Edição 362 | 23 Mai 2011

A religiosidade mística em Wittgenstein

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Márcia Junges

Para Paulo Margutti, o que liga o primeiro ao segundo Wittgenstein é o misticismo. O contato com o Absoluto através da contemplação silenciosa se dá nas duas fases de seu pensamento

“Minha ideia é que, separando o mostrar ético do mostrar lógico, é possível perceber a continuidade do misticismo em Wittgenstein exatamente porque a percepção do valor do mundo ainda existe, mesmo quando se abandona a lógica como sua essência”. A explicação é do filósofo Paulo Margutti, contando aspectos sobre a pesquisa que está realizando a respeito da importância e do papel da religião no pensamento de Ludwig Wittgenstein. Na entrevista que concedeu pessoalmente à IHU On-Line, Margutti assinala que, “na filosofia do Tractatus, assim como na filosofia das Investigações, entrar em contato com o Absoluto através da linguagem é algo muito problemático. Isso porque a linguagem é cheia de limitações”. E completa: “Se for correta a interpretação que faço do misticismo em Wittgenstein, este só pode acontecer em função da contemplação silenciosa. Podemos falar, falar e falar. Mas a única coisa importante que acontece é quando estamos calados”.

Outro tema da conversa com a IHU On-Line foi o fundamentalismo religioso e a tentativa neoateísta de provar que Deus não existe. Na opinião de Margutti, Richard Dawkins não sabe sobre o que está falando ao querer provar racionalmente a inexistência divina. O terrorismo árabe e o americano, exacerbados com o recente assassinato de Bin Laden, também estiveram em pauta: “A morte de Bin Laden não significa a morte do seu sonho. Para os fundamentalistas islâmicos, ele é um mártir. Sua morte implica em que o ideal árabe foi agredido duramente pelos americanos”. Segundo o filósofo, os Estados Unidos se acreditam “a polícia do mundo”, e a ONU só é por eles respeitada quando “está a favor de seus interesses”.

Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, Margutti graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, é especialista em Ciências do Homem e Fenomenologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas, e mestre em Filosofia Contemporânea pela UFMG. Cursou doutorado em Filosofia na Universidade de Edinburgo, Escócia, com a tese Wittgenstein and semantic presuppositions generated by definite descriptions in subject-position. É autor de Iniciação ao silêncio (Análise do Tractatus de Wittgenstein) (São Paulo: Loyola, 1998) e Introdução à lógica simbólica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001). Margutti esteve na Unisinos nos dias 11 e 12-05-2011 como um dos conferencistas do Simpósio Margens da Palavra: veredas filosófico-literárias no Brasil.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais são suas descobertas com a pesquisa que está desenvolvendo a respeito de haver na continuidade do pensamento de Wittgenstein  uma religiosidade mística? Por que o sujeito transcendental de tipo schopenhaueriano desempenha um papel fundamental nesse pensamento?

Paulo Margutti -
A primeira coisa que impressiona em relação a essa pesquisa é o fato de que os estudiosos britânicos de Wittgenstein parecem se recusar a enxergar essa dimensão do seu pensamento. Entre esses filósofos analíticos, um deles, Peter Geach , acha que o único autor a ser lido para compreensão de Wittgenstein é Frege . Se isso fosse verdade, Wittgenstein seria uma pessoa completamente diferente. Geach se esquece de Schopenhauer,  Mauthner  e Tolstoi,  que são claramente relevantes para Wittgenstein. Em segundo lugar, a pesquisa apresenta uma dificuldade em ser realizada porque, aparentemente, o misticismo de Wittgenstein está relacionado com a questão da lógica. No Tractatus logico-philosophicus (2. ed. São Paulo: USP, 1994) ele diz que a lógica é a essência do mundo e o místico envolveria a contemplação da essência do mundo. Se a lógica deixou de ser sublime, como ele diz nas Investigações filosóficas (Petrópolis: Vozes, 1996), então, aparentemente, não há mais misticismo no segundo Wittgenstein. Mas isso não condiz com as observações do próprio Wittgenstein, que encontramos em textos paralelos, da mesma época das Investigações, em que faz referência ao cristianismo como sendo a doutrina que dá sentido à vida, por exemplo.


