Edição 367 | 27 Junho 2011

O riso e suas interdições na sociedade

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Márcia Junges e Patricia Fachin

O riso é produto de uma cultura e resulta da complexidade do social, afirma Maria Generosa Ferreira Souto, professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Montes Claros

“O riso liberta o ser de tudo que oprime, do medo da limitação e do limitador”, mas nem sempre o ato de rir ou sorrir teve esta conotação. Na Idade Média, o riso tinha um caráter negativo e foi excluído dos ritos oficiais. Segundo a pesquisadora, “o riso era excludente, era interditado, pois visava somente à seriedade”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Maria Generosa comenta como o riso foi compreendido ao longo da história da humanidade e enfatiza que o “ato de rir está condicionado a diversos significados determinados pelos códigos de comunicação aceitos coletivamente, pelas convenções partilhadas”. Ainda hoje, diz, o riso sofre interdições em locais de trabalho e na sala de aula, onde “rir alto, e gargalhado, é proibido, é falta de educação, é falta de princípios, é escandaloso, é vulgar”.

Maria Generosa Ferreira Souto é mestre em Letras, na área de Literatura Brasileira, e doutora em Comunicação e Semiótica.

Confira a entrevista.



IHU On-Line – Quais são as principais interdições que o riso sofreu na sociedade?

Maria Generosa Ferreira Souto –
As principais interdições do riso partiram do princípio de que rir em praça pública ou em ritos oficiais da Igreja era proibido. O riso foi excluído e controlado.


IHU On-Line – Ainda hoje existem interdições ao riso? Quais são elas?

Maria Generosa Ferreira Souto –
Sim. Ainda hoje há interdições do riso, uma vez que o poder e a autoridade, por exemplo, jamais impregnam a linguagem do riso. O riso liberta o ser de tudo que oprime, do medo da limitação e do limitador. Algumas das interdições, hoje, demarcam locais de trabalho em que rir alto, e gargalhado, é proibido, é falta de educação, é falta de princípios, é escandaloso, é vulgar. Há professores que indagam a seus alunos a famosa frase: “Está rindo de quê? Parece um bobo, um palhaço”. Com isso, ocorre a discriminação, pois o aluno é tolhido de sua manifestação, de sua linguagem risível.


IHU On-Line – Quais são as maiores diferenças entre o riso medieval e o do Renascimento?

Maria Generosa Ferreira Souto –
Na Idade Média, o riso era excludente, era interditado, pois visava-se somente à seriedade. Passa a se referir a caráter negativo. O riso passa a ser restrito e específico, sendo expurgado. Foi, portanto, necessário excluí-lo dos ritos oficiais. Ocorreu a necessidade de legalizá-lo e mantê-lo sob controle. Quem ri em praça pública é prostituta ou bruxa. Portanto, rir era proibido. Deixa de ter um caráter jocoso e alegre. Na Idade Média o riso não era sensação subjetiva, individual, e, sim, sensação social, universal. É o riso da festa popular, que manifesta a vitória sobre o terror que é inspirado pelo inferno e pelo céu, pelas coisas sagradas e pela morte. E também sobre o temor inspirado por todas as formas de poder, pelos soberanos e a aristocracia social terrestre, tudo o que oprime e limita. É fato que na sociedade da Idade Média havia uma divisão bastante acentuada entre o sério e o cômico. Pode-se dizer que as autoridades, os religiosos e os senhores feudais defendiam a seriedade como atributo da cultura oficial. O cômico, por sua vez, opunha-se à cultura oficial e este valor subversivo o transformou em uma característica essencial da cultura popular.

Já no Renascimento, o riso adquire um profundo valor de concepção de mundo. Através do riso exprimia-se uma verdade a respeito do homem, da história, dos problemas universais que afligiam a humanidade. Com isso, o riso perdeu seu elo essencial com a concepção de mundo, reduz-se ao domínio do particular e do típico. Perde, portanto, seu colorido histórico.


IHU On-Line – Quais são as peculiaridades do risível hoje?

Maria Generosa Ferreira Souto –
É risível aquilo que está fora do indivíduo, aquilo que ele observa nas outras pessoas ou naquilo que o rodeia. Bergson trata o risível como algo que está fora do indivíduo que observa o fato ou a ação. O riso seria uma manifestação relacionada a algo que está fora da pessoa. O riso se modifica após o Renascimento, até a contemporaneidade, tomando a forma de humor, de ironia, de sarcasmo. Em nenhum momento há citação ou referência ao “rir de si mesmo”. É possível pensar em rir de si mesmo, mas se houver um distanciamento do indivíduo e um tratamento de si mesmo como um “outro”. O indivíduo poderá rir de si mesmo se houver uma comparação com o outro, ou com um comportamento que deveria ser o correto, o adequado, o aceito, o esperado, o justo.


IHU On-Line – Em linhas gerais, qual é a concepção do riso em Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp, José Rivair Macedo e Bergson?

Maria Generosa Ferreira Souto –
Mikhail Bakhtin: Por meio do riso e da visão carnavalesca do mundo, a seriedade é destruída e a consciência, o pensamento e a imaginação humana ficam disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades: por isso, que uma certa carnavalização da consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico.
Deste modo, postula Bakhtin, que se pode dizer que o riso é uma das principais formas pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo, sobre a história, sobre o homem, assumindo “um profundo valor de concepção do mundo”.

Henri Bergson: O papel do riso é social, ou seja, o riso é produto dos costumes e das ideias de uma sociedade, por isso se nós não estivermos dentro do contexto, aquilo que é risível para alguém não será para mim. Bergson tirou do riso moderno a ambivalência encontrada nas figuras carnavalescas e grotescas, tais como a bruxa velha prenhe, representando morte e vida ao mesmo tempo.

