Edição 354 | 20 Dezembro 2010

“Muitas vezes confundimos a semente do evangelho com o vaso que carrega a planta”

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Por Moisés Sbardelotto

Auditor do Sínodo da Palavra em 2008, o teólogo uruguaio Daniel Kerber defende, a partir do documento pós-sinodal recentemente publicado, que é preciso compreender o universo cultural da Bíblia e os parâmetros culturais do povo ao qual a tradução se dirige hoje

“O acontecimento do Sínodo transcende muito o documento que acaba de ser publicado”. A opinião é do teólogo e padre uruguaio Daniel Kerber, que participou como auditor da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, ocorrido em outubro de 2008, no Vaticano, em Roma. O documento referido por Kerber é a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini sobre a Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja (São Paulo: Paulinas) , documento redigido por Bento XVI, recentemente publicado, que sintetiza os debates do Sínodo, dando, assim, continuidade à assembleia sinodal anterior, sobre a Eucaristia.

Para o teólogo uruguaio, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, é necessária uma interpretação da Palavra que “atualize não só a mensagem, mas principalmente a Pessoa que está se comunicando”, diz. “Com frequência, na Igreja – continua –, confundimos a semente do evangelho com o vaso que carrega a planta”. Por isso, é preciso compreender o universo cultural da Bíblia e os parâmetros culturais do povo ao qual a tradução se dirige hoje.

Além disso, é preciso rever o currículo de formação dos candidatos ao ministério, segundo Kerber. Quando esse currículo foi pensado, há cinco séculos, “o importante era que os ministros tivessem um conhecimento dogmático que lhes permitisse enfrentar os hereges e defender-se de seus erros”. Desse modo, explica, eram formados como “pequenos professores de teologia”. Por isso, hoje é necessário “mudar os paradigmas de formação”. “Em nossos itinerários formativos, ainda estamos longe do que o Concílio propunha”, sintetiza.

Daniel Kerber é teólogo e padre da arquidiocese de Montevidéu, no Uruguai. Fez seu bacharelado em teologia na Faculdade de Teologia do Uruguai, agregada à Pontifícia Universidade Gregoriana. Tem mestrado em teologia pela Pontifícia Universidade Uruguaia, com especialidade em teologia bíblica, e doutorado na mesma área pela Faculdade de Teologia do Uruguai. Atualmente, é professor de Novo Testamento da Faculdade de Teologia do Uruguai e consultor de traduções das Sociedades Bíblicas Unidas, organização internacional dedicada à divulgação da Bíblia, presente em mais de 150 países. Em 2008, participou da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em Roma, como auditor.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como foi a sua participação no Sínodo? Que pontos centrais desse evento destacaria?

Daniel Kerber –
Como leitor assíduo da Bíblia, quando soube que seria realizado um Sínodo sobre a Palavra, despertou-se em mim um grande desejo de poder participar, embora as possibilidades eram muito remotas, quase impossíveis. O Sínodo é de bispos e de muitos poucos outros participantes. Quando a Conferência Episcopal [do Uruguai] nomeou seu bispo delegado para o Sínodo [Dom Orlando Romero, bispo de Canelones], entraram em contato comigo para poder acompanhá-lo como colaborador. Foi assim que fui nomeado “auditor”, isto é, “escuta” da Assembleia Sinodal. Para minha surpresa, quando cheguei, nos comunicaram que os “auditores” teriam quatro minutos para se dirigirem à Assembleia, diferentemente dos especialistas, que só tinham a palavra quando nos reuníamos nos Círculos Menores.

Acredito que é importante destacar que o acontecimento do Sínodo transcende muito o documento que acaba de ser publicado. O fato de que a Igreja inteira, por meio dos bispos delegados, esteve refletindo e voltou a se propor o lugar da Palavra de Deus em todas as dimensões de sua vida e de sua pastoral é, sim, um sinal forte, e desse modo vivemos as três semanas da Assembleia Sinodal.

Na Assembleia, vivia-se em um ambiente muito positivo e desafiador: como voltar mais à fonte, como deixar que a Palavra de Deus seja de verdade a fonte da qual a Igreja se alimenta e a partir da qual compartilha sua riqueza com todos os homens e mulheres? Ao mesmo tempo, existia o desafio de comunicar de maneira viva e orgânica essa alegria e dinâmica que eram vividas durante a Assembleia em torno à Palavra de Deus.