Mostrar lógico e mostrar ético

Na minha pesquisa, o que percebi é a possibilidade de fazer uma distinção entre o mostrar lógico e o mostrar ético. O mostrar lógico envolve uma concepção fortemente influenciada pela ideia de sujeito transcendental de Schopenhauer. No autor alemão, o sujeito transcendental coloca o mundo dentro do molde do espaço, tempo e relações causais. O mundo é o que é, é o fenômeno que é porque o sujeito transcendental colocou-o dentro desse molde. Esse molde é a priori, transcendental e é ele que faz o mundo ser como é. Em Wittgenstein, não há nenhuma referência a espaço, tempo e relações causais como acontece no caso de Schopenhauer. Mas há uma referência ao espaço lógico. É como se em Wittgenstein, ao invés de se colocar o mundo dentro do molde espaço/tempo/relações causais, o sujeito transcendental o colocasse dentro de um espaço lógico que estabelece as condições de possibilidade do mundo e da linguagem. Por isso é que a linguagem pode descrever o mundo. A linguagem e o mundo estão dentro do mesmo espaço lógico, que foi imposto pelo sujeito transcendental. Mas isso é uma parte da experiência do mostrar. A outra parte é o sentido que isso dá à existência humana, o valor que pode ser encontrado no mundo. Isso independe desse molde lógico. Então, minha ideia é que, separando o mostrar ético do mostrar lógico, é possível perceber a continuidade do misticismo em Wittgenstein exatamente porque a percepção do valor do mundo ainda existe, mesmo quando se abandona a lógica como essência do mundo ou como aquele molde no qual ele foi colocado. Não precisamos disso para manter a perspectiva mística em Wittgenstein.


IHU On-Line - Qual é a relação entre a lógica e a experiência mística do Tractatus?

Paulo Margutti -
Há uma carta que Wittgenstein escreveu para Paul Engelmann , seu amigo. Esse arquiteto teve a oportunidade de conversar sobre o Tractatus com seu autor, à época em que o livro estava sendo escrito. Isso foi durante a Primeira Grande Guerra, nas ocasiões em que Wittgenstein saía de licença das atividades do Exército. Então, ele ia para uma cidade no interior da Áustria, onde visitava a mãe de Engelmann. Geralmente jantava na casa dela e, após a refeição, Engelmann acompanhava o amigo filósofo ao seu alojamento. Nesse trajeto, Wittgenstein explicava a filosofia do Tractatus. Engelmann se identificava mais com o viés místico do que com o viés lógico da filosofia de Wittgenstein.

Ocorre que Engelmann encontrou certa vez um poema de um poeta alemão pouco conhecido, chamado Uhland . Esse poema fala sobre um conde que lutou nas Cruzadas e que, numa determinada ocasião, encontrou um cipreste pequeno no front. Pegou um galho da planta e prendeu-o ao seu capacete, usando-o nas batalhas. Quando retornou para casa, o cipreste foi plantado e cresceu, virando uma árvore. O poema termina com o conde já idoso, sentado embaixo dessa árvore que havia plantado. Engelmann ficou impressionado com o texto, e fez um comentário com Wittgenstein a respeito. O filósofo concordou com a avaliação de Engelmann e, ao responder, afirmou que o inexprimível se mostra de maneira inexprimível naquilo que é expresso. Isso é uma chave para compreendermos o que ele compreendia pelo mostrar ético, na definição que uso.


O valor ético da totalidade

Se considerarmos o poema de Uhland como um todo, ele se compõe de nove proposições que descrevem fatos a respeito da vida do conde. O poema é uma lista de fatos. Cada fato, independentemente, não tem valor algum. Mas se tomarmos a totalidade dos fatos expressos pelos versos, eles dão sentido e valor à vida desse conde. Isso é o mostrar ético ao qual eu me refiro. Cada proposição que descreve um fato da vida do conde pode ser analisada, conforme a filosofia do Tractatus, nos seus constituintes elementares, e portanto cada proposição tem a sua forma lógica que se mostra na medida em que descrevemos aquele fato. O conjunto delas também mostra a forma lógica, mas a totalidade dá um mostrar diferente, que é o valor ético da vida desse conde. Por isso esse poema é tão interessante, porque se presta a apresentar a distinção entre o mostrar lógico e o ético. É justamente essa relação que permite dizermos que a lógica desempenha um papel importante na filosofia do Tractatus, mas não é essencial para o mostrar místico, porque este ocorre quando vemos o valor ético para além da lógica. É nesse sentido que a lógica e a experiência mística no Tractatus se relacionam. Não é uma relação em que o mostrar místico seria essencialmente dependente do mostrar lógico, mas uma relação na qual o mostrar místico poderia existir, apesar da eliminação do mostrar lógico.


