Edição 360 | 09 Mai 2011

“Um ser cujo ato é dar-se”: o princípio da gratuidade no Ensino Social da Igreja

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Moisés Sbardelotto

A Doutrina Social da Igreja busca o equilíbrio entre o “princípio da reciprocidade” e o “princípio da gratuidade”. “O dom e a comunhão requerem uma compreensão metafísica da pessoa enquanto ‘ser para a doação’”, afirma o jesuíta peruano Ricardo Antoncich

A primeira encíclica de João XXIII, Mater et Magistra, inaugura “um novo estilo de se dirigir como papa aos fiéis e à humanidade inteira”. E isso se dá logo a partir do título: “A Igreja aparece em primeiro lugar como Mãe e, em segundo, como Mestra”. Para o jesuíta peruano Ricardo Antoncich, especialista em Doutrina Social da Igreja, “com a Mater et Magistra se consolida a tradição de mostrar, ao mesmo tempo, a continuidade da doutrina e a novidade de novos problemas”, afirma.

Depois de 50 anos desde a sua publicação, a encíclica continua destacando a busca do equilíbrio, por parte da Doutrina Social da Igreja, entre o “princípio da reciprocidade” e o “princípio da gratuidade”. “O dom e a comunhão requerem o ‘princípio da gratuidade’ e, sobretudo, uma compreensão metafísica da pessoa enquanto ‘ser para a doação’. Isto é, um ser cujo ato é dar-se”, explica.

Ricardo Antoncich é jesuíta peruano. Trabalhou muitos anos a serviço da vida religiosa na Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos - Clar e da Igreja no Instituto de Teologia Pastoral - Itepal do Conselho Episcopal Latino-Americano - Celam. Dentro dessas atividades, participou durante 24 anos no Curfopal, curso trimestral para os jesuítas latino-americanos e de outros países, ocorrido na Casa de Retiros Cristo Rei, em São Leopoldo-RS. Foi professor de Ética Filosófica da Universidad Antonio Ruiz de Montoya, instituição jesuíta de ensino superior de Lima, Peru. Em 2009, doutorou-se summa cum laude na Universidad Pontificia Bolivariana, com a tese As Encíclicas Sociais de João Paulo II a partir da Fenomenologia da Pessoa segundo Karol Wojtyla. Atualmente está aposentado, mas continua escrevendo para revistas e periódicos. É autor de inúmeros livros, dentre os quais destacamos Ensino Social da Igreja (Vozes, 1987), de coautoria de José Miguel M. Sans, e Temas da Doutrina Social da Igreja (Loyola, 1993).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em 2011 comemora-se o 50º aniversário de um dos documentos oficiais da Igreja sobre questões sociais, a encíclica Mater et Magistra de João XXIII. Quais foram as grandes novidades do documento para a conjuntura da época e para a Doutrina Social da Igreja?

Ricardo Antoncich –
A segunda encíclica social de João XXIII, a Pacem in Terris, está dirigida não só aos católicos, mas também “a todos os homens de boa vontade”. Mas essa novidade já está implícita desde a primeira encíclica [Mater et Magistra]. É um novo estilo de se dirigir como papa aos fiéis e à humanidade inteira. O próprio título Mãe e Mestra também é sugestivo. A Igreja aparece em primeiro lugar como Mãe e, em segundo, como Mestra. João XXIII infunde um novo tipo de relações da Igreja para com os fiéis, destacando o aspecto feminino, como João Paulo II o recordará depois em Mulieris Dignitatem  e que nos evoca essa primeira eclesiologia da carta aos Efésios, a Igreja como Esposa de Cristo.

Já desde o princípio da (MM, n.4), o Papa relaciona o modo de atuar da Igreja com o de Cristo, em que os problemas materiais da vida humana têm seu lugar junto aos ensinamentos espirituais. Cabe à Igreja como Mãe dar o duplo alimento do material e do espiritual, que sintetiza a doutrina e a ação social da Igreja (MM, n.6). A tendência de separar o natural do sobrenatural era muito forte durante o Concílio. A Populorum Progressio une-os de forma muito clara e harmônica (PP, n.20-21) e já aparece como fruto maduro dessas sementes de João XXIII.