IHU On-Line – Quais foram as orientações do Sínodo que o senhor considera mais importantes e que foram retomadas agora pela Exortação Pós-Sinodal Verbum Domini?

Daniel Kerber –
São várias, e é difícil fazer um julgamento de maior importância. Simplesmente, elenco algumas que me parecem relevantes. O documento retomou a grande maioria das propostas dos padres sinodais. Entre elas, uma que surgiu dos bispos latino-americanos e foi felizmente retomada, a da Animação Bíblica da Pastoral. Isto é, a Bíblia não ocupa já um lugar a mais dentro das diversas pastorais, mas toda a pastoral deve ser animada pela Palavra (n. 73).

Outra orientação que me parece chave e que retoma a Constituição Dei Verbum do Vaticano II sobre a Revelação  é considerar o estudo da Sagrada Escritura como a alma da teologia (n. 31). Isso que já havia sido dito há mais de 40 anos volta a ser reproposto, principalmente na hora de se pensar suas implicações na formação exegética e teológica, particularmente dos candidatos ao sacerdócio (n. 47). Isto é, propunha-se na Assembleia a necessidade de reformular o currículo de estudos e da própria teologia, fazendo da Palavra de Deus o centro.

A outra chave que me parece muito relevante é a que se refere à interpretação da Bíblia. A contribuição que o Papa fez na Assembleia Sinodal foi retomada na Exortação Pós-Sinodal (n. 34) e aprofunda aspectos que a Dei Verbum já havia proposto. Essas chaves hermenêuticas implicam em três critérios básicos para levar em conta a dimensão divina da Bíblia: 1) interpretar o texto considerando a unidade de toda a Escritura; isso se chama hoje de exegese canônica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; e, finalmente, 3) observar a analogia da fé. “Somente quando se observam os dois níveis metodológicos, o histórico-crítico e o teológico, é possível falar de uma exegese teológica de uma exegese adequada a este Livro” . Seguindo esses critérios, se ajudará muito a uma inteligência mais profunda da Palavra de Deus e pode-se tornar possível o encurtamento da distância atual entre teologia e exegese.

Naturalmente, esses pontos, assim como outros muito relevantes da Exortação Pós-Sinodal, devem ser implementados. Não basta a simples publicação do documento. Deverão ser tomadas as decisões operativas em nível de Igreja universal com seus dicastérios e comissões e em nível diocesano, para que o que a Igreja propõe por meio do Sínodo vá se realizando nos diversos lugares.


IHU On-Line – Como está sendo recebido na Igreja em geral ou latino-americana esse documento que marca um momento importante na história da reflexão da Igreja sobre a Palavra de Deus? Estando em Roma agora, como o senhor percebe as repercussões do documento?

Daniel Kerber –
Ainda é muito cedo para fazer uma avaliação da recepção do documento. Em geral, a avaliação que é feita da exortação é muito positiva. O documento retoma basicamente as propostas dos Padres Sinodais. No entanto, também há em muitos uma percepção de que é um texto muito longo – justamente pela profundidade. E essa extensão pode ser um obstáculo na hora da difusão para o grande público, inclusive para muitos ministros. Será preciso ver o modo de fazer chegar as decisões do Sínodo às pessoas, seja por oficinas ou por textos mais em chave de divulgação, que permitam comunicar a riqueza da reflexão pós-sinodal a toda a Igreja.


IHU On-Line – Em geral, quais são as diferenças ou semelhanças com a Constituição Dei Verbum do Vaticano II? Que novas luzes sobre a Palavra de Deus são destacadas?

Daniel Kerber –
O Sínodo foi convocado com o tema que faz referência ao título do último capítulo da Dei Verbum: “A Sagrada Escritura na vida e na missão da Igreja”. Nesse sentido, queria continuar não só a reflexão, mas também principalmente a dimensão operativa e dinâmica da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Por isso, é um documento em continuidade com a Dei Verbum, e uma continuidade, sobretudo, em nível do desenvolvimento da pastoral da Igreja em relação à Bíblia.