IHU On-Line - O que podemos entender por “jogos de linguagem religiosos na segunda filosofia de Wittgenstein”, tema de sua atual pesquisa?

Paulo Margutti -
Muitos autores sugerem que, ao passar para a ideia de jogos de linguagem, Wittgenstein abriu uma porta para a entrada da linguagem religiosa no discurso filosófico. Isso não era viável no caso do Tractatus, em que predominava a análise lógica. Na verdade, esses autores se esquecem dos Diários Secretos de Wittgenstein, nos quais ele constantemente apela a Deus através da oração. Claro que ali havia linguagem religiosa! O difícil é explicar o sentido que ele via nessa linguagem. Na realidade, talvez a Conferência sobre a ética explicite isso, pelo menos um pouco. Através da oração a pessoa diz alguma coisa que não pode ser dita, mas é algo tão importante que é preciso respeitar aquela tentativa, ainda que fracassada. No caso do Tractatus, a posição é tão radical que podemos dizer que é imoral e ilógico dizer tais coisas. Nas Investigações parece que já não é mais imoral ou ilógico. Por isso é que as pessoas dizem que há uma diferença muito grande na filosofia do segundo Wittgenstein. Na verdade, o que vemos ali é a análise lógica tractatiana ser substituída pela noção de jogo de linguagem. E, se levarmos a sério o espírito do pensamento de Wittgenstein, concluiremos que jogos de linguagem religiosos sofrem da mesma dificuldade que os jogos de linguagem metafísicos: eles não conseguem superar as limitações da linguagem e expressar o Absoluto ou a Essência. Mas isso não impede que o mostrar ético esteja presente quando consideramos as sentenças pertencentes a um jogo de linguagem em sua totalidade. O inexprimível continua a se mostrar, inexprimivelmente, através do que é expresso no jogo de linguagem. O mostrar ético ainda estaria presente, embora o tipo de análise da linguagem seja bastante diferente. Apesar de haver uma abertura maior para os jogos de linguagem religiosos, eles ainda tentam dizer alguma coisa que esbarra nos limites da linguagem. Esses limites continuam a existir mesmo no caso das Investigações.


Contemplação silenciosa

Se for correta a interpretação que faço do misticismo em Wittgenstein, este só pode acontecer com base na contemplação silenciosa. Podemos falar, falar e falar. Mas a única coisa importante que acontece é quando estamos calados. Podemos tentar falar, mas vamos fracassar, e esse fracasso pode ser a grande lição para perceber que realmente não se pode falar sobre tal coisa, que deve ser apenas contemplada. Wittgenstein sugere, inclusive, que se deva primeiro ler o Tractatus, antes das Investigações para ter essa compreensão.


IHU On-Line - Rorty  aponta que vivemos em um mundo contingente e precário, que nos faz rever crenças em função da mudança constante. Nesse sentido, como a democracia pode ser fortalecida frente à “mobilidade” da fé e das certezas características da pós-modernidade?

