Edição 356 | 04 Abril 2011

Câmbio continua sendo maior desafio do governo brasileiro

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Patrícia Fachin

É possível conter a inflação e ainda crescer economicamente cerca de 4, 5%. Entretanto, esta taxa é insuficiente para resolver os problemas que o país enfrenta, declara o economista Fernando Cardim de Carvalho

Nos primeiros três meses de governo, a presidente eleita, Dilma Rousseff, não perdeu as rédeas da administração federal e sinaliza algumas modificações em relação ao governo anterior. Segundo Fernando Cardim de Carvalho, as mudanças são visíveis, embora ainda não seja possível medir as consequências como, por exemplo, “a mudança na diretoria do Banco Central em favor de funcionários de carreira em lugar de egressos de mercados”.

Em entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail, o economista comenta as principais medidas adotadas pela presidenta no início do mandato, e assinala como positivo o corte orçamento da União de R$ 50 bilhões. “O Brasil atravessou a crise muito bem, como se sabe, retomou seu caminho e não é mais necessário que o governo sirva de muleta para compensar uma demanda privada deficiente”. Cardim ressalta que a política do salário mínimo “tem sido uma peça importante da estratégia de redistribuição de renda dos últimos governos”, além de ser mais eficaz do que programas como o Bolsa Família.
Surpreendido positivamente com a administração Rousseff, Cardim diz que ainda é cedo para avaliar resultados, “mas a presidente está mostrando liderança e decisão, tanto mais importantes quando nos lembramos que não voamos mais em céu de brigadeiro no contexto internacional”.

Fernando Cardim de Carvalho é mestre em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Economia pela Rutgers, State University of New Jersey. Atualmente, é consultor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE - e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual o impacto do ajuste fiscal de R bilhões na economia? É possível investir em questões sociais e crescer economicamente com ajuste fiscal?

Fernando Cardim de Carvalho - Há que se chamar a atenção para dois pontos. O primeiro é que o corte, na verdade, é um corte no "aumento" previsto para os gastos, não um corte propriamente dito. Assim, caso seja o intuito do governo, a decisão não implica necessariamente um sacrifício do que existe, mas um adiamento do que poderia vir a ser feito. Segundo, e mais importante, é lembrar-se que o gasto público no Brasil desses últimos anos compreende dois elementos: despesas com a provisão de serviços públicos, investimentos do governo e, no nosso caso, as medidas de redistribuição de renda, que são permanentes; mas há também despesas de natureza anticíclica, quando o governo expandiu gastos e reduziu impostos para combater os impactos locais da crise internacional, ao final de 2008, início de 2009.

O Brasil atravessou a crise muito bem, como se sabe; retomou seu caminho e não é mais necessário que o governo sirva de muleta para compensar uma demanda privada deficiente. Consumidores e investidores privados voltaram a fazer seus gastos normais, o governo pode sair parcialmente de cena, desativando seus mecanismos de combate a uma crise que já não está mais, deixando para usá-los de novo na próxima crise.

IHU On-Line - Qual sua avaliação em relação à política monetária e cambial adotada pelo governo? São eficazes?

Fernando Cardim de Carvalho - O câmbio é, de longe, nosso maior problema. Não é um problema de fácil solução. Um real desvalorizado é essencial para promover exportações líquidas, mas ainda mais para impedir a desindustrialização visível seja na penetração de importações de manufaturas, seja no desaparecimento dessa classe de bens da nossa pauta de exportações. Nós voltamos a acumular déficits em transações correntes, o que significa que a dívida externa voltou a crescer. Por enquanto, há o conforto das reservas, mas, e principalmente, o fato de que a crise internacional diminuiu a atratividade de outros mercados financeiros, desestimulando a fuga de capitais. Mas vivemos em um mundo excepcionalmente volátil e perigoso, com novas fontes importantes de incertezas emergindo a cada dia. Contar com um contexto benigno para evitar tomar as medidas necessárias é correr riscos inaceitáveis, como a nossa experiência passada mostrou repetidamente.

Por outro lado, há pressões inflacionárias importantes na economia mundial, especialmente no que diz respeito a alimentos e energia (que se propagam facilmente para outros grupos de bens). Uma eventual desvalorização descontrolada do real poderia reforçar a inflação doméstica, algo intolerável para a sociedade brasileira. Exige-se do governo, no momento, não apenas a clareza para identificar os problemas, mas também uma habilidade extrema para manejá-los de forma eficaz.

IHU On-Line - Quais são as causas que geram a inflação neste momento? Apenas as pressões externas?

Fernando Cardim de Carvalho - As pressões externas são bastante fortes. Elas impactam a economia não só através do preço do que é importado, mas também do que é exportado, já que o exportador não vai vender no mercado local o que ele pode vender por preço mais alto no exterior. Além disso, como já mencionado, tratando-se de itens como alimentos e energia, o poder de propagação é muito grande, especialmente na economia brasileira onde subsistem muitos bens e serviços com preços indexados, como, por exemplo, as tarifas de serviços públicos vendidos por empresas privadas. Eliminar as formas de indexação sobreviventes na economia é inadiável. Na verdade, já deveria ter sido feito há muito tempo atrás. Houve também, certamente em 2010, um excesso de demanda, apoiado na expansão do gasto público, que talvez já tenha desaparecido, talvez não, eu não tenho elementos ainda para ter uma avaliação pessoal mais satisfatória.

IHU On-Line - Dilma declarou que não admitirá o retorno da inflação. As medidas adotadas para conter a inflação podem repercutir negativamente no crescimento econômico? É possível conter a inflação sem prejudicar o crescimento?