IHU On-Line – Subsidiaridade, solidariedade, justiça e equidade são alguns conceitos-chave que despontam na Mater et Magistra. Como essas ideias são aprofundadas e revistas pelo Ensino Social da Igreja?

Ricardo Antoncich –
Quero assinalar um tema prévio que dá sentido a todos os conceitos aqui assinalados e que a iniciativa pessoal de João XXIII quis introduzir, pedindo a seus colaboradores estudos prévios: é o tema da “socialização”. A palavra em si despertava rejeição em algumas pessoas, porque a identificavam com o socialismo econômico e político. Não era essa a intenção do pontífice, mas sim o fato sociológico que foi emergindo na consciência cívica daquela época.

O interesse da moral católica, em alguns pontos extremamente individualista, tendia a ignorar a realidade do pecado como obra da sociedade. Foi preciso esperar até João Paulo II para se ter um magistério claro sobre o “pecado social”. Afirmando, com toda a tradição, que o bem ou o mal que dependem do exercício da liberdade humana têm como autor a própria pessoa, percebe-se, no entanto, com maior clareza a existência de um “pecado social”, objetivado em instituições e estruturas sociais. De algum modo, as pessoas “participam” do pecado social ao criar estruturas perversas, ao mantê-las e desenvolvê-las em função dos benefícios que tais estruturas proporcionam a minorias sociais que detêm o poder. Uma filosofia e até uma teologia das estruturas sociais deveriam completar a visão completa da socialização, tal como ela ia se gestando no pontificado de João XXIII. A partir do ângulo da fenomenologia, Karol Wojtyla estuda não só a atuação da pessoa isolada, mas também o “atuar junto com outros”, que pressupõe conhecer o fim e os meios da ação conjunta e aceitá-los com plena liberdade. Do contrário, as pessoas seriam usadas como meros instrumentos de fins fixados por outros.

Depois de esclarecer a socialização, João XXIII volta a tocar temas como o salário justo e o reinvestimento que a própria empresa faz para o seu desenvolvimento. Objetava-se que os salários não podiam ser elevados com a desculpa da necessidade do reinvestimento, porém sem aumentar depois a participação dos trabalhadores nos benefícios da empresa. O ideal do salário justo em sua vinculação com a propriedade privada, como Leão XIII  já havia sustentado na Rerum Novarum, n.32, não foi levado a sério no estudo e na aplicação da Doutrina Social, contribuindo com a falsa ideia de que a doutrina da Igreja era idêntica aos princípios do liberalismo econômico.

A unidade e a convergência do desenvolvimento econômico e do progresso social voltam a ser um tema importante de Bento XVI, ao assinalar a exigência de relações de justiça entre o mercado e o Estado, entre economia e política social. Mas essas ideias já se encontram em João XXIII como defensor do equilíbrio dos desenvolvimentos do campo, da cidade, das nações e da sociedade mundial. Tem acontecido, um tanto facilmente, que certos desenvolvimentos unilaterais, favorecidos por uma equivocada ideia de competitividade que escuda o controle monopólico das grandes empresas ou das grandes nações, voltou-se em prejuízo do desenvolvimento das pequenas iniciativas, que proporcionariam ocupação e trabalho e, portanto, eliminado problemas sociais como o desemprego, a desilusão da juventude sem horizontes, o aumento da violência cidadã e outras sequelas da nossa sociedade atual.


IHU On-Line – Para a Doutrina Social da Igreja, o que é o “bem comum”? Como se pode fomentá-lo e construí-lo política, social e economicamente em nossas sociedades atuais?

