Edição 364 | 06 Junho 2011

A loucura como mecanismo de exclusão

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Márcia Junges

Em termos filosóficos e políticos, a doença mental continua sendo um mecanismo segregatório, vinculada a uma norma “faminta e incansável”, que atinge inclusive níveis microscópicos. Atualidade da obra de Foucault é imensa após os quase trinta anos de sua morte

Uma atualidade indiscutível. É o que o filósofo Alfredo Veiga-Neto aponta a respeito do pensamento foucaultiano: “mais do que nunca, Michel Foucault parece estar presente e falar sobre o nosso presente, mesmo quase três décadas depois de sua morte”. Segundo o pesquisador, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, “os usos da loucura fazem parte da imensa e variada rede de poderes que se exercem numa população; tais usos tornaram-se ainda mais notáveis à medida que cresceram e se firmaram os Estados, na Modernidade”. Ele esclarece que “não apenas filosoficamente, mas também, sobretudo politicamente, a doença mental continua participando fortemente dos mecanismos de exclusão. Costumo dizer que a norma é faminta e incansável. Com essas duas palavras refiro-me ao fato de que sempre e continuamente estão sendo criados/inventados novos critérios para classificar e enquadrar as pessoas”. Essa norma, continua Veiga-Neto, “não apenas alcança todos como também ela desce aos níveis mais microscópicos, particulares e ínfimos de uma população”.

Alfredo Veiga-Neto é graduado em Música e História Natural, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Cursou mestrado em Genética e Biologia Molecular e doutorado em Educação pela mesma instituição, com a tese A ordem das disciplinas. É professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e professor titular (aposentado) do Departamento de Ensino e Currículo, Faculdade de Educação da UFRGS. É também professor no curso de graduação em Gestão Cultural da Unisinos. De sua produção intelectual, destacamos as seguintes obras, por ele organizadas: Crítica pos-estructuralista y educación (Barcelona: Laertes, 1997) e Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzscheanas (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). De sua própria autoria, publicou Foucault & a educação (2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual é a atualidade de A história da loucura?

Alfredo Veiga-Neto -
A resposta a esta pergunta deve se colocar no marco mais amplo que pode ser resumida na expressão “a atualidade de Foucault”. Assiste-se hoje, mundo afora, um verdadeiro revival do pensamento foucaultiano. Principalmente na Europa e nas Américas é impressionante a quantidade de publicações no campo que se costuma denominar “Estudos Foucaultianos”. Ora são as republicações das suas obras, ora é a publicação dos cursos que Foucault ministrou no Collège de France, ora são artigos e livros em que especialistas das mais diferentes áreas discutem o pensamento do filósofo. O fato é que, mais do que nunca, Michel Foucault parece estar presente e falar sobre o nosso presente, mesmo quase três décadas depois de sua morte. Mais do que nunca, ele interessa à Literatura, à Filosofia, à Medicina, à Psicologia, à Educação, à História, à Ciência Política, ao Direito.

Assim, a A história da loucura é não apenas uma obra fundamental que modificou o entendimento contemporâneo sobre os loucos e sobre a loucura como também ela continua importante para uma compreensão refinada do mundo de hoje. Além disso, cada vez fica mais claro que, nessa que foi a primeira grande obra escrita por Foucault, já estavam presentes aqueles que viriam ser os três domínios nos quais centrou suas investigações: o ser-poder, o ser-saber e o ser-consigo, ou seja, os modos pelos quais os sujeitos são constituídos pelos saberes, pelos poderes (disciplinares, normativos etc.) e pelas ações que cada indivíduo pratica consigo mesmo.


IHU On-Line - Há influências dessa obra no movimento da antipsiquiatria?

Alfredo Veiga-Neto –
A história da loucura e, depois, O nascimento da clínica foram livros que, certamente, contribuíram muito para mudar os entendimentos sobre a loucura e, num sentido mais amplo, os saberes que tratam da assim chamada área psi. Desse modo, o movimento da antipsiquiatria foi, em boa parte, alimentado por esses novos entendimentos.


IHU On-Line - Em que aspectos a loucura é controlada pelo biopoder?

Alfredo Veiga-Neto -
Mesmo que o conceito de biopoder não tivesse sido formulado quando Foucault escreveu A história da loucura - e, por isso, essa palavra não conste naquele livro -, não há dúvida de que a ideia de um poder que se exerce sobre todos (e sobre cada um individualmente, como parte desse todo) já está ali claramente presente. Os usos da loucura fazem parte da imensa e variada rede de poderes que se exercem numa população; tais usos tornaram-se ainda mais notáveis à medida que cresceram e se firmaram os Estados, na Modernidade. Assim, as biopolíticas - esse conjunto de ações, estratégias e táticas que colocam o biopoder em funcionamento - invariavelmente passam pelos entendimentos e representações que se têm sobre os loucos, a loucura, a doença mental.


IHU On-Line - A normalidade é um tipo especial de loucura?

Alfredo Veiga-Neto -
Não entendo assim. A norma, uma invenção da própria Modernidade, segue um critério arbitrário; tal critério é retirado (ou inventado a partir) do próprio conjunto ao qual a norma se refere. O resultado disso é que a norma começa por dividir o todo (uma população, por exemplo) entre dois grupos principais: os normais e os anormais.
Por isso, é importante termos em mente que mesmo os anormais estão na norma, são previstos pela norma, são um caso da norma. De acordo, por exemplo, com o critério “doença mental”, uma população passa a ser dividida em sãos e doentes (mentais); se quisermos, passa a ser dividida em normais e anormais (loucos). É assim que opera a norma: distribuindo, classificando, separando etc.


