Edição 358 | 18 Abril 2011

A apuração da verdade: grande medo das instituições militares

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Márcia Junges

Militares de hoje temem pelos atos cometidos por seus pares no passado, pois pesquisas históricas comprovam que a ditadura nada teve de “branda”, afirma Edson Teles. Casos do Chile, Argentina e África do Sul servem como inspiração para o Brasil

Considerada a mais violenta da América Latina pelos pesquisadores Edson Teles e Vladimir Safatle, a ditadura brasileira precisa ser mensurada não pelos desaparecidos que produziu, “mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia”, acentua Teles na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Entre os inúmeros “restos” deixados por esse regime autoritário em nosso país, o maior deles é a cultura da impunidade “que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania plena”. Tal impunidade vale, inclusive, para aqueles que pensam que podem torturar “bandidos” e pessoas “perigosas”. Já que torturadores da ditadura não receberam a devida punição, por que alguém que tortura presos e menores infratores a receberia? Teles analisa, também, o motivo pelo qual as Forças Armadas de hoje não querem que se apurem crimes de ontem. Para ele, trata-se de uma questão de poder político: “as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi ‘branda’ e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicalizado dos militares”. E ressalta: “A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares”.

Teles foi o mais jovem preso político brasileiro, com apenas dois anos de idade, quando foi detido com seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã Janaína, na época da ditadura militar. Em 2007, junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que ele fosse declarado torturador, tendo obtido ganho de causa na primeira instância.
Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, escreveu a tese Brasil e África do Sul: Memória política em democracias com herança autoritária. Leciona na Universidade Federal de São Paulo e é um dos organizadores das seguintes obras: O que resta da ditadura: A exceção brasileira (São Paulo: Boitempo, 2010), Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2009) e Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985) (São Paulo: Impressa Oficial, 2009).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que resta da ditadura em nosso país? Qual é a pior herança deixada pelos torturadores?

Edson Teles -
Há uma série de "restos" da ditadura militar. Poderíamos dizer que a maior delas encontra-se na imposição de uma cultura de impunidade, que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania plena. Apesar de sairmos da ditadura com uma Assembleia Constituinte (1986-1988) e a nossa Constituição ser considerada liberal e democrática, uma série de aspectos, especialmente aqueles que se referem às estruturas jurídicas e institucionais do sistema de segurança pública e das Forças Armadas em quase nada foram alterados em relação à Constituição outorgada pelos militares em 1967. A ingerência das Forças Armadas na política brasileira e os privilégios que os militares têm indicam que a nossa Lei em democracia ainda fez a opção pela consolidação de cidadãos que são "melhores" e mais poderosos do que a maioria de nós.


IHU On-Line - Por que você e Vladimir Safatle  afirmam que a ditadura brasileira foi a mais violenta da América Latina?

Edson Teles -
Há um forte aspecto de violência da ditadura brasileira que é justamente sua herança. Além dos limites apontados anteriormente, há uma ação política no país cuja marca é o autoritarismo. Hoje se governa mais com decretos e medidas provisórias do que em qualquer outra época da história de nossa República, mais inclusive do que no período militar. Um bom exemplo é o desejo do Executivo atual de decidir por decreto o valor do salário mínimo. O grave problema que este tipo de instrumento jurídico implica é o descumprimento dos procedimentos democráticos de decisão sobre o futuro do país, alijando da política a grande maioria da sociedade civil.

A ideia forte que eu e Vladimir procuramos mostrar é a de uma ditadura não se mede pelo número de mortos e desaparecidos que produziu (cerca de 500 no Brasil, 20 mil na Argentina e 5 mil no Chile), mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia.


IHU On-Line - Há uma espécie de consenso em calar, abrandar ou negar o que houve nos anos de chumbo. Qual é o papel da memória e da resistência nesse sentido?

Edson Teles -
Este consenso favorece não só os setores diretamente envolvidos com a repressão política (militares e sistema policial), mas uma boa parte dos partidos e instituições políticas que obtém vantagens com a democracia nos dias atuais. Vejamos um exemplo: se os torturadores da ditadura não são punidos, qual o receio em praticar a tortura por parte de certos funcionários das antigas Febens (instituições para adolescentes infratores) ou das delegacias de polícia? Muito pequeno. Cria-se e dissemina-se uma ideia na sociedade de que a tortura é algo permitido, desde que seja para os "bandidos", pessoas "perigosas", como foram os "subversivos" de então.

Contudo, a memória não se configura como um instrumento de bloqueio da política autoritária. Ela é um significante modo de articulação das relações sociais e políticas e seu benefício está em permitir a nossa sociedade refletir sobre o que ocorreu e o que ocorre e, a partir dos debates produzidos, propiciar a criação de mecanismos democráticos de garantia de direitos e de justiça. O que quero dizer é que a memória deve ser livre, não deve ser nem um dever, nem um direito, mas ser exercida e praticada livremente em uma esfera pública democrática.


IHU On-Line - Por que as Forças Armadas de hoje temem a punição dos torturadores de ontem?