Ricardo Antoncich –
A doutrina sobre o “bem comum” deve ser situada no contexto da propriedade, da propriedade privada que garante a cada pessoa o uso de bens próprios, necessários para seu desenvolvimento integral e solidário (de toda a pessoa e de todas as pessoas, como Paulo VI dirá depois na Populorum Progressio). Também das propriedades do Estado, das comunidades locais e de outras formas de propriedade de “bens em comum”. De forma genérica, o bem comum poderia ser definido pelo conjunto de condições sociais que permitem às pessoas, de forma individual e comunitária, o desenvolvimento integral e solidário de seu ser humano. João XXIII se esforça por definir de maneira mais específica o bem comum, pelo menos com a distinção entre o bem comum das nações e o bem comum em nível mundial.
No plano nacional, o bem comum implica em políticas de emprego, mecanismos de distribuição de poder para evitar os abusos de concentração de poderes, proporção ente salários e preços, de modo que, com o trabalho estável, se assegure o bem-estar das famílias e o bom funcionamento dos serviços públicos essenciais. No plano mundial, o bem comum consiste em estabelecer mecanismos para o desenvolvimento econômico em condições de igualdade entre as nações; em vigiar para evitar as concorrências desleais e os abusos de nações poderosas perante as mais frágeis (MM, n.76, 77). As condições atuais tornam muito difícil assegurar o bem comum nacional e global. Os avanços na comunicação, a concentração de poder das transnacionais e, inclusive, os próprios tratados internacionais de comércio, pelos quais os países ricos impõem suas condições sobre os países fracos, são casos de esquecimento do bem comum em uma sociedade global.

Bento XVI assinala como o mercado global se aproveita para atrair investimentos em países de economia frágil, com a complacência dos governantes desses mesmos países que se comprometem a não urgir as condições de respeito à ecologia e às condições laborais de seus próprios concidadãos.


IHU On-Line – A propósito, qual é o significado de “propriedade” segundo a Doutrina Social da Igreja? Como podemos entender esse conceito à luz da situação econômica atual do trabalho e do conhecimento?

Ricardo Antoncich –
“Propriedade” pode ser entendido de várias maneiras: como a qualidade dos seres físicos inerente à sua natureza, como um vínculo legal que permite chamar de “meu” ao que possuo, mas também como uma “apropriação ética”, quando, a partir de minhas boas ações, vou me constituindo como “boa pessoa”. A vocação humana é constituir-se pelo bom uso da liberdade, é apropriar-se eticamente do bem.
Em um campo intermediário, a propriedade legal é a que teve uma grande importância, sobretudo pela revolução industrial, em que se debate se essa propriedade, aplicada aos meios de produção, pode ser direito legítimo de indivíduos ou deve ser da sociedade. A doutrina liberal sustentou a propriedade privada dos meios de produção. Igual defesa caracterizou sempre a Doutrina Social, porém com uma diferença muito clara. A razão pela qual a Igreja defendeu essa propriedade foi o acesso possível dos trabalhadores a obtê-la graças à economia de seus legítimos ganhos pelo trabalho. (Cf. Rerum Novarum, n.3.) Supõe-se, portanto, uma condição: o salário justo. Se este falta, toda a doutrina social se torna inoperante.

Mas o importante é marcar a diferença entre defender o direito “de” propriedade dos possuidores e o direito “à” propriedade por meio do trabalho e da poupança, possibilitado pelo salário justo. Confirmando esse ponto de vista, é importante recordar o n.32 da Rerum Novarum, em que se fala de uma “violência” feita ao trabalhador quando não lhe é pago o salário justo. Essa legitimidade das lutas operárias a partir desses direitos de justiça está por trás de toda a doutrina de João Paulo II sobre a dignidade do trabalho.

A forma atual de entender esta doutrina seria a justiça salarial que permitisse uma participação nas ações da empresa e, sobretudo, o reconhecimento de que o trabalhador não é mero instrumento para produzir “objetos”, senão um “sujeito” com fins próprios, que são os de proteger a própria família e dar-lhe condições dignas de existência.


