplares, continuam hoje, na minha opinião, plenamente vigentes.

IHU On-Line - Como o contato com os índios mudou a vida dos dois missionários e como souberam dialogar com os povos indígenas?

Nicolás Tapia
- Não somente mudou a vida de ambos, mas também colocou à prova suas mais firmes convicções. Não havia lembrança, nem sequer na bíblia, de que a humanidade houvesse conhecido povos cujo estado de civilização fosse tão baixo e dever-se-ia remontar aos contatos dos egípcios com os pigmeus, em tempos de Seti II, para encontrar algo semelhante. Por mais avisados que estivessem, convém recordar que Nóbrega era um sacerdote formado na escola do padre Vitória e, na América espanhola, nem Las Casas , nem mesmo Montesinos, se haviam defrontado com costumes tão depravados como a antropofagia. Por sua parte, Anchieta, com somente dezenove anos, era talvez, o mais jovem missionário da história, enfermo e formado nas sutilezas intelectuais dos clássicos. A sensação de horror e impotência deve ter sido enorme, tão enorme como sua fé no gênero humano e sua capacidade para exercer o apostolado em condições tão adversas. Não deve ter sido fácil para eles manterem o princípio da liberdade do índio ante os interesses dos colonos portugueses que encontravam com facilidade argumentos para defender o direito à escravidão.

Os métodos da aculturação indígena

Os jesuítas, assim, tiveram que lutar simultaneamente em duas frentes: contra os colonos, para assegurar a liberdade do índio, e contra os costumes dos indígenas mais contrários à evangelização, especialmente a belicosidade e a antropofagia. Uma vez estabelecidos os assentamentos, começou um processo de sedução, primeiro pela música e a dança e, a seguir, pela palavra. Nessa linha, a obra dramática de Anchieta constitui todo um processo revelador do método de aculturação do índio. Seus autos, graduados perfeitamente de acordo com o nível do público ao qual estão dirigidos, combatem primeiro os costumes perniciosos, identificando-os como próprios de tribos hostis, e apresentam personagens como diabos indígenas, com nomes de caudilhos inimigos, que se enfrentam com santos mártires, protetores da aldeia, para ir, a seguir, introduzindo conceitos como “alma”, “confissão” etc., até estabelecer um vínculo entre o paganismo clássico e o moderno do índio brasileiro, vencidos ambos pelos paladinos do cristianismo.
 

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