Edição 372 | 05 Setembro 2011

A defesa de Brizola pela Legalidade foi heroica

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Márcia Junges

Causa justa e legítima mobilizou a população brasileira através do rádio pela posse de Jango. Esse foi um dos motivos que marcaram o governador gaúcho como “elemento subversivo”, explica Juremir Machado

Espécie de “rede social” nos idos de 1961, o rádio mobilizou “corações e mentes” através da retórica inflamada e convincente do então governador gaúcho, Leonel Brizola, mentor da Rede da Legalidade. O movimento, composto por mais de 104 emissoras no território brasileiro, exigia o cumprimento da Constituição, da lei, que dizia que quem deveria assumir o cargo do presidente renunciante, Jânio Quadros, era seu vice, João Goulart. O golpe, à primeira vista “fácil” de se dar, foi impedido pela reação popular em torno da causa justa e legítima, pontua o jornalista e historiador Juremir Machado, na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. Entre outros aspectos, ele relembra a cobertura engajada da mídia brasileira, além da “incômoda” figura de Brizola, que ficou marcado como “elemento subversivo” por vários fatores, um deles a Legalidade. “Sua atitude em 1961 em defesa da legalidade foi heroica”.

Escritor, jornalista e historiador, Juremir Machado é doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de professor do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social – Famecos e coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUCRS, assina coluna no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Juremir estará no Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 08-09-2011, quando apresenta o livro Vozes da Legalidade: política e imaginário na era do rádio, livro que acaba de lançar pela editora Sulina, de Porto Alegre.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que afirma que a mobilização de 1961 não teria o mesmo alcance sem a Rede da Legalidade? Qual foi a maior peculiariedade dessa Rede?

Juremir Machado – Afirmo isso porque, em qualquer situação histórica de convulsão é preciso um meio de comunicação capaz de colocar em contato imediato os líderes e o povo. Agora estamos vendo os países árabes e seus movimentos sociais que têm sido catalisados pelo uso das redes sociais. Em 1961, no Brasil, o rádio era a rede social. Brizola se comunicava com a população, a mobilizava e a informava. As notícias eram importantes e era preciso também fazer um discurso de mobilização. Foi através do rádio, com a requisição da Rádio Guaíba e a instalação desta no Palácio Piratini, que ele manteve esse contato permanente com a população através de várias manifestações diárias. Como se formou uma rede de rádios, que chegou a ter 104 emissoras, o Brasil inteiro ficou a par dos acontecimentos que, sem essa iniciativa, teriam sido encobertos, escamoteados e manipulados. A população estava disposta a ser mobilizada, e Brizola estava disposto a fazê-lo. Para isso, contudo, era preciso um meio de contato imediato, o rádio. Sem ele essa comunicação que incendiou corações e mentes, a mobilização teria sido impossível.

IHU On-Line – O que explica a aglutinação das mais de 100 emissoras na Cadeia da Legalidade?

Juremir Machado – Significa muita coisa. Primeiro de tudo, que a população não aceitou o golpe e o considerou arbitrário, e que, à medida que as informações foram sendo divulgadas, se conscientizou ainda mais da clareza, justeza e legitimidade da causa. Isso fez com que as pessoas se mobilizassem ainda mais. Isso teve uma repercussão sobre os militares, que tiveram que repensar suas posições e, também, sobre os políticos, que precisaram buscar uma solução. Aquele golpe planejado pelos ministros militares que, a princípio, parecia algo fácil de se fazer, tornou-se impossível na medida em que a confiança nacional se cristalizou contra essa iniciativa. O papel da mídia em geral foi fundamental nisso. Não só a rede da Legalidade, mas dos jornalistas fazendo cobertura para os jornais impressos. Essa cobertura foi muito intensa e bem feita.

IHU On-Line – Você afirma que 1961 foi um dos únicos momentos em que a mídia brasileira não foi conservadora. Como analisa a cobertura política realizada pela imprensa nos dias de hoje?

Juremir Machado – A cobertura de imprensa hoje é muito conservadora em geral, basta ver que os jornais do centro do país não têm dado a importância adequada à Campanha da Legalidade. Normalmente se diz que o papel da imprensa é cobrir os acontecimentos e não necessariamente tomar posição. Mas em certos momentos é preciso tomar posição, sim, sempre em defesa do certo, legal e justo. Em 1961 os jornalistas fizeram isso de modo geral. Poucos jornais não apoiaram a Legalidade: a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda , e O Estadão, que também ficou do lado dos golpistas. Contudo, de modo geral, a imprensa teve um comportamento exemplar naquele momento, no sentido de compreender a causa que estava em jogo e fazer uma cobertura intensa, profunda e, na maior parte das vezes, engajada no lado certo, em defesa da Constituição.

IHU On-Line – Além do fato de ter sido um movimento sediado no Rio Grande do Sul, por que a Legalidade não tem recebido a mesma importância nos outros estados brasileiros?