Edson Teles -
Certamente boa parte dos membros das Forças Armadas de hoje não foram torturadores na ditadura. Entretanto, ainda assim, a instituição não aceita a apuração dos crimes praticados pelos generais daquela época. Isto se deve, ao que parece, principalmente a uma questão de poder político. Como já disse, as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi "branda" e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicalizado dos militares (a chamada "linha dura). Ela foi muito bem organizada e sofisticada; a tortura e o desaparecimento serviram a uma política decidida no mais alto escalão militar. De posse desta verdade, a sociedade brasileira necessariamente terá que rever a função dos militares, ou ao menos refletir se são estas Forças Armadas que queremos para o futuro do país. A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares.


IHU On-Line - Quais são as semelhanças e diferenças entre as democracias com heranças autoritárias do Brasil e da África do Sul?

Edson Teles -
A África do Sul fez a opção pela narrativa e publicidade dos crimes do Apartheid. O Brasil escolheu o silêncio. A anistia sul-africana foi individual, caso a caso, crime a crime, e só foi concedida depois da confissão pública do ato criminoso e do esclarecimento do que foi feito com o corpo das vítimas. No Brasil, como vocês sabem, a anistia foi genérica e, simbolicamente, acabou por tornar inimputáveis os autores de crimes bárbaros praticados enquanto eram funcionários do Estado, com salários pagos pelo contribuinte e sem qualquer motivação política.


IHU On-Line - A África do Sul parece ter lidado melhor com as questões do período ditatorial do que o Brasil. A que se deve isso?

Edson Teles -
Há uma série de fatores. Porém, o principal deles é a coragem e determinação dos que assumiram a construção da nova democracia multirracial. Eles sabiam que a maioria negra não iria aderir ao novo regime se não houvesse atos de justiça consistentes. No Brasil, a maior parte dos democratas, dos que vivenciaram a transição política, escolheram a composição com os antigos criminosos. Como podemos ter uma democracia plena se o presidente de um dos três poderes da República encontra-se nas mãos de um dos maiores líderes civis da ditadura, José Sarney (lembre-se que ele liderava a Arena, partido do governo militar, quando da aprovação da Lei de Anistia em 1979).


IHU On-Line - O recurso da anistia também foi usado na África do Sul? Por que essa foi a medida tomada no caso de nosso país? No caso da África do Sul a questão da ditadura foi resolvida em função de Nelson Mandela ter sido preso político e primeiro presidente eleito democraticamente?

Edson Teles -
Não. O passado de alguém é muito importante na compreensão de seu presente, mas não garante que ele vá agir de algum modo determinado. Os dois primeiros presidentes eleitos de nossa democracia que terminaram o mandato foram vítimas da ditadura. Contudo, nem FHC e nem Lula tiveram a coragem (aquela que teve Mandela) de abrirem os arquivos militares e localizarem os desaparecidos políticos. Ao contrário, como dissemos, preferiram compor com os setores herdeiros da ditadura.


IHU On-Line - Nessa lógica, Dilma Rousseff, por ter sido presa política, irá dar um tratamento diferenciado às questões relacionadas à ditadura?

Edson Teles -
Novamente não. É claro que conhecer tão bem quanto ela o que se passou no período abre uma chance de ouro para a nossa democracia. Mas ela sofre e sofrerá as maiores pressões para que nada se modifique. O que poderá garantir um tratamento diferenciado é a pressão política e social para que aprofundemos nossa democracia. Cito um exemplo: faz mais de 10 anos que os movimentos de direitos humanos ligados ao tema exigem uma Comissão da Verdade e da Justiça no país. Somente agora, do ano passado para cá, é que nossa democracia começou a tocar no assunto. Por que será? Certamente se deve ao fato de a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos - OEA, ter condenado o Estado brasileiro a responsabilizar penalmente os criminosos, apurar as circunstâncias dos crimes, localizar os restos mortais dos desaparecidos, entre outras medidas.


IHU On-Line - O que uma possível abertura dos arquivos da ditadura por Dilma Rousseff pode mudar em relação à memória que temos do período militar, e em relação às gerações futuras?

Edson Teles -
A mudança será extrema. Veremos que o país ainda vive sob instituições autoritárias que devem ser reformadas para que a democracia e a justiça ganhem um valor maior. Poderemos, inclusive, começar a transformar a cultura de violência e impunidade, não só em relação aos crimes do passado, mas em relação à violência dos dias atuais. Há um estudo da socióloga Kathryn Sikkink , da Universidade de Minnesota (EUA), demonstrando que os países da América Latina que puniram os torturadores do passado e apuraram a verdade de suas ditaduras sofreram uma considerável redução da violência atual se comparados com os países que quase nada ou nada fizeram como o Brasil.


IHU On-Line - Como as experiências do Uruguai, Argentina, Chile e El Salvador com suas ditaduras ajudam a redesenhar o mapa dos direitos humanos e da memória na América Latina?

Edson Teles -
A Argentina nos mostra que é possível e, mais do que isto, desejável, que nossas democracias apurem os crimes. Hoje, temos no banco dos réus naquele país dois ex-presidentes generais, um dos quais já condenado em outro processo à prisão perpétua, e nenhum golpe ou instabilidade foi provocado por isto.

O Chile, ao começar seus processos pela punição dos crimes de desaparecimento, levou em consideração que este é um crime de sequestro continuado, já que o corpo não foi localizado. Isto permite ao ordenamento jurídico não levar em consideração anistias como a brasileira de 1979, na medida em que estes crimes continuaram após a aprovação destas leis. No Brasil, podemos julgar e condenar os responsáveis pelos desaparecimentos mesmo sem reinterpretação da lei de anistia, como fez o Chile.

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