Paulo Margutti -
É uma pergunta difícil porque o que as pessoas buscam quase sempre são critérios objetivos e garantidos. Nesse mundo globalizado em que vivemos esses critérios estão mais em falta a cada dia que passa. Tenho a impressão que isso só pode ser resolvido pelo diálogo, pelo consenso. As pessoas têm que conversar, e quando surgem novos problemas, muitas vezes é necessária uma reavaliação dos conceitos antigos, de forma que possamos encarar a nova situação. Vou dar um exemplo para explicar essa ideia. Antigamente, a morte acontecia quando o coração da pessoa parava de bater. Havia um conjunto de sintomas que as pessoas admitiam como constituintes do estado de morte. A partir desse momento, a pessoa era tratada como morta. Mas hoje em dia, com o avanço da tecnologia, nem sempre aquilo que se chamava morte continua sendo morte. Agora, uma pessoa sofre um acidente, para de respirar, o coração para de bater, mas, se tiver uma assistência médica rápida, em alguns casos, pode “voltar”. Morreu, mas voltou, dizem. A pergunta é: será que essa pessoa estava realmente morta? Quanto tempo o coração da pessoa deve ficar sem bater para que realmente se possa dizer que ela está morta? Com essa tecnologia toda, uma pessoa fica em estado de coma por anos a fio, presa a aparelhos e isso cria um problema ético grave. Devemos cuidar da pessoa sempre, pois enquanto há vida há esperança. Porém, como fica o caso de um coma de dez anos, ou mais? O que devemos fazer? Desligar, ou não, os aparelhos? O grande desafio está em enfrentar esses problemas com flexibilidade suficiente para resolvê-los sem deixar que os princípios rígidos do passado interfiram na solução. É muito fácil nos deixarmos prender ao passado e aos princípios e não resolver problemas prementes. Isso ocorre em todas as áreas.


Diálogo

Um outro exemplo pode ser encontrado na matemática. Atualmente as pessoas demonstram teoremas usando computadores. No passado os teoremas eram demonstrados por matemáticos. Tomemos o exemplo do famoso teorema das quatro cores. Esse teorema diz que todas as vezes que uma pessoa imprimir um mapa a cores, são necessárias apenas quatro delas para destacar um país dos seus vizinhos. Isso é dificílimo de ser demonstrado. Dois matemáticos programaram um computador para examinar todos os casos possíveis. Depois que o computador fez o trabalho e ficou claro que apenas essas cores eram necessárias, eles tinham que provar que o programa utilizado era exaustivo, que esgotava todas as possibilidades. Se isso ficasse provado, estaria demonstrado o teorema. Isso é completamente fora do padrão matemático tradicional, mas é o que está acontecendo. No começo muitos matemáticos diziam que era “trapaça”, pois não era matemática. Agora, estão constatando que essa “trapaça” é muito útil nas atuais demonstrações matemáticas.
Em algum tempo, talvez cheguemos a uma situação em que seja possível implantar um chip no cérebro das pessoas a fim de que elas possam falar vários idiomas ou mesmo possuir conhecimentos enciclopédicos sem precisar memorizá-los. Isso vai criar outro problema: quem terá acesso a esse chip? E qual é a relação entre quem tem acesso a esse chip com quem não tem? A única maneira de enfrentar essas situações é através do diálogo, da flexibilidade e do uso da imaginação criadora.


IHU On-Line - Por que persiste a rotulação dos ateus como iluministas e dos crentes como fanáticos? Ainda tem sentido falarmos nesses termos em nossa época?

Paulo Margutti -
É muito fácil para uma pessoa religiosa se fanatizar subitamente, assim como é fácil para um ateu iluminista apontar a pessoa crente como fanática. Talvez seja mais fácil para quem tem fé compreender o ateu iluminista, do que o contrário. Isso porque o ateu não sabe sobre o que está falando. Wittgenstein fazia uma oposição muito clara a respeito disso. Ele dizia que a oposição entre uma pessoa que diz não crer em Deus e aquela que diz crer em Deus é muito maior do que a simples oposição lógica entre as duas proposições. Porque aquele que diz que não crê em Deus está num universo diferente daquele que diz que crê em Deus. Não se trata de uma simples oposição lógica. Há uma quantidade muito grande de pressuposições e princípios envolvidos dos dois lados, que ultrapassa a mera contradição entre a afirmação e a negação. São duas maneiras de ver o mundo completamente diferentes. Vamos analisar o caso de Richard Dawkins , que fala de Deus como um delírio, uma ilusão. Ele não sabe do que está falando, pois acha que pode provar racionalmente que Deus não existe, que pode contestar todas as provas da sua existência. Se ele disser isso a uma pessoa que crê em Deus, que sente Deus presente em sua vida, irá perder seu tempo, porque essa pessoa que tem fé não precisa de provas sobre a existência de Deus. Provar a existência de Deus para quem tem fé é ridículo, não tem o menor sentido. Quem diz que não acredita em Deus não sente sua presença. Essa pessoa precisa de provas, enquanto a outra, não. Se eu acredito em Deus, como é que vou provar isso para alguém que não acredita que ele exista? A questão não é provar que Deus existe, mas encontrá-lo de alguma forma, dentro de si ou no mundo ou em ambos. Há uma diferença brutal entre essas duas visões de mundo. Enquanto essa diferença for ignorada, o problema vai continuar, irá persistir. Hoje os neoateístas acham que têm todas as condições de provar que Deus não existe. Na realidade, eles não sabem sobre o que estão falando.


