Edição 372 | 05 Setembro 2011

“Os bancos estão sendo salvos pelo Estado”

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Graziela Wolfart

Maria Lúcia Fattorelli entende que a crise atual não é somente financeira, mas que vivemos uma profunda crise de valores, fruto do modelo econômico que prioriza a financeirização, que transforma tudo em mercadoria e que está destruindo o planeta
Quadro número 1

“O setor financeiro, que foi o responsável por essa crise, foi salvo pelos governos à custa de grande aumento no endividamento público. Esse endividamento está sendo arcado principalmente pela classe trabalhadora mediante a redução de salários e aposentadorias, cortes de direitos, fim do acesso a diversos serviços públicos, aumento da carga tributária, desemprego, despejo e até fome, pois um dos ingredientes da atual crise é a forte especulação com o preço dos alimentos nas bolsas de valores”. A análise é da auditora fiscal Maria Lúcia Fattorelli, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Segundo ela, “embora milhões de pessoas estejam perdendo seus empregos, suas casas, seus direitos e até suas vidas, os bancos estão sendo salvos pelo Estado. Essa é a cruel face do capitalismo”. Para Fattorelli, a crise financeira atual já atingiu bastante o Brasil. E continua atingindo: “temos resistido porque o Brasil é muito rico e destinou em 2010 nada menos que 45% dos recursos do orçamento da União (635 bilhões de reais) para o pagamento de juros e amortizações da dívida”.

Maria Lucia Fattorelli é auditora fiscal da Receita Federal e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida pela Campanha Jubileu Sul. É graduada em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Contábeis Machado Sobrinho, em Juiz de Fora. É especialista em Administração Tributária pela Fundação Getúlio Vargas e organizadora do livro Auditoria da dívida: uma questão de soberania (Rio de Janeiro: Contraponto, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem são os maiores prejudicados pela crise no setor financeiro mundial?

Maria Lúcia Fattorelli – Em todo o mundo, o custo da crise está sendo repassado para a população. O setor financeiro, que foi o responsável por essa crise, foi salvo pelos governos à custa de grande aumento no endividamento público. Esse endividamento está sendo arcado principalmente pela classe trabalhadora mediante a redução de salários e aposentadorias cortes de direitos, fim do acesso a diversos serviços públicos, aumento da carga tributária, desemprego, despejo e até fome, pois um dos ingredientes da atual crise é a forte especulação com o preço dos alimentos nas bolsas de valores.

IHU On-Line – Quais as origens da dívida pública na Europa e nos Estados Unidos? O que está na raiz desta crise?

Maria Lúcia Fattorelli – A crise financeira atual tem origem no setor financeiro bancário internacional. Os maiores bancos europeus e estadunidenses enveredaram-se em criativa produção de papéis financeiros sem lastro, os chamados “derivativos”. Diversas séries desses papéis que a grande mídia denomina “ativos tóxicos” foram emitidas pelos bancos e inundaram o mercado financeiro internacional, criando uma verdadeira bolha de papéis podres, sem respaldo em ativos reais. Essa emissão desenfreada de derivativos foi possibilitada por um crescente relaxamento das normas de controle do mercado de capitais e propiciou imensos lucros para os maiores bancos do planeta no primeiro momento, pois os mesmos lucravam com a venda de derivativos cujo custo era quase zero, já que a maioria não passava de mera “aposta” especulativa em relação a outro ativo. Derivativos deram margem ao surgimento de outro conjunto de papéis que funcionavam como “seguro” para proteger aquelas apostas. O problema surgiu quando aquelas “apostas” se frustraram e o volume de “seguro” a ser pago se mostrou demasiadamente elevado. Nesse momento, aqueles bancos considerados “grandes demais para quebrar” foram salvos pelas nações mediante a emissão de títulos da dívida pública soberana. Assim, a crise do setor financeiro bancário transformou-se em uma crise de dívida pública.

IHU On-Line – Se as instituições financeiras são “grandes demais para quebrar”, por que precisam da ajuda dos governos, que hoje estão endividados por essa causa?

Maria Lúcia Fattorelli – A expressão “grandes demais para quebrar” é justamente uma denúncia da cumplicidade existente entre essas grandes instituições financeiras e os respectivos governos. O envolvimento de figuras públicas da equipe econômica de Clinton, Bush e Obama em atos de defesa das maiores instituições do mundo são relatados no livro de Andrew Ross Sorkin (Too big to fail: Inside the battle to save Wall Street. Londres: Penguin Books, 2010). Apesar dessas instituições financeiras terem praticado atos abusivos contra a população e lesivos às finanças do país, contaram com a proteção e ajuda governamental para evitar que falissem. Embora milhões de pessoas estejam perdendo seus empregos, suas casas, seus direitos e até suas vidas, os bancos estão sendo salvos pelo Estado. Essa é a cruel face do capitalismo.

IHU On-Line – Quais os riscos da desregulamentação no mercado financeiro internacional e da autonomia do setor financeiro bancário?