IHU On-Line – A Mater et Magistra se baseia em encíclicas anteriores e também serve de base para textos posteriores, como também para o Vaticano II. Como o senhor vê, em traços gerais, as questões levantadas por esses documentos oficiais da Igreja e suas interconexões sobre a questão social?

Ricardo Antoncich –
É preciso recordar que a Mater et Magistra é a terceira encíclica em um período de 70 anos. Com a Mater et Magistra se consolida a tradição de mostrar, ao mesmo tempo, a continuidade da doutrina e a novidade de novos problemas. O problema social surge como “problema operário”, isto é, como a consequência das inovações tecnológicas da indústria, mas também da configuração das próprias cidades com grandes zonas de habitações muito pobres em torno das fábricas. É um problema do trabalho e do capital em nível das empresas, mas com uma crescente consciência de classes, sobretudo do proletariado. As desigualdades econômicas e sociais não se dão apenas nas cidades. O “Papa camponês”, como Roncalli sempre afirmou sobre si mesmo, chama a atenção sobre a desigualdade que não é só problema urbano e da indústria, mas também do desenvolvimento e do subdesenvolvimento das regiões agrícolas frente às cidades, de modo que o campo se ajusta aos preços industriais, em intercâmbio desigual para o prejuízo dos camponeses.

É indubitável que a Constituição Gaudium et Spes  significa uma virada profunda da doutrina social e que o problema do “desenvolvimento” teve ali seu caráter de eixo temático, que depois vai se expandir nos três pontificados posteriores dos “padres conciliares” Montini, Wojtyla e Ratzinger. Passa-se, pois, dos problemas no nível empresarial às desigualdades de regiões dentro dos países, e depois entre os próprios países, formando os dois blocos antagônicos do mundo (capitalista e socialista), situação que termina com a dramática queda do comunismo no Leste Europeu, coincidindo com o centenário da Doutrina Social. Das tensões entre os blocos, passa-se a um mundo cada vez mais globalizado com o prodigioso desenvolvimento da cibernética para a comunicação mundial. Da propriedade privada dos meios de produção, passa-se a um novo campo de tensões e conflitos: a propriedade dos meios de comunicação. Essa propriedade teve sua fase de controle através da propriedade dos meios, mas o desenvolvimento da internet estabelece possibilidades não só econômicas, mas também políticas, até pela massiva difusão de segredos dos Estados.


O magistério social de Wojtyla

O magistério social de João Paulo II já forma por si só um todo unitário no qual se apresentaram temas e contextos de tipo filosófico que o Papa Wojtyla contribuiu como riqueza própria, graças aos seus estudos sobre fenomenologia. Sua primeira encíclica, Laborem Exercens, aporta a clareza da distinção dos aspectos objetivo e subjetivo do trabalho. O sistema capitalista explorou só o aspecto objetivo e relegou a dimensão subjetiva do trabalho, que se centra nos fins que o trabalhador quer conseguir para si mesmo e seus familiares como problema político e social, alheio ao puro processo econômico.
A Sollicitudo Rei socialis aborda o aspecto de modelos de ações comuns. O trabalho e o capital industrial devem ter horizontes claros que unifiquem todos os esforços. O papa esforça-se por apresentar um modelo de desenvolvimento que seja construtivo e não destrutivo.

A terceira encíclica, Centesimus Annus, nos conduz à certeza fundamental: o verdadeiro progresso humano se dá na construção livre do ser pessoal e de suas dimensões sociais. A ação humana não só se torna transcendente ao sair da pessoa e se exercitar sobre as coisas, mas também reverte de volta sobre si mesma como ação moral. O bem e o mal que uma pessoa faz aos seus semelhantes voltam a uma nova etapa de ação imanente, porque o bem ou o mal tornam bom ou mau o sujeito que atuou externamente sobre as pessoas, mas têm efeitos dentro da imanência do próprio ser. A profunda concepção da pessoa como fim em si mesmo leva João Paulo II ao tema da gratuidade e da doação, que – em meu entender – também constituem pontos muito importantes da Caritas in Veritate de Bento XVI.