Juremir Machado – Talvez porque o presidente que saiu, Jânio Quadros, era um político “paulista”, mas nascido em Mato Grosso. Os paulistas perderam, mais uma vez, com saída de Jânio. E certamente porque a figura de Brizola ainda incomoda, principalmente a mídia conservadora. Ele ficou marcado como o elemento subversivo que enfrentou a tentativa de golpe em 1961, e em 1964 queria resistir ao outro golpe. Ficou marcado, também, por suas tentativas guerrilheiras durante a ditadura, além dos enfrentamentos com a Rede Globo enquanto governador. É uma figura, portanto, incômoda para os setores conservadores da mídia.

IHU On-Line – Brizola teve um papel fundamental na Legalidade, e uma carreira política meteórica como governador do Rio Grande do Sul e da Guanabara. Depois disso, caiu numa espécie de subvalorização política. A que atribui esse fato?

Juremir Machado – Acredito que pelo fato de não ter chegado à presidência da República e por ter governado o Rio de Janeiro, um estado muito “difícil”, com problemas sociais seríssimos e, igualmente, por ter se desgastado nas brigas com a Rede Globo. Outro fator que pode ter contribuído para essa subvalorização talvez seja o apoio que ofereceu a Fernando Collor de Mello em determinado momento. No final de sua vida, Brizola pode ter tido uma trajetória um tanto quanto contraditória e sinuosa. Contudo, não entro na avaliação do “último Brizola”, pois não tenho uma pesquisa específica sobre isso. Meu foco é o Brizola de 1961. Seu governo no Rio Grande do Sul de 1958 a 1962 foi extraordinário, um grande governo. Sua atitude em 1961 em defesa da legalidade foi heroica.

IHU On-Line – Há alguém na política brasileira que tenha o carisma político desse líder?

Juremir Machado – Vivemos tempos muito diferentes. Felizmente, hoje não precisamos de alguém que defenda a democracia contra o golpe. Estamos numa democracia. Isso faz com que os políticos de hoje pareçam naturalmente menores. Eles não estão em situação da realização de atos heroicos. Por outro lado, isso significa, também, que não estamos em situação de atentados à democracia. Se houvesse uma tentativa de golpe, talvez alguns políticos teriam condições de demonstrar seu heroísmo.

IHU On-Line – Como é ouvir aqueles discursos de Brizola? Que sentimentos e memórias eles evocam?

Juremir Machado – É algo emocionante ouvir esses discursos, no sentido das imagens, das metáforas inflamadas que trazem ao ouvinte. Brizola tinha uma retórica ótima, convincente, usava expressões de nosso vocabulário gaúcho, o que o aproximava da população. Quando ouvimos aqueles discursos, sentimos a força do que diziam.

IHU On-Line – Esses fatores foram elementos de coesão entre Brizola e o povo?

Juremir Machado – Isso contou muito, sim. Mas se a causa não fosse justa e clara, não teria adiantado. Brizola não convenceu retoricamente as pessoas. Ele catalisou um sentimento que estava no coração dos brasileiros.

IHU On-Line – Por que afirma que a Rede da Legalidade foi o último grande ato da era do rádio?

Juremir Machado – Porque cada época tem uma tecnologia de comunicação dominante. O rádio teve sua era de ouro e, em seguida, entramos na era da televisão. Esse passou a ser o principal meio de comunicação de massa no Brasil, como ainda o é até hoje. Pode ser que venha a ser ultrapassada pela internet, mas ainda tem preponderância em nossos dias. Até 1961-62 o rádio era a principal tecnologia de comunicação. A televisão estava engatinhando, tanto que há poucas imagens da televisão sobre a Legalidade. Quem “mandava” naquela época, do ponto de vista da comunicação, era o rádio. Já o golpe de 1964 se “apoia” na televisão, fomenta e consolida a Rede Globo.

IHU On-Line – Que outros meios, hoje, tomaram lugar do rádio em termos de mobilização política e social?

Juremir Machado – Cada meio tem sua dinâmica. Hoje, o rádio é muito mais informativo e interpretativo. As redes sociais têm a peculiaridade que são de todo mundo, não têm filtro algum. Cada um é dono de seu meio de comunicação, do seu Twitter, Facebook. Elas são mais propícias à mobilização porque cada um pode se exprimir sem filtro, são totalmente abertas. Já o rádio e a TV são empresas que possuem postura ideológica, interesses, direcionamentos.

Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Juremir Machado à IHU On-Line.

* Geração Y “parece coisa de revista Veja”. Edição número 361, Revista IHU On-Line, de 16-05-2010;

* A cultura política do RS mudou. Para pior. Entrevista publicada nas Notícias do Dia em 8-10-2010;

* “1968 reduz enormemente a carga de hipocrisia da sociedade”. Edição número 250, Revista IHU On-Line, de 10-03-2008.

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>> Sobre a Campanha da Legalidade veja também:

* Do rádio à internet: a legalidade e a mobilização popular. Entrevista especial com Christa Berger;
* O Jango da memória e o Jango da História. Entrevista com Lucília de Almeida Neves Delgado;
* Nacionalismo e antiamericanismo: a legalidade e a política externa norte-americana. Entrevista com Carla Simone Rodeghero;
* Leonel de Moura Brizola. 1922-2004. Revista IHU On-Line, número 107;
* Campanha da Legalidade. 50 anos de uma insurreição civil. Cadernos IHU em Formação, número 40. 

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