Para José Rivair Macedo , o riso era, para a sociedade medieval, um bom remédio contra a opressão e um veículo de expressão de liberdade. Segundo Macedo, o riso, a comicidade e a diversão foram mantidos sob suspeitas nos textos de teólogos e moralistas, uma vez que se exigia seriedade. Ao enfatizar as glórias da vida eterna, a ética cristã medieval, incentivando a renúncia aos prazeres terrenos e corporais, valorizava a continência e o rigor moral como condições para a purificação da alma, na preparação para o reencontro com Deus.


IHU On-Line – Como podemos compreender a conexão entre o riso, a transgressão e a carnavalização?

Maria Generosa Ferreira Souto –
Podemos estabelecer um imbricamento entre riso, transgressão e carnavalização, porém, é necessário mostrar o significado de cada signo na humanidade. Bakthin dizia que o verdadeiro riso não recusa o sério, ao contrário, purifica-o e completa-o: “O riso impede que o sério se fixe e isole da integridade inacabada da existência cotidiana” (BAKTHIN, 1996, p. 105). Logo, o intuito do cômico, da transgressão, na literatura, por exemplo, é de instruir e capacitar o leitor para perceber a falsidade e os defeitos do homem, funcionando como um instrumento de combate contra o autoritarismo, a intolerância e a falsa moral da sociedade. O riso significava libertação dos padrões sérios e oficiais. A liberdade do riso, para Bakhtin, era evidentemente relativa, já que seu domínio se alargava ou diminuía, mas jamais foi interdita novamente.

Já a carnavalização, para Bakhtin, caracteriza-se como a celebração do riso, do cômico. Nesse sentido, a paródia é o elemento que mais se aproxima da carnavalização, visto que subverte a ordem pré-estabelecida, pelo deboche, pela sátira da realidade. Quer dizer, a carnavalização está relacionada ao “aspecto festivo do mundo inteiro, em todos os seus níveis, uma espécie de segunda revelação do mundo através do jogo e do riso” (BAKHTIN, 1999, p. 73). O carnaval na concepção de Bakhtin é o locus privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico e fazem explodir a alteridade, o excêntrico, o lado marginal, o periférico, o excludente mesmo. Representa, portanto, a liberdade, o extravasamento de um mundo às avessas. Opõe-se ao sério, ao medo, ao dogmático, diluindo, no conjunto, os ritos, os mitos, as máscaras. É a oposição de valores por um curto período. É a festa popular. Onde tudo é possível e aceitável.


IHU On-Line – Por que rir e sorrir são atos diferentes?

Maria Generosa Ferreira Souto –
Rir é a linguagem de um ato de deboche. É uma manifestação de alegria ou mesmo de zombaria, porém, de forma extravagante e cômica. É abalar o sério e o oficial. É a (des)medida.
Sorrir é a linguagem que envolve um estado de espírito. É sinônimo de felicidade, de plenitude, de agradecimento, de racionalização. Sorrir é um gesto suave de contentamento, de respeito.


IHU On-Line – Poderia enumerar os tipos de riso que existem? O que essa amplitude de tipos de riso demonstra sobre o risível?

Maria Generosa Ferreira Souto –
Levarei em conta os vários tipos de Riso, deixando vazios para que se faça, posteriormente, estudos pertinentes acerca de cada tipo mencionado e em que circunstâncias são manifestados: Riso zombeteiro, Riso gargalhado, Riso de deleite, Riso de prazer, Riso de bruxaria, Riso de loucura, Riso de dor, Riso amargo, Riso triste, Riso trágico, Riso irônico, Riso hipócrita, Riso disfarçado, Riso sarcástico, Riso sardônico, Riso soberbo, Riso despudorado, Riso bastardo, Riso genuíno, Riso alegre, Riso de saudação, Riso de desprezo, Riso de humor, Riso terapêutico, Riso cômico, Riso virtual, Riso caricatural, Riso cultural, Riso caipira, Riso subversivo, Riso romântico, Riso malicioso, Riso insinuante, Riso erótico, Riso sensual, Riso perverso, Riso de deboche, Riso indignado, Riso sereno, Riso burlesco, Riso ambíguo, Riso doce, Riso mímico, Riso amarelo, Riso escandaloso, Riso espetaculoso, Riso tolo, Riso cordial, Riso indulgente, Riso tímido, Riso amável, Riso amigável, Riso hostil, Riso sincero, Riso terno, Riso triunfante, Riso justificativo, Riso infantil, Riso embaraçado, Riso festivo, Riso grosseiro, Riso popular, Riso grotesco, Riso carnavalesco, Riso gratuito, Riso infernal, Riso excêntrico, Riso inteligente, Riso significativo, Riso sem-vergonha.
A partir desta morfologia, depreendi que o riso é produto de uma dada cultura, resultando da complexidade do social. Observei que o homem ri, é verdade, todavia não pelos mesmos motivos e circunstâncias. Conforme Sodré (1974), nem tudo é motivo de riso para todos os homens e, por isso, faz-se necessário reconhecer condicionamentos socioculturais em diferentes grupos humanos ligados à expressão de formas de poder e de crítica social.

Bergson ressalta, portanto, que o riso é um ato fisiológico, resultante da contração dos músculos faciais de acordo com a oscilação de emoções ou de abruptas modificações no estado de espírito dos indivíduos, sendo, portanto, um ato social.

É válido ressaltar que o ato de rir está condicionado a diversos significados determinados pelos códigos de comunicação aceitos coletivamente, pelas convenções partilhadas. Logo, o homem não é apenas “um animal que ri”, mas também um “animal que se faz rir”.

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