Uma das dimensões que surgiu na Assembleia e foi retomada pelo documento é a sacramentalidade da Palavra (n. 56). Essa categoria da sacramentalidade permite um novo aprofundamento na compreensão da Palavra e exige um novo acesso a ela. Também é preciso levar em conta a primeira parte do documento, em que se trata da analogia da Palavra (n. 7ss). A Palavra de Deus não é só a Bíblia, mas é, acima de tudo, A Palavra, que é “o Verbo” do qual fala o prólogo do quarto evangelho. E se dá uma relação íntima entre a Palavra de Deus e o Verbo, pois Ele não é só o revelador do Pai, mas também, em si mesmo, é a plenitude da Revelação, como diz Jo 14,9, “quem me viu, viu o Pai”.


IHU On-Line – O que lhe motivou a estudar a Bíblia? Como vê, pessoalmente, a importância e o significado de seu conteúdo no século XXI? Que hermenêutica é necessária para o tempo de hoje?

Daniel Kerber –
Já desde adolescente eu sentia uma atração particular pela Bíblia, não muito refletida. Aos 20 anos, já havia lido do Gênesis até o Apocalipse. Não tinha muita consciência do que significava o que eu lia, mas sentia um chamado a entrar nela, a escutar o que Deus dizia ao longo dos tempos e hoje. Depois, nos estudos teológicos, fui descobrindo mais a sua riqueza. Sobretudo por meio de mestres que eram testemunhas, não só do seu grande conhecimento, mas também de um saber que tinha muito de sabedoria, de sabor. Isso me levou a continuar aprofundando depois, na pós-graduação, os estudos bíblicos, não só em chave de estudo acadêmico, mas também como fonte de vida. A Bíblia, como meio no qual Deus sai ao nosso encontro, nos fala e se comunica conosco.

Deus continua falando incessantemente com o seu povo, com seus filhos e filhas. Sua palavra continua se tornando viva. O conteúdo da Palavra lido na perspectiva de quem crê continua nos revelando hoje o Deus da vida. Mas, sobretudo, a Palavra de Deus continua sendo um meio privilegiado no qual nos encontramos com o Deus da Palavra. Por isso, é necessária uma interpretação que atualize não só a mensagem, mas principalmente a Pessoa que está se comunicando. Uma leitura da Palavra na Igreja significa uma leitura de quem crê, e esta supõe a fé de que Deus nos fala por meio de sua Palavra. É necessário saber o que o texto diz e quais são os modos humanos por meio dos quais Deus foi se manifestando através dos tempos, mas isso não é suficiente. Uma leitura de quem crê implica em nos abrirmos a um Deus vivo que continua se comunicando e, nessa comunicação, nos salva e nos dá vida.


IHU On-Line – Um dos temas do Sínodo, reforçado pela Exortação, é o anúncio da Palavra de Deus ao mundo. Como podemos compreender o diálogo da Igreja com o mundo contemporâneo, multicultural e multirreligioso?

Daniel Kerber –
O anúncio da Palavra de Deus ao mundo tem sua base no mistério da Encarnação. “A Palavra se fez carne e pôs sua morada entre nós, e nós contemplamos sua glória…” (Jo 1,14). Jesus assumiu todo o humano – menos o pecado – e nesse assumir o uniu em sua pessoa ao divino. Assim começa uma dinâmica de divinização que transforma tudo. A Igreja, como sacramento de Cristo, continua sua tarefa com sua palavra e com suas obras. Como Igreja, estamos no mundo, mas não somos do mundo, como diz Jesus no quarto evangelho (17,14s), e, ao mesmo tempo, somos enviados ao mundo para ser testemunhas da verdade que nos possui.

Os homens vão tomando uma maior consciência da multiculturalidade, e, ao mesmo tempo, nunca como agora assistimos a um avassalamento de culturas. A Igreja não é alheia a esse intercâmbio, e, ao longo da história, foi-se vendo uma relação diferente entre evangelho e cultura. 

Uma imagem do teólogo metodista Daniel T. Niles , do Sri Lanka, pode nos ajudar a compreender essa relação: “O evangelho é como uma semente, e é preciso plantá-la. Quando se plantou a semente do Evangelho na Palestina, cresceu uma planta que pode ser chamada de cristianismo palestino. Quando se plantou em Roma, cresceu um cristianismo romano. Plantou-se na Grã-Bretanha e surgiu o cristianismo britânico. Mais tarde, a semente do Evangelho foi trazida para a América e cresceu uma planta de cristianismo americano. Mas quando vieram missionários às nossas terras, trouxeram não só a semente do evangelho, mas também as plantas de cristianismo, com o vaso incluído! Então, o que temos que fazer é quebrar o vaso, pegar a semente do Evangelho, plantá-la em nosso próprio terreno cultural e deixar que ela cresça em nossa própria versão de cristianismo”.