IHU On-Line – O germe do processo de globalização, dos desafios que afetam todas as nações, já é analisado por João XXIII na Mater et Magistra. A proposta de um governo mundial – mais além da ONU – se renova em 2009 com a publicação da Caritas in Veritate, de Bento XVI. De que forma a Doutrina Social da Igreja, ao longo dos anos, enfrentou a questão da globalização?

Ricardo Antoncich –
A globalização desenvolveu de forma acelerada o processo que já estava se anunciando há cinco décadas. A globalização foi aproveitada de forma imediata na economia, porém de forma unilateral. A economia moderna girou, durante os últimos dois séculos, em torno da contribuição do capital e do trabalho. Mas, infelizmente, só podemos falar de uma “globalização econômica do capital” que debilita os controles sobre o fluxo financeiro e que produziu a terrível crise que afetou a economia mundial. Com relação ao trabalho, ocorre tudo, menos globalização; criam-se barreiras para evitar a migração de trabalhadores. As pessoas trabalhadoras das nações pobres não podem emigrar, porém se aceita, sim, o fluxo de capitais e de produtos dessas nações para o mercado mundial. A globalização política através da instituição dos Estados assegura os acordos dos representantes políticos, mas não assegura a verdadeira democracia de todas as nações, em que os próprios povos possam participar a partir das bases. A criação de instituições novas deve contemplar, em todas elas, os processos educativos para que a humanidade inteira adquira consciência de seu dever e direito à participação no que afeta a globalidade do mundo inteiro.
A Doutrina Social não tem receitas para resolver esses problemas. Porém abre, sim, horizontes, como o do equilíbrio do “princípio da reciprocidade” nas ciências sociais que estudam o mercado e o Estado, com o “princípio da gratuidade” que pode desenvolver-se no espaço da sociedade civil. Os meios modernos de comunicação permitem contatos de todos os povos, sem os controles econômicos e políticos de outras épocas. A solidez de convicções e a maturidade de um pensamento responsável são recursos que os meios cibernéticos podem aproveitar para criar uma consciência solidária global.
Bento XVI propõe esses caminhos e desmascara as “ideologias” que envolvem as ciências econômicas e políticas quando estas se absolutizam como fins de crescimento da riqueza e acumulação do poder, rechaçando os valores morais que dão sentido humano a realidades que são instrumentos e não fins da vida humana.


IHU On-Line – Segundo João XXIII, “a confiança recíproca entre os homens e os Estados só pode nascer e consolidar-se através do reconhecimento e do respeito pela ordem moral. A ordem moral não pode existir sem Deus” (MM, n.206-207). Como essa ordem moral pode ser experimentada e concretizada na atual situação socioeconômica?

Ricardo Antoncich –
A exigência de valores econômicos vai além das fronteiras religiosas. A distância da mentalidade na época da Mater et Magistra e a nossa nos levaria a matizar a afirmação de que “Deus é a base única dos preceitos morais” [ou, na tradução em português, de que a ordem moral não pode existir sem Deus], levantando a suspeita crítica de que o recurso a religião e a Deus não nos está levando atualmente à concórdia das nações, mas sim à divisão e inclusive à violência. Por outro lado, cresce o sentido “laico” da ética como fruto de uma consciência madura da dignidade humana. Para a consciência religiosa, é verdade que Deus é o fundamento dos preceitos morais, porque confere a esses preceitos uma transcendência que dificilmente pode ser encontrada em uma busca de princípios éticos da mente humana. Mas o que está em jogo na construção da justiça e da paz não é a abstrata verdade de Deus como fundamento, mas sim as condutas dos que creem, que, em certas ocasiões, contradiz totalmente o horizonte religioso por meio de práticas desumanizantes. A humanidade busca hoje, no campo moral, acordos que estejam baseados no diálogo e no consenso de todos os povos. Os que creem fazem parte desse conjunto que está em busca de uma maior humanização da vida. Os acordos com não crentes não podem se basear nas crenças religiosas, mas sim em convicções da dignidade humana. A formação da consciência moral deve distinguir o acordo do permitido e do não permitido das condutas humanas, e dar a esse acordo uma exigência quase jurídica de obrigação e respeito universal dessas normas.