Maria Lúcia Fattorelli – A regulamentação por meio de normas legais e administrativas determina limites de atuação e significa uma segurança para a sociedade de que o setor financeiro – onde depositamos nossa poupança, investimentos, etc. – está sob controle. A desregulamentação é justamente o contrário: deixa o setor financeiro funcionar a seu bel-prazer, e foi justamente essa desregulamentação que possibilitou a criação de tantos produtos financeiros sem lastro, antes mencionados. As teses que defendem a autonomia do setor financeiro e até do Banco Central advogam que tais setores não deveriam submeter-se a uma orientação “política” de determinado governo. Na realidade, tais setores financiam campanhas eleitorais de todos os níveis, em todo o mundo, e colocam os políticos assim eleitos a seu serviço. A atual crise está servindo para escancarar essa prática inescrupulosa que tem custado muito caro à população.

IHU On-Line – Como o Brasil tem se colocado diante desta crise? Qual deveria ser a postura do país? Corremos o risco de ser atingidos pela crise?

Maria Lúcia Fattorelli – No primeiro momento a crise estourou no hemisfério Norte porque os grandes bancos dos EUA e Europa foram os responsáveis pelas operações de derivativos e seus respectivos seguros, que se revelaram “podres”. A crise afetou o Brasil em 2008 devido à forte fuga de capitais e ao abalo sofrido por algumas instituições financeiras que haviam efetuado aplicações naqueles papéis podres. A crise agravou a exigência de recursos para o cumprimento dos pagamentos de juros e amortizações e serviu de justificativa para a utilização da Medida Provisória 435, que havia sido enviada por Lula ao Congresso Nacional em junho/2008, para transferir ao setor financeiro vultosas somas de recursos vinculados a áreas estratégicas do país, conforme quadro número 1.

 
Para se ter uma ideia do impacto da crise no Brasil, os juros efetivamente praticados nos leilões de títulos da dívida interna alcançaram 18,56% em outubro/2008 enquanto a Selic estava em 13,75%. Várias medidas foram editadas no Brasil, todas com o viés de favorecimento ao setor financeiro e às grandes corporações, tais como (ver quadro número 2).

Em meio à aprovação dessas medidas, houve queda do PIB e da arrecadação tributária em 2008, o que serviu de justificativa para corte de gastos sociais da ordem de 24 bilhões de reais no início de 2009. Mas poucos meses depois emprestávamos 10 bilhões de dólares ao FMI, sob a declaração pública do presidente Lula de que “é chique emprestar ao FMI”.
Essas e várias outras medidas expuseram o domínio do setor financeiro em nosso país, cujo aspecto central é o endividamento público. A crise evidenciou a anomalia do modelo econômico vigente que promove a contínua transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado, e o veículo dessa transferência é o “Sistema da Dívida”.
Questionável postura que vem sendo adotada pelo Brasil é o contínuo enxugamento de dólares que ingressam no país diariamente mediante a sua troca por títulos da dívida interna que pagam os juros mais elevados do mundo. Tal operação tem provocado prejuízos brutais ao Banco Central – 147 bilhões de reais em 2009 e 50 bilhões em 2010 – que são arcados pelo povo, tendo em vista que são repassados ao Tesouro Nacional e cobertos com mais títulos da dívida ou por cortes de gastos e investimentos públicos. O Banco Central fica com os dólares, destinando-os para investimentos no exterior, principalmente em títulos do tesouro estadunidense que não rendem quase nada e ainda financiam as políticas norte-americanas, tais como o salvamento de bancos falidos e a manutenção de uma máquina de guerra em todo o mundo.
Como visto acima, essa crise já nos atingiu bastante e continua atingido. Temos resistido porque o Brasil é muito rico e destinou em 2010 nada menos que 45% dos recursos do orçamento da União (635 bilhões de reais) para o pagamento de juros e amortizações da dívida. Infelizmente nossa população está anestesiada devido a tantos séculos de exploração, diferentemente do povo europeu que ocupa diariamente as ruas em protestos e imensas manifestações contra a retirada de direitos.
O mais grave é que já identificamos diversos mecanismos que significam o risco de transferência ainda mais expressiva dessa crise para o Brasil.

IHU On-Line – Nesse contexto de crise, é recomendável que o Brasil invista suas riquezas (por exemplo, o fundo social do pré-sal) em “ativos internacionais”?

