Edição 359 | 02 Mai 2011

Brasil tem condições de instituir programa de Renda Básica de cidadania

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Patricia Fachin

A instituição de um programa de Renda Básica de cidadania nos países pode ser um eficiente instrumento na luta pela redução das desigualdades sociais, aponta o sociólogo Josué Pereira da Silva. Para ele, os limites para a adesão do programa no Brasil são políticos e ideológicos

A Renda Básica de cidadania é um valor distribuído pelo poder público de forma igualitária a qualquer cidadão de um determinado país, independente da classe social. O objetivo do programa é possibilitar a todos os cidadãos o direito de usufruir as riquezas produzidas em uma determinada região.

Para o sociólogo Josué Pereira da Silva, a Renda Básica de Cidadania surgiu com uma finalidade fundamental: “garantir à população uma igualdade básica” para que ela consiga responder ao problema da desigualdade social, principalmente quando este é gerado em função do desemprego em massa.

Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor da Unicamp menciona que a Renda Básica também pode contribuir “para a construção e o aprofundamento da cidadania, principalmente por possibilitar as necessárias condições econômicas que facilitaria o exercício e usufruto dos outros direitos de cidadania, sobretudo pelas parcelas menos favorecidas da população”.
O sociólogo e professor da Unicamp estará no IHU na segunda-feira, 4-05-2011, participando do primeiro encontro do Ciclo de Palestras Renda Básica de Cidadania. No evento, ele falará como o programa pode contribuir para a emancipação e autonomia cidadã.

Josué Pereira da Silva é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, e doutor em Sociologia pela New School For Social Research, nos EUA. De sua produção bibliográfica, destacamos André Gorz. Trabalho e política (São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002); André Gorz e seus críticos (São Paulo: Annablume, 2006); e Por uma sociologia do século XX (São Paulo: Annablume, 2007).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como é possível pensar a construção da cidadania através de um programa de Renda Básica?

Josué Pereira da Silva -
Tanto em sua acepção formal, como o pertencimento a uma determinada comunidade política, quanto em seu sentido mais substantivo, como um conjunto de direitos, a noção de cidadania é mais abrangente que a de Renda Básica. Por isso, uma resposta positiva pura e simples a esta pergunta seria equivocada porque, de fato, não é possível construir a cidadania somente através de uma Renda Básica. Mas, por outro lado, a Renda Básica tem muito a contribuir para a construção e o aprofundamento da cidadania, principalmente por possibilitar as necessárias condições econômicas que facilitariam o exercício e o usufruto dos outros direitos de cidadania, sobretudo pelas parcelas menos favorecidas da população.


IHU On-Line - Em que medida o programa de Renda Básica pode amenizar as desigualdades sociais?

Josué Pereira da Silva -
Um dos principais objetivos da Renda Básica, que, aliás, parece ser consensual entre seus principais proponentes, é garantir à população uma igualdade básica. Assim, ela pode responder ao problema da desigualdade social, seja quando a desigualdade resulta de uma situação de desemprego em massa, como ocorreu com alguns países europeus a partir da década de 1980, seja em situação de extrema pobreza material como ocorre em países como o Brasil. Em ambas as situações, ao garantir condições econômicas básicas independentes de participação no mercado de trabalho, a Renda Básica pode ser considerada um eficiente instrumento na luta pela redução das desigualdades sociais.


IHU On-Line – Pode o programa Renda Básica de Cidadania se tornar um instrumento para garantir a seguridade social?

Josué Pereira da Silva -
O sistema de seguridade social envolve outras dimensões que vão muito além da Renda Básica. Por isso, entendo esta última como um direito econômico básico, incondicional; como uma forma de todo cidadão ou toda cidadã participar da riqueza socialmente produzida. Mas de forma alguma a Renda Básica deve ser pensada como substituto da seguridade social ou de qualquer outro direito de cidadania, a exemplo dos direitos sociais relacionados com educação e saúde, que devem ser públicos e de boa qualidade.


IHU On-Line - A instituição da Renda Básica produziria alguma alteração nas questões trabalhistas e na relação dos trabalhadores com o trabalho?

Josué Pereira da Silva -
A despeito do temor daqueles que são contra a Renda Básica, incluindo aí tanto representantes patronais quanto de sindicatos de trabalhadores, creio que a instituição da Renda Básica pode ter algum efeito positivo seja para as questões trabalhistas, seja para a relação dos trabalhadores com o trabalho. No primeiro caso, ao garantir um recurso econômico básico para o trabalhador, a Renda Básica lhe daria mais poder para negociar condições de trabalho e salário, tornando-o mais exigente; sem a pressão da fome, não precisaria aceitar sem discussão as condições impostas pelo empregador. Mas há também quem acredite que o efeito da Renda Básica seria o oposto porque, ao dispor de uma renda, o trabalhador poderia aceitar empregos mal remunerados somente para completar a renda recebida do Estado. Ainda que um ou outro caso desse tipo viesse a acontecer, não dá para negar que a Renda Básica permitiria ao trabalhador mais liberdade de escolha, mais autonomia para tomar decisões. É essa autonomia que parece assustar os conservadores, sejam eles patronais ou sindicalistas. O mesmo raciocínio vale para a ralação do trabalhador com o trabalho. Mesmo considerando como trabalho apenas o emprego assalariado, não dá para concluir que a Renda Básica contribui para reduzir o interesse das pessoas pelo trabalho. Mas, por outro lado, ela pode certamente contribuir muito para incentivar outras atividades socialmente úteis que têm pouco ou nenhum valor de mercado.