IHU On-Line - Em que medida a transgressão, a fuga aos padrões comportamentais, era compreendida e apontada como loucura? Esse quadro perdura hoje?

Alfredo Veiga-Neto -
Na medida em que a norma passa a ser uma “munição” do âmbito do biopoder, ela é usada para classificar e separar os comportamentos que se afastam daqueles que são convencionados ou estatuídos como sendo os padrões comportamentais desejáveis num grupo humano, numa população. Quanto menos tais comportamentos se enquandrem em tais padrões tidos como desejáveis, mais os indivíduos que os apresentarem serão classificados como anormais. Lembro mais uma vez: serão anormais, mas estarão sob o domínio da norma, continuarão sob o domínio da norma. É por isso que se pode também compreender a loucura no quadro geral das anormalidades. Em Doença mental e personalidade - um livro publicado em 1954, com fortes influências do marxismo e que precedeu em sete anos A história da loucura -, há uma frase muito interessante: “É a doença (mental) que torna possível o anormal e o funda”. A loucura tem essa força de instituir a anormalidade.


IHU On-Line - Para Foucault há uma diferença entre loucura e doença mental? Qual seria essa diferença?

Alfredo Veiga-Neto -
É muito difícil formular uma resposta simples, curta e correta para essa questão. De saída, é preciso esclarecer que, para Foucault, não é possível pensar num conceito unitário para doença que abarcasse, nessa mesma palavra, tanto o domínio fisiológico quanto o domínio psicológico. Para ele, a coesão e a saúde, no plano orgânico, é diferente da coesão e da saúde, no plano psicológico. Além disso, para o filósofo, o conceito de loucura é estabelecido num jogo assimétrico de poder que se estabelece entre aquele que é (ou se diz...) dono da razão, sobre aqueles que são os desarrazoados. Com isso, Foucault abre a tematização sobre a loucura para muito além de simplesmente dizer que ela é uma doença; pensada no marco das relações entre saberes e poderes, no marco da norma, do biopoder, da biopolítica e do governo (de si e dos outros), fica mais claro entender como e por que a loucura, num determinado momento da nossa História, passou a ser compreendida como doença e foi colocada “ao alcance” dos saberes e das práticas médicas.


IHU On-Line - Filosoficamente falando, a doença mental continua sendo um mecanismo de exclusão? Nossa sociedade prossegue fabricando a loucura e construindo naus para trancafiar seus párias? Que naus seriam essas, hoje?

Alfredo Veiga-Neto -
Não apenas filosoficamente, mas também, sobretudo politicamente, a doença mental continua participando fortemente dos mecanismos de exclusão. Costumo dizer que a norma é faminta e incansável. Com essas duas palavras refiro-me ao fato de que sempre e continuamente estão sendo criados/inventados novos critérios para classificar e enquadrar as pessoas. E mais: tanto esses novos critérios quanto os mais antigos e conhecidos não cessam de se refinarem, de se fazerem mais e mais microscópicos. A norma não apenas alcança todos como também ela desce aos níveis mais microscópicos, particulares e ínfimos de uma população.

Assim, não apenas todos têm de estar ao alcance das novas normas - que nos ajuda a compreender, por exemplo, até mesmo as políticas de inclusão -, mas também há um constante refinamento dos limites classificatórios e normativos que “se abatem” sobre todos nós.


IHU On-Line - Há uma crítica reiterada que aponta os pobres como portadores da loucura, enquanto que os ricos acometidos por algum sintoma de doença mental são taxados como excêntricos, por exemplo. Há um nexo que une loucura e pobreza enquanto estigmas socialmente definidos e pré-estabelecidos?

Alfredo Veiga-Neto -
Certamente, sim. Na medida em que são os normais - isso é, aqueles que se consideram normais, que se autodenominam de normais, que são tidos como normais - que criam as normas e na medida em que tal criação se dá num processo carregado, impregnado, de relações de poder, é fácil compreender que há uma associação (às vezes bem expressiva) entre ser louco e ser pobre, ser doente e ser pobre. Aí é preciso ler “ser louco” como “ser tido como louco”; da mesma forma, é bom acrescentar sempre (ainda que não expressamente): “ser tido como pobre” etc. Não esqueçamos que, para Foucault, deve-se sempre pensar em termos relacionais, evitando-se pensar numa suposta essência que seria própria ao louco, ao pobre, ao anormal. A rigor, a questão que importa não é perguntar sobre uma suposta essência que seria própria a esse ou àquele; o que importa é a relação que se estabelece entre esse ou aquele e os demais...

O nexo não se dá na forma de uma determinação, pois não se trata de uma associação necessária; trata-se sempre de um nexo contingente. Ele não depende de alguma suposta natureza humana ou biológica, mas depende, sim, de relações (que são de dominação de uns sobre os outros).



Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Alfredo Veiga-Neto à IHU On-Line.

* Compreensão e rebeldia sobre nós mesmos. Edição número 203 da revista IHU On-Line, de 6-11-2006, intitulada Michel Foucault. 80 anos

* Educação e crise são, reciprocamente, causa e consequência uma da outra. Notícias do Dia do sítio do IHU, em 28-01-2008

* Violência e poder. A violência viola, o poder seduz. Edição 293 da revista IHU On-Line, de 18-05-2009, intitulada O sistema prisional brasileiro

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