Fernando Cardim de Carvalho - É possível, porque nós não estamos crescendo exatamente a taxas "chinesas". Mesmo o crescimento de 7,5% em 2010 se explica, em grande parte, pelo fato que 2009 foi o ano do impacto da crise internacional sobre o PIB. Eu não tenho dúvidas que a sociedade brasileira não toleraria o retorno a uma inflação descontrolada, ainda que baixa, porque todos nós, pelo menos da minha geração, vivemos o longo episódio da inflação que começou relativamente baixa (relativamente ao que acabou alcançando) e tornou-se explosiva. É possível, apesar de ser extremamente difícil, especialmente no contexto internacional volátil em que se vive, muito diferente daquele que marcou os anos anteriores à crise internacional.

IHU On-Line - Como vê a expectativa de crescimento de 4 a 5%? O que esse crescimento mais baixo em relação ao ano passado demonstra em relação ao crescimento econômico brasileiro?

Fernando Cardim de Carvalho - A taxa de crescimento do ano passado não informa muito sobre o que a economia brasileira pode ou não pode fazer porque ela contém fortes elementos de recuperação e não apenas de retomada do crescimento. Certamente, crescer de 4 a 5% para o Brasil é insuficiente e para resolver minimamente os problemas que o país tem e é abaixo do seu potencial. Não me refiro aqui aos cálculos de produto potencial que se faz por aí, mais adequados à astrologia que a uma disciplina que aspira a ser científica. Nós temos escala, recursos, estrutura para crescer muito mais e transformar efetivamente a face da sociedade brasileira. Mas isso não cai do céu. É preciso promover investimentos, aumentar o nível educacional da população, melhorar dramaticamente a eficiência com que o governo opera, que é ainda muito baixa, diminuir nossa fragilidade externa antes que ela se torne um problema real, etc. É uma lista enorme de demandas; mas desenvolvimento é mesmo exigente.

IHU On-Line - Como avalia a postura do governo em relação ao salário mínimo e a indexação?

Fernando Cardim de Carvalho - A política do salário mínimo tem sido uma peça importante da estratégia de redistribuição de renda dos últimos governos. Ela foi mais eficaz do que programas mais visíveis, como o Bolsa Família, por exemplo, tanto na redistribuição de renda quanto na sustentação de demanda. Ela tem sido especialmente importante e eficaz no contexto de aumento do grau de formalização das relações de trabalho também característica dos últimos anos. Ainda estamos longe de alcançar um nível adequado para o salário mínimo. Quando isso ocorrer, as metas para essa política deverão ser revistas. Por ora, a política atual dá ao governo a flexibilidade necessária para perseguir um objetivo não muito importante, mas também que se mostrou factível.

IHU On-Line - Como o senhor compreende o anúncio do governo em abrir concessões privadas para expandir os aeroportos?

Fernando Cardim de Carvalho - Eu não vejo a questão da estatização/privatização por ângulos ideológicos, mas de eficiência. Aqui, eu concordo com Deng Xiao Ping  quando disse que não importava a cor do gato, importava que ele matasse ratos. Há setores em que a privatização foi desastrosa, como na geração de energia elétrica, e a Califórnia forneceu uma ilustração vívida de quão desastroso isso pode ser. Por outro lado, a qualidade dos serviços de telecomunicações no Brasil, com todos os problemas que se conhece, é muito maior do que no tempo das estatais, quando telefones eram tão raros que eram objetos de investimento neste país. Ninguém no Rio de Janeiro, por exemplo, tem qualquer saudade da Telerj . Para quem viaja com frequência, é evidente que a Infraero  não tem competência para controlar o setor. A questão é saber se é prioritário para o governo tentar resolver um problema desse tipo ou se é melhor tentar outra coisa, como a gestão privada. Eu não sei se a gestão privada vai ser melhor. O que sei, como viajante contumaz e usuário frequente, é que a Infraero coloca a barra tão baixa que praticamente qualquer coisa pode transpô-la. Mas eu acho um erro ler ideologias nessas iniciativas. Empresas estatais não são intrinsecamente boas ou más e empresas privadas também não. Em certos setores, pode-se deixar aos consumidores a decisão do que deve ou não sobreviver. Em outros, a decisão sobre quem deve prover o serviço é do estado e não há razão a priori para que a decisão não seja conceder a outros a operação. Se não funcionar, casse a concessão e tente outra coisa.

IHU On-Line - Resumindo, que avaliação o senhor faz da condução da política econômica do governo Dilma? Quais os desafios da nova presidente?
Fernando Cardim de Carvalho - Até agora, estou positivamente surpreendido com a administração Rousseff. Eu temia que a presidenta, por inexperiência política, podia acabar dominada pelos grupos que povoam seu governo, e perdesse as rédeas da administração federal. Isso não aconteceu, pelo contrário. Por outro lado, há mudanças visíveis, embora de consequências ainda não inteiramente claras, como, por exemplo, a mudança na diretoria do Banco Central em favor de funcionários de carreira em lugar de egressos de mercados, cuja agenda nunca se sabe realmente qual é, ou que, no mínimo, tornam a autoridade monetária mais sensível do que deveria ser às demandas e visões do mercado. Ainda é muito cedo para avaliar resultados, mas a presidente está mostrando liderança e decisão, tanto mais importantes quando nos lembramos que não voamos mais em céu de brigadeiro no contexto internacional.


Leia Mais...
Fernando Cardim de Carvalho já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line, disponíveis na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br).

>    As controvérsias da política econômica brasileira. Entrevista publicada na edição 338, de 09-08-2010. Acesse no link http://migre.me/45Aml;


>    “Criou-se uma moeda europeia, mas não um estado europeu”. Entrevista publicada na edição 330, de 24-05-2010. Acesse no link http://migre.me/45AqV.

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