IHU On-Line - Em outra entrevista à nossa publicação, o senhor diz que o pior fundamentalismo de nosso tempo é o islâmico terrorista contra o americano belicista. Qual é a sua análise desses fundamentalismos frente à morte de Osama Bin Laden?

Paulo Margutti -
Lembro-me de ter lido uma manchete no The Economist, dizendo que Bin Laden estava morto, mas perguntando se seria possível matar seu sonho. Penso que esse é o problema. A morte de Bin Laden não significa a morte do seu sonho. Para os fundamentalistas islâmicos, ele é um mártir. Sua morte implica em que o ideal árabe foi agredido duramente pelos americanos. Agora, portanto, é a hora do revide, de receberem o troco. E os americanos estão cobertos de razão em terem receio das retaliações, que certamente virão.

Infelizmente, essa situação me lembra a teoria dos jogos, que define uma situação chamada “equilíbrio de Nash”. Nessa situação, nenhum dos jogadores consegue alguma vantagem se mudar unilateralmente a sua estratégia. Como resultado, todos mantêm as suas respectivas estratégias e o jogo atinge uma fase de equilíbrio, em que não há vencedores. Por exemplo, quando duas famílias brigam, e um dos membros de um desses grupos mata uma pessoa do outro, a espiral de violência não para nunca. A revanche é recorrente. No caso dos árabes e dos americanos, a situação de impasse é a mesma. Precisamos nos perguntar o que levou as coisas a tomarem essa proporção.


Terrorismo de estado

É fácil acusar Bin Laden de terrorista, o que de fato ele é. Mas que outra opção os americanos deixaram para os árabes em geral, a não ser o terrorismo? Enquanto os americanos não perceberem que dominar os árabes pela força das armas e da tecnologia tira deles o direito de serem tratados como interlocutores num diálogo de igual para igual, os próprios americanos é que serão considerados terroristas pelos árabes. O fato de os americanos terem invadido o Paquistão, matado Bin Laden nesse país e ter fugido com o corpo dele constitui um ato terrorista. Mas é um terrorismo de estado, contra qualquer tipo de preceito jurídico internacional. Ocorre que os EUA têm feito isso. Acham que são a polícia do mundo por saberem que tem mais poder do que qualquer outra nação. A ONU só serve para os EUA quando está a favor de seus interesses. Quando ela não está, é deixada de lado e passam por cima dela.


IHU On-Line - Assim, o Estado de exceção, para os americanos, tem sido a regra...

Paulo Margutti -
Não propriamente uma regra, mas o recurso que eles têm quando a ONU não está a seu favor. Os judeus e americanos precisam se dar conta de que não dão outra opção aos árabes. Os árabes também precisam repensar toda essa situação, pois eles também têm sua parte de culpa. Um dos fatores que pode significar o início da morte do sonho de Bin Laden é a primavera árabe, marcada por esses movimentos em busca de democratização. Eles estão na contramão do sonho fundamentalista. Se tiverem sucesso, alguma coisa pode acontecer no sentido de os árabes se abrirem mais para um diálogo com o mundo Ocidental. Por outro lado, o mundo Ocidental também precisa mudar. E as regras do jogo precisam ser mudadas urgentemente, de maneira consensual. Caso contrário, continuará valendo o princípio: retaliação gera retaliação. O equilíbrio de Nash precisa ser alterado de alguma forma nesse jogo infeliz.