Maria Lúcia Fattorelli – Creio que a resposta mais prudente seria NÃO, pois além do evidente risco de adquirirmos os ativos “tóxicos”, que são material abundante no mercado financeiro internacional, nosso país – campeão em desigualdades sociais e regionais – tem inúmeras destinações aqui mesmo para a realização de investimentos reais. Diante disso, não se compreende a razão pela qual a lei n. 12.351, aprovada na véspera do Natal de 2010, determinou  que a aplicação dos recursos do Fundo Social do Pré-sal – FS será realizada da seguinte forma: “investimentos e aplicações do FS serão destinados preferencialmente a ativos no exterior”. Tal operação representa efetivo risco de absorção, para o Fundo Social do Pré-Sal, dos abundantes ativos tóxicos que contaminam as economias da Europa e Estados Unidos, cujo rendimento será nulo. A presidente Dilma chegou a afirmar que pretende utilizar os recursos do pré-sal para reduzir a pobreza e para outras áreas sociais. Porém, a lei aprovada pelo Congresso Nacional prevê que os recursos do pré-sal serão destinados ao exterior, e somente o rendimento desse fundo será destinado para as áreas sociais. Na realidade, o Fundo Social corre o risco de se tornar o “lixão” que aliviará de vez os trilhões de papéis podres que ainda inundam o sistema financeiro internacional.
Também não se compreende a razão pela qual a lei n. 11.887/2008, que criou o Fundo Soberano – FSB, determinou que os “recursos do FSB serão utilizados exclusivamente para investimentos e inversões financeiras (...) sob as seguintes formas: I – aquisição de ativos financeiros externos (...)”. Para aumentar ainda mais o risco, as alterações introduzidas pela recém aprovada lei 12.409/2011 permitiram que a União emitisse, a valor de mercado, sob a forma de colocação direta em favor do FSB, títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal. Evidencia-se, dessa forma, a nítida operação de troca de “ativos internacionais” por títulos da dívida brasileira, passando pelo Fundo Soberano. Este é mais um risco de importação de papéis podres para o país e mais uma evidência de que o instrumento da dívida pública foi usurpado pelo mercado financeiro, deixando de funcionar como um mecanismo de financiamento do Estado para se tornar um produto financeiro que possibilita grandes negócios.

IHU On-Line – Qual a importância da auditoria da dívida nesses países em crise?

Maria Lúcia Fattorelli – O grande mérito da auditoria da dívida é a oportunidade de acessar provas e documentos que revelem a verdade: a natureza e a origem da dívida; as ilegalidades e ilegitimidades; os beneficiários e os responsáveis, propiciando ações de ordem legal e política, em busca da Justiça. As experiências de auditoria da dívida na América Latina – auditoria oficial no Equador e auditoria cidadã no Brasil – bem como as investigações da recente CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados provaram que, desde a década de 1970, a dívida externa com a banca privada internacional favoreceu unicamente aos bancos credores, pois nos últimos 40 anos esse tipo de dívida representou transferências líquidas brutais ao exterior, ao mesmo tempo em que a dívida se multiplicava por ela mesma. A atual dívida interna brasileira é também externa, pois grande parte dos títulos encontra-se em poder de bancos, fundos de pensão e fundos de investimento estrangeiros, que obtêm lucros exorbitantes face à incidência de juros altos sobre a variação cambial, isentos de tributos.

A auditoria da dívida também provou que a crise financeira que abalou as economias do Terceiro Mundo no início da década de 1980 foi provocada pelos mesmos grandes bancos privados internacionais que controlavam o Federal Reserve System – FED (Sistema de Reserva Federal) e a Associação de Bancos de Londres  – que procederam a elevação unilateral dessas taxas de 6% para mais de 20%. Evidenciou também que a crise provocada pelos bancos abriu a oportunidade para a interferência expressa do FMI em nossas economias, impondo planos de ajuste fiscal idênticos aos que agora são impostos à Europa. A história se repete. Crises provocadas pelos bancos são transferidas às Nações por meio do endividamento público. O Equador deu uma lição de soberania ao mundo e soube aproveitar os resultados da auditoria da dívida , anulando 70% de sua dívida externa em poder da banca privada internacional, o que está permitindo aumento dos investimentos sociais principalmente em saúde e educação, bem como a construção de rodovias de concreto, dentre outros investimentos reais. É muito importante que os países europeus também iniciem rapidamente uma auditoria da dívida – seja oficial, cidadã ou parlamentar. Nesse sentido, a Irlanda já iniciou os trabalhos de forma cidadã , utilizando nossa experiência brasileira como exemplo. Da mesma forma, o documento final de grande conferência realizada em Atenas em maio/2011  concluiu pela necessidade de organizar uma comissão de auditoria cidadã, também mencionando a experiência brasileira.

IHU On-Line – Existe uma solução coletiva possível para reverter a crise financeira? Quais os possíveis caminhos para essa solução?

Maria Lúcia Fattorelli – Creio que sim. Há uma saída e ela só terá sucesso se for coletiva; e creio que somos muitos lutando por isso. Essa crise não é somente financeira. Vivemos uma profunda crise de valores, fruto do modelo econômico que prioriza a financeirização, que transforma tudo em mercadoria e que está destruindo o planeta. O desespero de milhões de famílias que estão pagando a conta da “epidemia de fraudes” dos bancos é infame. Além disso, assistimos a crise alimentar, a crise ecológica/ambiental, e principalmente a crise social marcada por violência e inaceitável abismo social que condena milhões de seres humanos à exclusão. Os caminhos para solucionar todos esses problemas são diversos, mas todos passam pelo conhecimento da realidade e pelo empoderamento da população que paga a conta e sofre as consequências, a fim de que possa ser construída ampla consciência que irá influenciar os governantes e dirigentes de todos os níveis e pressioná-los para que, ao alcançar posição de comando, passem a servir à sociedade e não aos mercados.

Leia mais...

>> Maria Lúcia Fattorelli já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:

* Dívida pública e juros. Quem paga a conta? Entrevista publicada nas Notícias do Dia de 25-05-2010.

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