A Renda Básica contribui para reduzir a dependência do trabalhador em relação ao mercado de trabalho; com isto, ela afeta também o estatuto de mercadoria da força de trabalho, desmercadorizando-a pelo menos parcialmente.


IHU On-Line - Como o senhor avalia outros programas de distribuição de renda mínima que levam em conta, por exemplo, a ascensão social por meio do trabalho?

Josué Pereira da Silva -
Além da Renda Básica, há dois outros tipos de programa que fazem transferência direta de renda para a população: o stakeholder ou capital básico e os demais programas que, grosso modo, configuram-se pelas seguintes principais características: ter como alvo setores específicos da população, que são atendidos durante um tempo determinado, além de exigir dela alguma contrapartida ou condicionalidade. O sucesso ou não do capital básico depende muito do uso que dele fizer a pessoa que, em certo momento da vida – por exemplo, no início da idade adulta –, receber uma dotação de recursos. Assim como pode ser o ponto de partida para novas fortunas, a dotação também pode ser consumida em pouco tempo, deixando o recebedor na mesma situação em que se encontrava antes. Por isso, pode até mesmo se tornar um indutor de novas desigualdades. Nesse quesito pelo menos a Renda Básica, por ser perene, parece mais vantajosa. Os outros programas, por suas condicionalidades e demais restrições, têm em geral alcance limitado, servindo quando muito para minorar situações de penúria, mas não para alavancar ascensão social; a menos que eles sejam encarados como formas transitórias para se chegar a programas universais e incondicionais como a Renda Básica. De toda forma, se eles favorecerem a ascensão social dos que estão na base da pirâmide social, permitindo-lhes melhorar as condições de vida, devem ser apoiados.


IHU On-Line – Por que o trabalho não deve ser a única forma de garantir a emancipação social dos indivíduos? Quais suas críticas e ponderações em relação a isso?

Josué Pereira da Silva -
Emancipação social significa libertar-se de formas sociais de opressão, dominação ou exploração; e isto vale tanto para determinada pessoa individualmente quanto para toda uma sociedade. Alguns exemplos podem ilustrar as asserções acima. O trabalho assalariado contribuiu para emancipar o servo dos laços feudais; o mesmo trabalho foi também um meio pelo qual mulheres conseguiram se emancipar da dominação masculina e patriarcal. Nos dois casos mencionados, o mercado (de trabalho) foi o caminho para a emancipação – da mulher e do servo – de uma situação de opressão ou dominação. Mas emancipar o trabalhador da condição de assalariado foi o principal objetivo das teorias socialistas desde o século XIX por acreditarem que o assalariamento era uma forma de opressão e exploração do trabalhador pelo capitalista. Embora aqueles mesmos socialistas considerassem que o trabalho, num sentido amplo, tinha um sentido de autorrealização para os seres humanos, emancipar o trabalhador significava abolir o trabalho assalariado, pois este limitava ou mesmo impedia a possibilidade de autorrealização. Hoje em dia, porém, sobretudo no debate sobre transferência de renda, falar em emancipação pelo trabalho significa conseguir ingressar ou reingressar no mercado de trabalho por meio de um emprego assalariado.


IHU On-Line - O Brasil tem condições de adotar um programa de Renda Básica hoje? Quais os limites e desafios nesse sentido?

Josué Pereira da Silva -
Creio que sim, desde que se encontre um patamar adequado para se iniciar a adoção de tal programa, mesmo porque, como pensam alguns, o programa Bolsa Família pode até ser um ponto de partida para se implantar, aqui no Brasil, um programa de Renda Básica. Os limites são, a meu ver, basicamente políticos e ideológicos e os principais desafios consistem em remover, pelo convencimento, as resistências nesses dois campos. Isso poderia ajudar a criar as condições para fazer emergir a necessária vontade política de que o país precisa para adotar um programa desse tipo.


Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Josué Pereira da Silva à IHU On-Line.


• Renda básica fortalece a autonomia. Entrevista publicada na edição 333 da Revista IHU On-Line, de 14-06-2010

• Uma nova luz sobre o pensamento da esquerda. Entrevista publicada na edição 238 Revista IHU On-Line, de 01-10-2007


Baú da IHU On-Line

Confira a edição 333 da Revista IHU On-Line, de 14-06-2010, intitulada Renda Básica de Cidadania, universal e incondicional. Um direito

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