A imagem é muito gráfica, e naturalmente é preciso lê-la com seus matizes. No entanto, mostra uma dimensão do equilíbrio frágil e que deve ser buscado permanentemente entre o centro do evangelho e a necessidade de “traduzi-lo”, isto é, de comunicá-lo em categorias que sejam receptíveis nas culturas onde ele é anunciado.

O desafio do diálogo em um mundo multirreligioso se apresenta, sobretudo, na Ásia, onde a Igreja é uma minoria em meio a tradições religiosas muito difundidas e com uma tradição milenar. Aqui, toca-se em vários elementos, por um lado o respeito às diversas tradições, a possível colaboração em diversas tarefas em que se têm perspectivas comuns; mas também é preciso levar em conta o perigo da perda de identidade e um falso respeito que seria não anunciar o evangelho, ou anunciar do evangelho só aqueles aspectos que pensamos que poderiam ser aceitos. Tendo sido alcançados pelo evangelho, “não podemos deixar de anunciar o que temos visto e ouvido” (At 4, 20).


IHU On-Line – Um de seus trabalhos é como consultor de traduções da Bíblia. Que desafios o senhor encontra nessa função? Como vê o processo de “atualizar” e “dinamizar” a Palavra de Deus e seu sentido mais profundo para o homem e a mulher de hoje, especialmente da América Latina?

Daniel Kerber –
Retomando a imagem de D. T. Niles, temos que reconhecer que, com frequência, na Igreja, confundimos a semente do evangelho com o vaso que carrega a planta. Traduzir não é mudar algumas palavras de uma língua por outras de outra língua, mas sim compreender o universo cultural em que foi se formando a Bíblia ao longo de mil anos, com suas matizes, investigar e descobrir a mensagem que é comunicada com o texto, compreender os parâmetros culturais do povo ao qual a tradução se dirige hoje e tornar acessível essa mensagem.
 Com frequência, inconscientemente, fazemos uma identificação falsa. Pensamos que uma tradução fiel é uma tradução literal. No entanto, a fidelidade de toda a tradução tem dois polos: por um lado, o texto bíblico (em sua língua original, com seu contexto histórico, geográfico, político, religioso próprio), mas, por outro, o polo do povo para o qual se traduz. É preciso conhecer sua linguagem, mas é preciso conhecer também quais são os valores, as expectativas, os sonhos, os medos, isto é, a cultura desse povo, para assim poder moldar com fidelidade uma mensagem que é de salvação para todos.
 Na América Latina, estamos há mais de 500 anos buscando viver o evangelho, com seus acertos e seus erros. Como crentes, como Igreja, sabemos que nos foi entregue uma mensagem, um evangelho que possuímos (ou melhor, somos possuídos por ele) e que está em sua própria dinâmica o comunicá-lo. “Pobre de mim se eu não anunciar o Evangelho!”, dizia Paulo aos Coríntios (1Co 9,16). A Palavra de Deus nos abre ao encontro do Deus da Palavra, e esse Deus que salva, continua se entregando, continua abrindo caminho. É Ele mesmo que “atualiza”, porque se faz atual, presente e porque é em sua força (dynamis) que somos enviados.
 Estas são as últimas palavras no evangelho de Mateus: “Todo poder no céu e na terra me foi dado, por isso vão e façam discípulos a todas as nações... e vejam que eu estou com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,18-20). A atualização da Palavra não é o fruto do esforço da Igreja por comunicar, mas é, acima de tudo, a obra do próprio Jesus que continua presente e operante em seu povo. A partir dessa certeza, sim, a Igreja se lança com todas as suas forças e consciente também de suas debilidades a alcançar a todos os povos com o Evangelho da salvação.
 As mulheres e os homens dos nossos povos continuam sendo necessitados, porque somos limitados, pobres; muitas vezes fazemos o mal que não queremos, e o que queremos, não o fazemos. Deus sai ao encontro das nossas vidas e nos revela sua mensagem de que somos filhos, filhas e, porque filhos, amados. Esta é mensagem que está no centro do evangelho de Jesus: Deus é Pai e quer que seus filhos vivam fazendo parte do seu reinado.