Mas a vida moral não se reduz a deveres e direitos, mas é configurada também por ideais e aspirações. Essas aspirações não podem ser “impostas” a todas as nações, mas sim “propostas” a todas elas pela visibilidade dos testemunhos das pessoas que os professam. É aqui que as religiões detêm seu espaço próprio; não o é de impor normas de conduta – às vezes com o recurso dos poderes do Estado para reforçar as normas dadas por uma comunidade religiosa, impondo-as aos seus concidadãos –, mas sim o de propor exemplos de vida realizada e autêntica, que convidem à imitação, mas não oneram com o peso da obrigação.


IHU On-Line – Na Mater et Magsitra, o Papa João XXIII nos propôs um “método” para a concretização dos “princípios e diretrizes sociais”: ver, julgar e agir (n. 236). Como essa tríade nos ajuda hoje em nossa realidade social?

Ricardo Antoncich –
A tríade do ver-julgar-agir foi o método pedagógico proposto por José Cardjin, fundador belga da Juventude Operária Católica, elevado por João XXIII a cardeal em seus últimos anos de vida. Com essas três palavras, ele ensinou a observar a vida real dos trabalhadores, a levá-la às reuniões como “matéria-prima” da reflexão. Diferentemente da formação apostólica em voga, em que se partia de princípios e normas abstratas, esses jovens aprenderam a discernir na vida o positivo e o negativo. O que confere o eixo apostólico à reflexão é comparar esses fatos da vida com os fatos semelhantes do evangelho e ver como Jesus “julgava” esses fatos, e aprender a julgá-los da mesma forma e, sobretudo, ver na ação de Jesus uma indicação da própria ação apostólica do militante operário.
O método foi assimilado em movimentos laicos na América Latina e foi defendido com vigor em Aparecida, frente a tendências da cúria romana que prevaleceram na Conferência anterior de Santo Domingo  de suprimi-lo, acusando-o de “sociologismo” e de não partir dos princípios doutrinais.

O ver, nesse método, nunca fica no plano do ver sociológico, embora tampouco o ignore, mas é levado imediatamente ao julgar de Jesus no Evangelho. Só quem ignora o método em sua profundidade pode deformá-lo da forma que se fez. O método termina sempre na ação, a ser possível pela comunidade que fez a reflexão e, a seguir, avaliando a eficácia desse compromisso em outras reuniões futuras. O método nos leva sempre a contemplar a ação de Jesus no Evangelho. A reflexão da Igreja não se afasta jamais da contemplação de Jesus em sua vida real. É a melhor integração de Igreja-Cristo, de forma clara e comprometida. A substituição da vida e do exemplo de Cristo por uma “doutrina abstrata” tirou vigor e força da própria doutrina social.

João XXIII, ao propor esse método em sua encíclica, queria que a doutrina estivesse em relação com a vida concreta. Nesse ponto, ele não foi compreendido pelas altas instâncias da cúria romana. A renovação da Igreja depende da vitalidade da presença de Jesus Ressuscitado nela. A Igreja é incompreensível sem a presença de Cristo nela e no coração de todos os fiéis. Aparecida é um documento excepcional, em que se dedicam belos parágrafos à experiência viva de Cristo.


IHU On-Line – Algumas economias alternativas propõem conceitos tais como “dom” ou “comunhão” como bases de suas teorias. À luz da Doutrina Social da Igreja, quais são os fundamentos de uma economia eticamente justa e que compreenda e respeite a importância da natureza?