IHU On-Line – Tendo em vista sua participação no Simpósio Margens da Palavra – Veredas Filosófico-Literárias no Brasil, com a conferência sobre “Filosofia na Literatura Brasileira”, qual é o laço que une filosofia e literatura na obra de Rosa , sobretudo em Grande Sertão: veredas?

Paulo Margutti -
Já ouvi comparações entre o Grande Sertão: veredas  com o Fausto, de Goethe , em função do pacto com o Diabo. A obra de Rosa, do ponto de vista filosófico, envolve uma visão de mundo profundamente religiosa e humana, ao mesmo tempo. Penso que, nesse sentido, a leitura do Grande Sertão pode trazer mais ensinamentos filosóficos do que a leitura de um tratado volumoso de filosofia, exatamente por causa dessa profundidade e intensidade filosófica. Em minha conferência na Unisinos falei, sobretudo, a respeito de filosofia na literatura brasileira. Tentei mostrar que no Brasil, desde nossas origens portuguesas, adotamos uma perspectiva de ceticismo em relação à metafísica, vista como alta especulação que não leva a nada, uma vez que somos pequenos diante deste mundo de Deus. Pensamos que não valemos nada. Metafísica é vaidade. Por isso se costuma dizer que o brasileiro não tem cabeça filosófica. Na realidade, não somos muito dados a esse tipo de especulação. Somos céticos quanto a isso, pessimistas em relação ao mundo, e a solução que vemos é muito mais uma renúncia a esse mundo, encontrando a salvação em Deus. Se a pessoa não acredita em Deus, a solução é a experiência estética, como no caso de Machado de Assis . Assim, procurei mostrar que essa perspectiva é mais facilmente exprimível pelo viés literário do que através do texto filosófico tradicional. Na época colonial, a maior parte das obras filosóficas de peso no Brasil surge pelo viés literário. Depois disso, mesmo com a independência e a manifestação de filosofias mais estruturadas como a de Gonçalves de Magalhães , ainda persiste entre nós essa tendência de expressar nossas intuições metafísicas pelo viés literário. Diversos autores expressam isso muito bem, como Machado de Assis, Augusto dos Anjos , Clarice Lispector , Guimarães Rosa. Não quer dizer que só façamos filosofia desse jeito, mas uma característica importante do nosso pensamento é essa. Deveríamos prestar mais atenção à literatura brasileira porque ela nos ensina muito mais sobre filosofia do que poderíamos imaginar.


Um sertão universal

Guimarães Rosa está claramente dentro disso, sobretudo se pensarmos que ele foi capaz de contar uma história fáustica no sertão brasileiro, baseado no maravilhamento que esse local ocupa em nosso imaginário. Os portugueses viam o Oceano Atlântico como seu grande desafio. Ao chegarem ao Brasil, passaram a ver o Sertão como seu grande desafio. A noção de sertão tem influenciado profundamente o nosso imaginário literário. Alcântara Machado, no último capítulo de Vida e Morte do Bandeirante, dedica-se ao estudo do sertão. Euclides da Cunha  fala, igualmente, de maneira magistral, sobre o sertão. Este sempre foi visto como um desafio. Rosa segue na mesma direção. Ele é impressionado pelo drama existencial do sertanejo, e mostra as características fáusticas desse tipo humano peculiar. Contando uma história tão particular, ele consegue atingir o máximo do universal. Aliás, parece que essa é a característica de toda e qualquer boa filosofia e literatura: quanto mais se mergulha no particular, mais se consegue mostrar alguma coisa da condição universal. Nesse sentido, Rosa tem muita relação com a filosofia. Grande Sertão é uma obra que merece ser lida, em que pese a dificuldade de se compreender a linguagem rosiana.



Leia mais...

Paulo Margutti já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

* Os rumos da Filosofia no Brasil. Edição 83 da Revista IHU On-Line, de 10-11-2003

* Dialética para entender a cultura. Edição 143 da Revista IHU On-Line, de 30-05-2005

* Novos ateístas. Apóstolos da racionalidade contra a barbárie? Edição 245 da Revista IHU On-Line, de 26-11-2007

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