IHU On-Line – Em sua intervenção no Sínodo, o senhor defendeu que “é necessário mudar o paradigma de formação, pondo no centro a Palavra viva de Deus”. Em que sentido?

Daniel Kerber –
Quando falei de formação, estava me referindo especificamente ao itinerário acadêmico daqueles que são formados para o presbiterado. O currículo de formação dos candidatos ao ministério tem sua origem na contrarreforma tridentina. Ali, a Igreja, diante da enorme crise que suscitou a reforma protestante, quis preparar melhor seus ministros, e o modelo era naturalmente um reflexo dos perigos que representavam naquele momento os que a Igreja chamava de “hereges”.

Frente a esse perigo, o importante era que os ministros tivessem um conhecimento dogmático que lhes permitisse enfrentar os hereges e defender-se de seus erros. Desse modo, a preparação acadêmica dos ministros era pensada como a de um “pequeno professor de teologia”, que estivesse preparado para defender a ortodoxia da fé.

Depois de cinco séculos, parece necessário mudar os paradigmas de formação. Queremos que os ministros sejam formados como “pequenos professores de teologia” ou como pastores apaixonados pelo evangelho da vida e capazes de comunicá-los nas diferentes encruzilhadas de caminhos do nosso tempo? Não é que a analogia não seja importante, pelo contrário, mas qual é a chave a partir da qual se ensina e a partir da qual se aprende?

Na qualidade de professor por mais de 15 anos, vi com dor como, em muitos casos, o estudo da teologia se transformava para os seminaristas no “mal necessário” que tinham que passar para chegar ao que queriam, que era ser sacerdotes. E, por outra parte, a queixa sincera de não ver a relação entre a teologia que lhes era ensinada e o ministério que lhes era proposto de ser portadores, de um evangelho que traz a salvação.

O Vaticano II, já na Constituição Dei Verbum, propunha que o estudo da Sagrada Escritura fosse a alma da teologia. Em nossos itinerários formativos, ainda estamos longe do que o Concílio propunha. É nesse sentido que eu defendia uma mudança de paradigma da formação sacerdotal. Como fazer o estudo da Palavra a partir de uma perspectiva de quem crê, que aprofunda o encontro com Deus que transforma, a alma da teologia. E que essa teologia, como reflexão atualizada do que Deus opera e mostra na história, seja fonte do trabalho pastoral de toda a Igreja, e não como é percebida por muitos, como um estudo sistemático da Bíblia, tradição e magistério, do qual se vê muito pouca relação com o viver e o agir da Igreja no mundo.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar ou destacar algum outro ponto?

Daniel Kerber –
Durante a Assembleia Sinodal, falou-se com frequência da Igreja não como comunidade do Livro, mas sim como comunidade da Palavra. Também somos visto de fora como comunidade da Palavra. No entanto, há vezes em que perdemos uma dimensão intrínseca disso. Se somos comunidade da Palavra, então somos também a comunidade da escuta. Jesus mesmo, sendo A Palavra, começa seu ministério com um ministério de escuta. Depois do Batismo de Jesus, abriu-se o céu e ouviu-se uma voz que dizia: Tu és meu filho (Mc 1,9s). Depois, ele irá levar seus discípulos ao monte e serão eles que escutarão (Mc 9,7s). Quando perguntam a Jesus qual é o primeiro dos mandamentos, ele responde: o primeiro dos mandamentos é: “Ouve, Israel...” (Mc 12,29).

Essa dimensão da Palavra que traz consigo a necessidade da escuta parece ser frequentemente descuidada na Igreja. Somos percebidos como comunidade da Palavra, mas por que não somos percebidos como comunidade da escuta? É-nos ensinado realmente a escutar? Ensinamos os nossos irmãos a escutar na Palavra de Deus da vida, ou enchemos os nossos espaços de palavra de homem que, às vezes, pode pelo contrário ocultar a Palavra de Deus? Que tipo de ouvidos são os que queremos? Aqueles que simplesmente ouvem e repetem o que ouviram, ou aqueles que compreendem e, quando não compreendem, perguntam, questionam, buscam, desafiam...?

É certo, é mais fácil não ter questionamentos, mas não devemos temer os questionamentos, porque, por trás das perguntas sinceras do homem e da mulher de hoje, poderemos buscar os caminhos para responder com maior fidelidade ao evangelho e também à voz do Senhor que continua se manifestando nos desejos mais profundos da humanidade.

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