Edição 359 | 02 Mai 2011

Mãe e mulher não são sinônimos

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Anelise Zanoni

Na visão contemporânea, a mãe parece mais uma parceira dos filhos do que a figura clássica de uma serviçal que está completamente à disposição da família, afirma Alfredo Jerusalinsky

Com as constantes mudanças na sociedade, os perfis de mãe e de mulher também estão em mutação. Nesse novo papel, a progenitora aceita menos os sacrifícios, de acordo com a opinião do psicólogo e doutor em Educação Alfredo Jerusalinsky, que falou por e-mail à IHU On-Line.

“Situada numa posição mais simétrica no governo da família, sua palavra, ora tão portadora de saber quanto à do homem, não mais precisa se oferecer ao martírio da submissão para amortecer o rigor de uma rígida lei patriarcal ameaçando se abater sobre os filhos”, diz o especialista. Para ele, por acréscimo, a posição de parceira e confidente - mais característica da mãe contemporânea - encurtou as distâncias que caracterizavam as relações entre os jovens e as mães excessivamente moralistas.

Além disso, o atual cenário permite à mulher se tornar protagonista de vários universos, como o intelectual, o acadêmico e o profissional. “Se, por um lado, isto aumentou significativamente seu grau de liberdade, ao mesmo tempo, a deixou fortemente implicada nas consequências que suas decisões terão sobre seu destino”, avalia o psicólogo.

Doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo – USP e mestre em Psicologia Clínica, Alfredo Jerusalinsky lecionou na Universidade de Buenos Aires e atualmente é psicanalista Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, da Association Lacaniènne Internationale - ALI e do Grupo de Estudos Sigmund Freud – SIG. É também professor convidado na Universidade de Fortaleza – Unifor.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Muitas mulheres ainda acreditam que a maternidade é realmente o caminho para a felicidade?

Alfredo Jerusalinsky -
A globalização, que até o momento está somente efetivada nos planos financeiro, das informações, do comércio e do consumo, nos transportes e nas comunicações, ainda não demoliu as barreiras culturais. Por isso, não é adequado generalizar quando falamos sobre “as mulheres”, já que elas, vítimas históricas da opressão masculina, encontraram formas de retenção de uma porção do poder se apossando de pequenos traços de valor emblemático em cada uma de suas respectivas culturas. Fitas coloridas, brincos e piercings, tatuagens, bordados, penteados, maquiagens, burcas, véus, lenços e batons, pentes decorados, molhos e temperos, perfumes e texturas, culinárias e tapetes, mobília e decorados, em cada povo assumem combinatórias diferentes e são essencial e sub-repticiamente governados pelas mulheres. Esse reino sutil que se chama “lar” e que constitui o cenário no qual se desdobra a maternidade não é um reino uniforme. O quanto em cada cultura a maternidade continua a ser uma fonte de valorização e dignificação da mulher – ou seja, fonte de felicidade - é, hoje em dia, extremamente variável. A globalização, em lugar de uniformizar, tem trazido à tona esses contrastes. A fertilidade feminina hoje não é igualmente celebrada em todas as latitudes.


IHU On-Line - Como podemos avaliar, de modo geral, a mãe contemporânea?

Alfredo Jerusalinsky -
Certamente é uma mãe menos sacrifical que a mãe clássica. Situada numa posição mais simétrica no governo da família, sua palavra, ora tão portadora de saber quanto à do homem, não mais precisa se oferecer ao martírio da submissão para amortecer o rigor de uma rígida lei patriarcal ameaçando se abater sobre os filhos. A mãe contemporânea parece mais uma parceira dos filhos do que a figura clássica de uma serviçal.


IHU On-Line - As angústias que acompanham a mãe moderna estão muito relacionadas à liberdade delas de poder viver bem a vida e investir na profissão. Como combinar esses desejos com a maternidade?

Alfredo Jerusalinsky -
Se entendermos “mãe contemporânea” como essa mulher que se situa na dobradiça entre a modernidade e a pós-modernidade (entre a prevalência da racionalidade e a supremacia do gozar), ela se encontra em pleno conflito entre ser mulher e ser mãe que, atualmente, não são sinônimos.

Durante a modernidade – nas comarcas que essa era transformou – a mulher adquiriu progressivamente o poder de governar suas escolhas amorosas e sexuais. Por acréscimo, a mulher – no mundo ocidental – tem se tornado protagonista dos universos intelectual, acadêmico e profissional. Se, por um lado, isto aumentou significativamente seu grau de liberdade, ao mesmo tempo a deixou fortemente implicada nas consequências que suas decisões terão sobre seu destino.

É lógico, então, que, se os níveis de angústia aumentassem, o sujeito feminino tentaria evitar a disjuntiva da escolha, levando adiante diferentes formas de realização em paralelo. Por exemplo, a realização materna e também a profissional de forma simultânea. Mas nem todas as mulheres têm recursos, apoio familiar e condições estruturais que as permitam articular uma empreitada semelhante. Nesses casos é comum que uma sensação de injustiça se faça presente durante o exercício da maternidade, na medida em que a mulher possa vir a se sentir vítima de uma dupla imposição em lugar de perceber que ela ficou presa às consequências de sua própria escolha.


IHU On-Line - Quando a mulher se depara com o papel de mãe pode haver uma grande crise de identidade?

Alfredo Jerusalinsky -
A pergunta já assinala que há um corte entre “a mulher” e “o papel de mãe”. Não é um corte que tenha existido sempre na mesma intensidade. Sigmund Freud chegou a considerar que a maternidade era a realização mesma da feminilidade. Ocorre que durante séculos (incluindo aquele em que Freud viveu) o único recurso de validação social e subjetiva de sua existência era, para a mulher, ser mãe. Porém, a grande virtude da posição freudiana foi de perceber que o filho, por constituir-se num emblema fálico, passava a ter condição de fetiche para sua mãe. Essa descoberta continua válida, embora o filho deva, na atualidade, dividir a devoção materna com outros fetiches da cultura.

