Edição 359 | 02 Mai 2011

Depoimento

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Patrícia Fachin

Mãe de Camila, 16 anos, a pedagoga Iara Bonin confia no tempo para acomodar seus medos e ansiedades. Com o passar dos anos, foi ele que também a ensinou a aproveitar muito mais a emoção de ser mãe de um bebê, uma criança, uma adolescente. “Penso que as relações que estabelecemos com os filhos hoje são facilitadas pelo fato de já termos, na cultura contemporânea, relativizado algumas das premissas e verdades sobre “ser mãe”, “ser pai”, que estabeleciam entre pais e filhos uma hierarquia difícil de vivenciar’, diz. Iara Tatiana Bonin é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizou o doutorado também em Educação. Atualmente, é professora adjunta da Universidade Luterana do Brasil -Ulbra. Por sete anos, atuou no Conselho Indígena de Roraima; e, por onze, no Conselho Indigenista Missionário - CIMI. É casada com o coordenador do CIMI-RS, Roberto Liebgott. Confira o depoimento abaixo.

“Meu nome é Iara Bonin, tenho uma filha de 16 anos chamada Camila, e posso dizer que a maternidade foi a experiência mais significativa e mais intensa que eu já vivi. Inicialmente, a condição de “ser mãe” nos coloca uma multiplicidade de sentimentos, um amor que não cabe na gente e que invade cada canto da vida; é uma responsabilidade sobre aquele novo ser, aparentemente tão vulnerável, um medo de não acertar na forma de lidar com a criança, um desejo de ver esse mundo cada vez melhor para acolher aquela pequena pessoa que se soma à família. O tempo vai acomodando boa parte dos medos, das ansiedades, e também vai nos ensinando a curtir muito mais a emoção de ser mãe de um bebê, uma criança, uma adolescente, uma jovem que cresce, aprende, se-supera, nos desafia, nos faz aprender constantemente, e mantém a vida num frenético movimento. As lembranças que tenho de cada tempo vivido pela Camila são as melhores, porque ela é um tipo de pessoa que caminha comigo e com o Roberto, vivendo junto os desafios de cada mudança de cidade, de estado, de grupo de amigos, de referências geográficas e culturais, e faz isso de modo muito tranquilo. Desde que a Camila nasceu, Roberto e eu já moramos em quatro cidades diferentes, em função do tipo de trabalho que temos (trabalhamos juntos no Cimi, com comunidades indígenas, por mais de 15 anos, hoje ele ainda atua neste mesmo campo e eu me tornei professora do Mestrado em Educação da Ulbra.) Estamos em Porto Alegre há 8 anos e certamente este é o período mais longo que permanecemos em um mesmo lugar.

Ser professora e pesquisadora, atuar em um programa de pós-graduação (atualmente como coordenadora) e conciliar vida familiar não é muito fácil. Mas penso que temos conseguido manter vínculos familiares bastante intensos. Acho que alguns “rituais” sempre são importantes quando se deseja manter os filhos “conectados”. Camila e eu fazemos algumas coisas juntas todos os dias – antes líamos um capítulo de algum livro de literatura, do interesse dela, antes de dormir. Agora escutamos música, ou assistimos a um episódio de alguma (das muitas) séries juvenis que ela baixa da internet, ou estudamos inglês juntas – óbvio que ela me ensina. Afinal, essa geração já nasceu conectada, descolada, multilíngue... que sorte a deles!

Acho que o fato de eu ter agora uma filha que cursa o ensino médio, bastante independente e com outras atividades que ocupam boa parte do seu dia, favorece esse difícil equilíbrio entre ser mãe e trabalhar 40 horas. Mas, além disso, penso que as relações que estabelecemos com os filhos hoje são facilitadas pelo fato de já termos, na cultura contemporânea, relativizado algumas das premissas e verdades sobre “ser mãe”, “ser pai”, que estabeleciam entre pais e filhos uma hierarquia difícil de vivenciar. Acho que estamos reinventado essas relações, aprendendo que o filho (de qualquer idade) não é um ser em falta, um ser incompleto, e sim uma pessoa que vive um outro tempo, e que constrói a experiência da vida de outro jeito. Isso não significa ausência de limites, e também não implica pensar que podemos abdicar de uma formação (sobretudo) ética; ao contrário, nos compromete com a construção disso tudo no dia a dia, e num constante processo de diálogo e de negociação. Claro que essa é a minha perspectiva – o modo como eu reinvento, concilio e (re)conto minha maneira de ser mãe. Se perguntarmos para a Camila, possivelmente essa mesma história terá outros matizes, e pode ser que ela relate muito mais dificuldades e desafios do que prazeres no fato de ser filha de uma profissional, estudante, professora, pesquisadora, e também mãe dela.

Gostaria, ainda de acrescentar algumas pequenas lições que tenho aprendido na convivência com as mulheres indígenas. Quando morei no estado do Amazonas, convivi muito de perto com uma comunidade Kambeba. (Trabalhei durante dois anos na região em que vivia este povo e, mais tarde, regressei e desenvolvi minha pesquisa de mestrado com esta comunidade – que me acolheu, me deu um nome indígena, me ensinou, participou na constituição da pessoa que sou.) Aqui em Porto Alegre, tenho contato, embora de forma não muito contínua, com mulheres kaingang e guarani. O que tenho observado, nas diferentes comunidades com as quais já trabalhei e nas quais transito como visitante hoje, é que existe uma lógica educativa muito diferente da nossa - que prima pela independência da pessoa, e isso não quer dizer individualidade, mas sim uma independência comprometida com os preceitos de uma comunidade. Desse modo, as crianças são estimuladas a participar dos acontecimentos sociais, cotidianos, familiares, e têm “passe livre” para transitar em diversos espaços, ajudando, fazendo as coisas junto com os adultos, observando, ensinando outras crianças. Acho que esta é uma maneira muito sábia de integrar os filhos nas atividades importantes, sem que se tenha que exercer uma autoridade que submete ou que oprime. Também me chama atenção a forma como os povos indígenas conseguem constituir relações de respeito à autoridade e à hierarquia sem utilizar violência física – no tempo em que circulei pelas comunidades indígenas não vi nenhuma situação em que um adulto tenha batido numa criança e raramente vejo alterarem o tom de voz. Gestos simples (e cotidianos) como abaixar-se para ficar na mesma altura do filho para falar com ele; parar o que se está fazendo para explicar ao pequeno como se faz; manter um olhar atento sobre as crianças sem se fazer notar, evidenciam o quanto podemos aprender observando as relações entre pais e filhos indígenas. Acho admirável também o fato de as mães carregarem sempre consigo as crianças pequenas, mesmo que isso, em algumas circunstâncias, nos pareça inadequado. Fico angustiada ao ver que cada vez mais criamos nas áreas indígenas estruturas que são nossas - tal como as escolas de educação infantil – e me pergunto o que estas estruturas escolares produzem, como efeito, quando se estendem sobre as formas de educar próprias destes povos, alterando e mesclando-se a práticas que funcionam tão bem na integração da criança ao mundo adulto. São desafios que se colocam para eles, nestes difíceis diálogos com a sociedade ocidental.

Agradeço a oportunidade de participar deste depoimento e, desta forma, reinventar e dar coesão às minhas próprias experiências maternas – e cada vez que pensamos sobre algo que nos parece tão natural, como ser mãe, também vamos estabelecendo algumas premissas para seguir vivendo e tentando acertar."

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