Ricardo Antoncich –
Os conceitos de “dom” ou “comunhão” são dificilmente compreensíveis a partir do rigor científico das ciências do mercado e do Estado, que se fundamentam sobretudo na lógica da reciprocidade. Os dois conceitos mencionados apontam para a lógica da gratuidade e requerem esclarecimentos de tipo filosófico. Karol Wojtyla, em sua época de professor de ética, insistia na distinção entre “ser humano” e “ser pessoa”. Como seres humanos, fazemos parte do cosmos e nos separamos do restante pela razão e liberdade. Na convivência humana, procuramos a vigência do princípio de reciprocidade. Mas como “pessoas” estamos não dentro, mas sim “fora”, ou melhor, “frente ao cosmos”, pela capacidade de construir nossa própria existência mediante o autoconhecimento, a autodeterminação e a autorrealização. Precisamente essa capacidade de dispor de nós mesmos é a que nos permite exercer o “dom” da gratuidade de nós mesmos a outros seres pessoais. O dom e a comunhão requerem o “princípio da gratuidade” e, sobretudo, uma compreensão metafísica da pessoa enquanto “ser para a doação”. Isto é, um ser cujo ato é dar-se. Somente assim se pode compreender a analogia entre as pessoas humanas e divinas, pois as divinas são “relações puras”, enquanto as humanas requerem um “em si” que abrange a matéria e não tem as propriedades do espiritual.

A aceitação desse conceito de pessoa permite resolver a questão final dos fundamentos de uma economia eticamente justa, a qual leve em conta a natureza do meio ambiente. O problema da justiça em termos racionais pode ser proposto a partir de duas perspectivas éticas, qualificadas por Adela Cortina  como “mínima” e “máxima”. A mínima estabelece os requerimentos da justiça que “se impõe” e deve ser aceita por todos os seres humanos. A máxima propõe um modelo de felicidade que não se impõe, mas sim “se propõe” à humanidade, a partir de uma opção por determinados valores. Essa distinção parece corresponder tanto ao princípio da reciprocidade quanto ao da gratuidade.

Com relação ao cuidado da natureza como uma exigência ética, devemos levar em conta que a “natureza”, entendida como as coisas do mundo distintas das pessoas, não tem, em si, “direitos”, nem, portanto, “deveres”. Para as pessoas, o dever perante a natureza é o direito de outros seres humanos de encontrá-la em condições saudáveis, para tornar possível a vida sã. É, portanto, um dever perante seres que ainda não nasceram, mas que vão herdar o ambiente talvez preservado ou destruído talvez por séculos. A ética perante a natureza é o conjunto de deveres e direitos dos seres humanos que, no futuro, vão sofrer ou alegrar-se por efeitos negativos ou positivos de nossas condutas atuais perante a natureza. Não temos o direito de tomar hoje decisões que vão prejudicar a vida sã de gerações no futuro. Temos, pelo contrário, o dever de respeitar esse legado em boas condições. Assim faríamos nós se estivéssemos sofrendo as sequelas de uma natureza destroçada dois séculos antes do nosso nascimento.


IHU On-Line – Desde a publicação da Mater et Magistra até chegar à recente encíclica Caritas in Veritate (2009) de Bento XVI, que também se ocupa deste tema, de que modo o senhor analisa a atual Doutrina Social da Igreja? Que outras questões também mereceriam maior atenção diante da sociedade contemporânea?

Ricardo Antoncich –
A atual doutrina social se enriqueceu com a confrontação com as ciências sociais, levando a sério sua importância para o conhecimento objetivo da realidade. Paulo VI dedicou a esse tema grande parte da Octogesima Adveniens , isto é, ao estudo das utopias e ideologias em relação com as ciências. Esse documento extraordinário mereceu, a meu ver, pouca atenção, sobretudo na confrontação do capitalismo e do socialismo, dentro do qual o papa distingue com rigor outro ramo do socialismo marxista, sem identificá-la com todo o socialismo.