Se não houver uma crise de identidade é porque a mulher em questão não realizou a virada necessária para assumir a condição de mãe: o fetiche, em lugar de ser seu próprio corpo, precisa passar a se encarnar no corpo do filho. Trata-se de uma virada narcísica que é, precisamente, a que lhe permite suportar a desfiguração de seu próprio corpo, não sem passar – como é habitual – pela depressão puerperal.


IHU On-Line - A infância e a adolescência estão cada vez mais diferentes do que eram. Além da influência das tecnologias, o papel da mãe contribui para novos comportamentos?

Alfredo Jerusalinsky -
É um lugar comum a sentença de que hoje as crianças crescem mais rapidamente, são mais inteligentes, mais sábias, aprendem de forma mais rápida, são mais espertas bem mais cedo que antigamente. Se Donald W. Winnicott  tem razão – e nós pensamos que a tem – em que é a mãe quem apresenta o mundo para seu filhote, e isso se verifica em que o bebê olha na direção para onde o olhar de sua mãe se dirige (isto claramente acontece já aos oito meses de idade), devemos assinalar que as mães atuais têm muito mais alvos que capturam seu olhar comparadas com as de antigamente. A diversificação de objetivos na vida feminina conduz a curiosidade de seus filhotes desde muito cedo para as variedades de objeto oferecidas pelo mundo circundante. Temos aí a razão de certa precocidade na posição infantil atual.
No que se refere aos adolescentes, a posição de parceira e confidente mais característica da mãe contemporânea encurtou as distâncias que caracterizavam as relações entre os jovens e as mães excessivamente moralistas, formais e transmissoras dos “bons modos”, típicas das tradições patriarcais.
 

IHU On-Line - Na nova versão da maternidade o papel do pai fica, muitas vezes, ofuscado. Qual o significado dessa relação homem/mulher na sociedade contemporânea?

Alfredo Jerusalinsky -
Os movimentos feministas (que exigiram duras lutas políticas), as demonstrações de capacidade laboral e intelectual diante a demanda social (originada nas revoluções industriais), o reconhecimento de sua aptidão para o desejo e o gozo sexual (contribuição da psicanálise), o enfraquecimento dos preconceitos religiosos (a mulher deixou de ser a representante do mal essencial), a transformação dos princípios jurídicos de gênero (equivalência de direitos), elevaram a mulher a um plano de igualdade com o homem. Nesse processo, que se desdobrou especialmente durante os últimos 150 anos, o homem perdeu os privilégios que lhes eram garantidos pela assimetria simbólica que regrava as relações entre o masculino e o feminino. Moldado sobre esses privilégios, o patriarca da família clássica, exercia uma autoridade quase omnímoda sobre o clã familiar. Seu saber era incontestável e ele era ao mesmo tempo juiz e legislador. Todos os desejos dos outros ficavam subordinados ao dele.
Durante certo período (talvez durante grande parte do século XX) o pai de família reagiu enraivecido diante o que ele vivenciou como uma destituição e partiu para a violência contra sua mulher. Leis como a famosa “Maria da Penha”, o surgimento da figura policial da “Delegacia da Mulher”, demonstram o quanto foi necessário proteger a mulher durante sua elevação para uma condição de igualdade. Paradoxalmente, essa ascensão determinou que seus novos poderes ficassem associados à sua antiga debilidade causando privilégios inversos do lado feminino. A figura psicológico-jurídica de alienação parental veio para ser aplicada especialmente contra a negativa materna a permitir o convívio do pai com seus filhos quando produzida uma separação conjugal.

A nova configuração familiar se apresenta como um cogoverno compartilhado entre a mãe e o pai que não poupa o lado masculino de um sentimento de perda de poder. Num outro viés dessa complexa questão, de fato se registra um declínio da função paterna no sentido de uma debilidade progressiva das expressões simbólicas da cultura cedendo seu lugar para o gozo do imaginário. Os homens se queixam do declínio de uma função que era suposta como uma propriedade do masculino, mas pouco fazem para restituí-la quando consomem seus esforços em reclamar pela perda de seu antigo lugar pessoal.


IHU On-Line – Atualmente, o que significa para uma mulher e para a sociedade ser uma mãe adotiva?

Alfredo Jerusalinsky -
Hoje em dia a maternidade se define muito menos pela progenitora biológica do que pelo laço afetivo entre uma mulher e uma criança. Embora a pertença biológica continue a gerar obrigações e direitos, o âmbito jurídico tem aberto suas considerações para a importância dos vínculos baseados na reciprocidade amorosa e nas nuanças das identificações primárias. O desaparecimento das figuras sociais degradantes ligadas às “origens bastardas”, a legitimação jurídica dos laços de parentesco adotivos e a relativização da autenticidade materna ligada ao modo tradicional da fecundação, têm aberto caminhos de maior liberdade e flexibilidade para a mãe adotiva não mais se sentir uma mãe de segunda categoria. Consequentemente, os filhos adotivos também não mais precisam se sentir filhos de segunda classe.


Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Alfredo Jerusalinsky e publicadas na IHU On-Line:

• Doze perguntas sobre o inferno. Entrevista publicada em 29-03-2010 nas Notícias do Dia

• A impunidade alenta o retorno da barbárie. Entrevista publicada em 17-08-2008 nas Notícias do Dia

• Borat, Babel e A Rainha e suas relações. Entrevista publicada em 09-03-2007 nas Notícias do Dia

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