Edição 367 | 27 Junho 2011

A fisiologia do riso e a “moderação” da alegria

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Márcia Junges

Objeto de interesse por pensadores ao longo da história, o riso recebeu inúmeros rótulos, como verdadeiro e falso, ressalta Vera Cecília Machline. Gargalhadas desenfreadas eram desaconselhadas, uma vez que também a alegria precisava ser “moderada”

Desde remotas épocas o riso atraiu a curiosidade dos pensadores. No século XVI, por exemplo, havia a distinção entre o riso “verdadeiro” e “falso”. Para o médico de Montepllier Laurent Joubert, o riso “genuíno” era aquele causado sobre coisas ridículas. Por outro lado, o riso considerado “bastardo” teria como origem causas “mórbidas”, “como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum desequilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardonia, a primeira literalmente ‘folhas de riso’”. A explicação é da pesquisadora Vera Cecília Machline, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Ela explica que precisou rever a hipótese inicial de sua pesquisa de doutorado, intitulada François Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a terapêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel. Isso porque uma de suas conclusões foi a aversão de vários pensadores quinhentistas a gargalhadas desenfreadas. “Primeiramente, o riso exagerado era contrário aos preceitos médicos vigentes na época, que recomendavam moderação inclusive na alegria. Em segundo lugar, rir desbragadamente afigurava-se característico de camponeses rudes e do zé-povinho e, como tal, impróprio para integrantes da nobreza e da burguesia então nascente”. Outros temas analisados por Vera Machline são o uso de uma terapêutica do riso em hospitais, e o conceito de gelotofobia, ou seja, o medo de ser ridicularizado.

Vera Machline é graduada em Letras pela Faculdade Ibero-Americana de Letras e Ciências Humanas, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde também cursou pós-doutorado. Atualmente, leciona no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, nessa mesma instituição.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que o riso se destaca na história do pensamento?

Vera Machline – O riso é um assunto fascinante porque, embora já se tenha cogitado muito sobre sua natureza, ainda sabemos pouco a respeito. Ademais, rimos pelos mais diversos motivos: não só diante de uma história engraçada ou uma situação incongruente, mas também por conta de ansiedade ou alívio, surpresa ou frustração, raiva ou afeição, timidez ou desejo de esconder pensamentos pessoais – sem falar de cócegas e da ingestão de determinadas substâncias tóxicas.
Aliás, conforme apurei durante meus estudos de doutoramento, tratados sobre a arte da oratória de Cícero (106-43 a.E.C.) e Quintiliano (c. 25-c. 96) revelam que os antigos romanos já sabiam serem múltiplas as causas do riso. Adicionalmente, em virtude da preocupação dos latinos com o decoro a ser observado no uso do riso na retórica, os romanos tinham mais de uma dúzia de termos para distinguir diferentes tipos de gracejos, como, por exemplo, facetiae, sal, urbanitas, iocus, hilaritas, ludo e acutum.

IHU On-Line – Quais são as diferenças entre sátira, comédia e humor?

Vera Machline – No meu entender, a vertente satírica cultivada pelos antigos romanos ainda é um corretivo social; ou seja, um instrumento para censurar atitudes e comportamentos indesejáveis. A rigor um gênero teatral, comédia hoje se aplica até nas surpresas que a vida nos traz. Já humor, que no século XVIII designava o gracejo típico dos ingleses, aos poucos ampliou sua gama denotativa, ao ponto de agora significar qualquer estímulo cognitivo capaz de despertar divertimento ou graça. Em outras palavras, à semelhança de um prodigioso guarda-chuva, humor atualmente abarca toda sorte de modalidades sério-cômicas, jocosas e derrisórias atinentes aos mais variados gêneros retóricos, dramáticos, literários, gráficos e até musicais.

IHU On-Line – Quais as principais conclusões de sua tese de doutorado “François Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a terapêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel”?

Vera Machline – Para começar, essa tese – defendida em 1996 junto do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, da PUC-SP – versa sobre as divertidas crônicas, hoje reunidas sob o título Gargântua e Pantagruel, que imortalizaram o médico humanista François Rabelais  (c. 1494-1533). Mais precisamente, enfoca a intenção advogada por Rabelais de “dar por escrito um pouco de alívio” a “aflitos e enfermos”, assim como a pessoas passando por aborrecimentos ligeiros, como alguém da nobreza que perdeu uma caça. Outrossim, sustenta a possibilidade de Rabelais também pretender revigorar com suas brincadeiras satíricas a sociedade de seu tempo.

Cumpre esclarecer ainda que, como resultado da orientação escolhida, em vez de ser um estudo literário, essa tese se pautou nas diretrizes metodológicas mais recentes da História da Ciência. Isto, entre outras consequências, me levou a buscar entender como o riso era considerado na época de Rabelais e a levantar fontes quinhentistas tratando do riso, uma vez que as crônicas de Rabelais adiantam muito pouco sobre o assunto.
Ao fim, cheguei a diversas conclusões, algumas inesperadas. Dentre outras, destaca-se o fato de que o riso atraiu a curiosidade de vários pensadores renascentistas. Um motivo foi o postulado “o riso é o próprio do homem”. Citado em Gargântua e Pantagruel, esse axioma deriva da Isagoge de Porfírio  (c. 234-c. 305) às categorias lógicas de Aristóteles (384-322 a.E.C.). Outro fator parece ter sido a então recente “redescoberta” da Poética aristotélica, que traz no Capítulo V uma definição do risível. Mas, por ser reticente e por dizer respeito à Comédia Antiga ateniense, sua compreensão provou-se difícil. Mesmo assim, instigou vários tradutores da Poética a tentarem reconstruir a teoria aristotélica do móvel do riso. Como seria de se esperar, as propostas dificilmente coincidiram, haja vista que, na versão de Eudoro de Souza , a Poética aristotélica define o risível como “apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor.”
Ao ler escritos do século XVI sobre o riso, surpreendeu-me a distinção de alguns autores entre riso “verdadeiro” e “falso”. Por exemplo, segundo o médico de Montpellier Laurent Joubert (1529-1582), riso “genuíno” é aquele que provém da apreensão de alguma coisa ridícula. Já o riso “bastardo” advém de sortidas causas, em sua maioria mórbidas, como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum desequilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardonia. Literalmente “folhas de riso”, a primeira seria um termo de origem grega para o gênero Cannabis, enquanto que a segunda parece dizer respeito à espécie Ranunculus sceleratus Linnaeus.

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