O magistério de João Paulo II enriqueceu a doutrina social com sua fenomenologia da pessoa. No diálogo entre a teologia e as ciências sociais, a filosofia teve pouca relevância, e é mérito de João Paulo II ter aberto os horizontes da filosofia contemporânea. Os frutos desses avanços são recolhidos na Encíclica de Bento XVI, em que se afirma vigorosamente uma filosofia da pessoa que mostra horizontes mais amplos ao conceito de ser humano como ser racional e livre. As ciências sociais parecem limitar suas afirmações ao ser humano adulto, sem dar relevância às etapas da infância e da velhice, vida humana que precisa de mais atenção, embora seja menor a contribuição dessas pessoas à sociedade. Frente à lógica da reciprocidade para a economia e a política, Bento XVI nos chama a atenção sobre outra lógica, a da gratuidade e sobre a necessidade de desenvolvê-la, sobretudo a partir da sociedade civil que hoje conta com facilidades de comunicação global, sem a dependência de controles de poder.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Ricardo Antoncich –
Sim, mas o faço a título muito pessoal. A Doutrina Social da Igreja vem desempenhando dentro da Igreja o insuficiente desenvolvimento de uma teologia para o laicato. A Quinta Conferência Episcopal da Igreja na América Latina , em Aparecida, em 2007, definiu a Igreja sobretudo como uma “comunidade de discípulos e missionários”. A teologia é o instrumento apropriado para robustecer essa fé dos discípulos e missionários. Mas uma atenta observação da teologia atual na Igreja nos faz ver que ela está quase totalmente dedicada à educação dos discípulos na fé, porém não à sua preparação para a missão. O discipulado nos leva à Igreja; a missão nos leva ao Mundo e ao Reino. A teologia para os discípulos ensina o que é preciso crer, o que deve ser praticado, o que se deve rezar e como fazê-lo. A maneira como, no tempo do Concílio, se falava dos fiéis era a dedicação aos “bens sobrenaturais”, deixando os “bens naturais” para o mundo e para os leigos que vivem em meio ao mundo. Os dedicados à religião estão mais perto de Deus do que os ocupados com as tarefas do mundo.

Um sentido bíblico do profano como oposto ao sagrado deveria ser repensado, porque a criação como ação divina é sagrada e abrange o cosmos e a humanidade. Fazer a vontade de Deus no trabalho sobre o cosmos é resposta humana “sagrada” à ação divina. A profanação se inicia quando a vontade humana contradiz a divina. Os leigos trabalham em um mundo sagrado, tornando ali realidade o Reino pelo domínio científico-técnico do cosmos. O sagrado da relação “religiosa” entre Deus e a humanidade coexiste com o sagrado da ação “secular” dos leigos. Em João 3,16, lemos que Deus envia seu Filho ao mundo para salvá-lo. Nesse envio, o Filho aparece na história reunindo uma comunidade de discípulos-missionários. A Igreja não é o término da ação do Pai, mas sim o mundo. A Igreja é colaboradora com o Filho para a salvação do mundo. Assim, a Igreja se torna servidora do Reino de Deus, centro do anúncio de Jesus com seus discípulos.

A Doutrina social da Igreja é uma autêntica teologia da ação sagrada do laicato, ao trabalhar sobre as estruturas sociais da economia, da política e da cultura, em todas as profissões dedicadas à saúde, à educação integral da pessoa em sociedade, aos serviços para a estabilidade familiar e a muitos campos de ação semelhantes. Essa sacralidade é consciente na mente dos que creem, embora seja ignorada pelos não crentes. O juízo definitivo de salvação não recai na consciência explícita do conhecimento, mas sim na prática consciente da caridade com seres humanos sem recursos, aos quais se dão em doação os recursos próprios para as necessidades elementares da vida. A história humana não é o único espaço para o acesso ao conhecimento da salvação, mas o é, sim, para as obras de solidariedade e caridade. O juízo sobre a vida humana vai recair sobre o uso solidário ou não dos bens deste mundo perante as necessidades dos próximos. Assim se cumprirá a frase de Mateus 25,34: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome...” .

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