Edição 196 | 18 Setembro 2006

As missões jesuíticas nos sete povos das missões

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IHU Online

O jesuíta espanhol Bartolomeu Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em ciências religiosas pela Universidade de Estrasburgo, sempre acompanhou e conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilingüismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações recentes, citamos El don, la venganza y otras formas de economía. Assunção: Cepag, 2004.

Confira, a seguir, a entrevista que Melià concedeu com exclusividade para a revista IHU On-Line. Nela, ele fala sobre o tema As missões jesuíticas nos Sete Povos das Missões, que ele apresentará durante o Seminário Internacional A Globalização e os Jesuítas, que acontecerá na Unisinos, de 25 a 28 de setembro.

IHU On-Line - Qual é a importância de comemorar o Ano Jubilar Inaciano?  E qual a importância de, neste contexto, realizar um seminário sobre a Globalização e os Jesuítas na Unisinos?

Bartolomeu Meliá
- Não somente é importante comemorar uma data íntima e familiar - o centenário de nosso pai -, mas também recordar a dimensão globalizante de sua visão e de seus projetos que, em quatrocentos anos, chegaram a quase todo o mundo e mesmo até a menor realidade do universo. Observando a face do mundo, do modo como o faz a Santíssima Trindade , nota-se aquilo que ninguém viu; o que já foi e também o que pode vir a ser. Nenhum particular nos deveria ser estranho.

IHU On-Line - Qual é a marca mais característica da Companhia de Jesus em sua atuação no Brasil e no mundo? Em que sentido podemos dizer que os jesuítas são precursores da globalização?  

Bartolomeu Meliá
- O Verbo universal, diz Dom Pedro Casaldáliga , fala somente dialeto. Os jesuítas vieram ao Brasil com uma missão sem limites, não restrita aos colonos portugueses. Este fato os obriga a estudar a língua dos índios. Aprender uma língua é globalizar-se. A globalização não é somente impor modos de ser gerais e uniformes, mas sim acompanhar a cada um na realização de sua própria vocação, sem deixar de lado seu próprio ser. Muitos missionários puderam evangelizar os índios na mesma medida em que foram evangelizados por eles.

IHU On-Line - O que o senhor mais destacaria sobre a experiência dos jesuítas nas missões?

Bartolomeu Meliá
- Conheço pouco sobre o trabalho dos jesuítas nas Missões do Brasil. Nas do Paraguai, com os índios Guarani, os jesuítas sentiram que podiam compartilhar a mesma fé, levaram o conhecimento desta fé, e ao mesmo tempo propuseram um sistema de vida que lhes parecia mais político e humano. Os índios, a julgar pelos dados históricos, aceitaram a proposta. Eles não tiveram que abandonar sua língua nem sua economia. Os jesuítas, por seu lado, para poder aprender a língua, a converteram em escrita e em gramática; fizeram também dicionários, que são verdadeiros monumentos lingüísticos apreciados pelos cientistas que os estudam. Conseguiram, graças à colaboração dos indígenas, construir conjuntos urbanísticos tão notáveis, que hoje são declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Outras artes plásticas, como a escultura, alcançaram grande nível. Muito além da cópia e da imitação, os indígenas deram provas de criatividade, até mesmo em estilos que não lhes eram próprios. No campo da música revelaram-se mestres. Parece que a Utopia encontrou seu lugar no Paraguai e ali se estabeleceu. Os povos das Missões atraem até hoje o interesse, não somente de visitantes e turistas, mas também de historiadores, sociólogos, economistas e políticos.

IHU On-Line - Qual foi a importância de Sepé Tiaraju e de que forma se poderia dizer que ele encarna ou dialoga com a proposta jesuítica?

Bartolomeu Meliá
- O paradoxo de Sepé Tiarajú , cacique de São Miguel, é que, para defender aquele território, não somente as terras de seu povo, que era também o seu, e como tal reconhecido pela Coroa espanhola, ele teve de ir à guerra. A territorialidade dos guaranis sempre havia sido defendida pelos jesuítas. A fase da diplomacia, durante a qual os 7 povos das Missões enviaram repetidas cartas (1753), mostrando seus direitos e sua vontade pacífica, não foram aceitas. Muitos jesuítas sentiam que os Guarani rebelados defendiam uma causa justa, porém se sentiram impossibilitados de permanecer a seu lado até o fim. Talvez fosse o mais prudente, dada a violência exercida pelos governos da Espanha e Portugal, unidos contra os índios, e para que o holocausto não fosse ainda maior. Logo a seguir, os jesuítas seriam também expulsos dos domínios de Portugal e Espanha. Era o principio do fim.

IHU On-Line - Como era a relação entre os povos guaranis e os jesuítas nas Missões? Havia autonomia por parte dos índios? Quais eram as características desse convívio?

Bartolomeu Meliá -
O início das Missões teve várias frentes, e nem sempre foi pacífico. Alguém fala de “guerra de messias” entre feiticeiros guaranis e padres jesuítas. No Caaró, mataram inclusive três missionários: Roque Gonzaléz, de Santa Cruz, Alonso Rodríguez e Juan del Castillo. Entretanto, o mais freqüente, foi a boa acolhida que os padres tiveram. A fundação de povos foi feita de acordo com o gosto dos índios. A aprendizagem da língua guarani não podia ser feita sem um alto grau de convivência, embora os padres mantivessem suas habitações separadas e um estilo de vida que não era certamente o indígena. Os Guarani, por seu lado, participaram com entusiasmo da vida litúrgica proposta, que, em realidade, era muito solene e cheia de novidades. Representações teatrais e jogos de diversos tipos, entre os quais o jogo de bola com o pé (futebol), eram diversões comuns aos domingos e dias de festa. Os jesuítas mostraram sentir-se muito bem com “seus” guarani, e os guarani com “seus” padres.

IHU On-Line - O Papa João Paulo II afirmou que "o termômetro de uma democracia é o modo como ela trata as populações indígenas". Como está a democracia no Brasil e na América Latina atualmente?

Bartolomeu Meliá
- O sentido dessa afirmação me parece consistir no fato de que as sociedades indígenas nos colocam diante de uma ecologia mais humana e de um sistema de comunicação de bens e de mensagens mais igualitário. A maioria das sociedades indígenas, desde que não tenham sido demasiadamente degradadas pelo sistema colonial, mostram uma grande alegria de viver, estão menos preocupadas com coisas materiais e mantém um grande respeito mútuo. Todos sabemos que a democracia eleitoreira do Brasil e da América Latina, se é que se pode falar de modo tão geral, está marcada precisamente pela desigualdade e pela iniqüidade. E parte da política está estruturada para manter e fortalecer essas desigualdades. A palavra não é livre.


 

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