Edição 354 | 20 Dezembro 2010

Niilismo e mercadejo ético brasileiro

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Corrosão “de alto a baixo” no caráter de indivíduos e grupos e supervalorização do mercado são traços peculiares do niilismo em terras brasileiras, acentua o filósofo Roberto Romano. A ocidentalização do mundo pulverizou o etnocentrismo dissolvente dos paradigmas milenares

“O século XX consagra o padrão ocidental de vida, de valores, de técnicas e ciências”, não sem receber reações contra essa “pulverização axiológica do Ocidente”, pondera o filósofo Roberto Romano em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Refletindo sobre o nexo que une niilismo ético e relativismo de valores no século XXI, afirma que “vivemos sob o signo das Luzes europeias e do etnocentrismo que ajudou a corroer paradigmas éticos milenares, no Ocidente e no Oriente”. Romano assinala haver no Brasil “uma peculiar corrosão ética não alheia ao capitalismo, como nas práticas do favor que atravessam todas as relações sociais e políticas”. Em sua opinião, vivemos num “mercadejo ético”, no qual “o caráter dos indivíduos e grupos é corroído de alto a baixo”. E continua: “Nosso Estado preza mais o mercado (inclusive eleitoral) do que as pessoas. Aqui, todos são meios e raros conseguem, pagando preço altíssimo, viver consigo mesmos o segredo da consciência moral. O mercado exerce uma corrosão previsível e impiedosa em todos os setores da vida, incluindo a universidade”. Questionado se o projeto político moderno está arruinado, disse que é arriscado dar um veredito. “Se irá prosperar em detrimento das grandes matrizes éticas e religiosas, não sabemos”.

Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, na França, e é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (2ª ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1997) e Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: Senac Ed., 2002). Atualmente, leciona na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que explica o niilismo ético e o relativismo de valores que presenciamos no século XXI?

Roberto Romano -
Seria tarefa própria a quem se caracteriza pela hybris discorrer sobre todos os prismas da pergunta. Ela é importante, diria mesmo que vital, mas numa entrevista as respostas tombariam no dogmatismo ou na superficialidade. Posso evocar a fábula que narra como produzimos a forma que reconhecemos hoje em nós e nos nossos iguais. Para a fábula, uso noções trazidas pelo saudoso André Leroi-Gourhan . Os homens construíram seu corpo e mente em milênios de tecnologia. Eles verticalizaram a espinha, diminuíram o queixo, aumentaram a caixa craniana e alargaram o campo de visão, o que tornou possível perceber as gradações de espaço e tempo. “Somos inteligentes, porque ficamos de pé”, diz o etnólogo. Eles diminuíram os braços e os tornaram capazes de operar com as mãos e a boca, inventaram a linguagem. Fabricaram instrumentos que permitem agarrar entes naturais dando-lhes sentido útil. O sistema inteiro ainda hoje está em progresso, sobretudo no lado tecnológico. Na faina incessante, idealizaram paradigmas a serem obedecidos nos macroeventos e microeventos da vida coletiva e individual (o indivíduo foi invenção técnica). Na história de todo o nosso parto, diz Gourhan, usamos capacidades contraditórias, o empréstimo e a invenção. Nenhum coletivo humano vive sem emprestar técnicas, cultura e valores de outros. E nenhum deles se desenvolve sem possuir força inventiva própria. Só pode emprestar com eficácia quem for capaz de inventar, e vice-versa.

Em momentos anteriores de nossa apropriação de corpo e mente, valores serviram como paradigmas de ação para os mais diversos grupos. Mas desde longa data os entes humanos entraram em circuitos amplos e diversificados de trato, uns com os outros. Se prestarmos atenção nos complexos civilizatórios, da China ao Egito antigo, da Grécia a Roma, do Renascimento aos nossos dias, nenhum deles é imune à dialética da invenção e do empréstimo. Isso, sem falar na pilhagem de saberes e técnicas, como no caso do Ocidente que assaltou os conhecimentos chineses e orientais durante as chamadas “Grandes Descobertas”. E também o que se passa no trato industrial, quando roubos de tecnologia são costumeiros de país a país. Quanto mais amplo e eficaz, para seus habitantes, o amálgama de valores e técnicas, maior poder possui um coletivo, inclusive porque os empréstimos e invenções são dirigidos, quase imediatamente, para a guerra.


Abismo de ideias

Até o século XIX, no entanto, os conglomerados culturais, étnicos e políticos eram orientados por modelos que eles encontraram e que definiam seus traços principais. Com o imperialismo colonial do Ocidente aumenta a rapidez no trânsito dos empréstimos e das invenções. Diferenças culturais se atenuam em proveito dos ocidentais. Não faltou no Ocidente quem tenha defendido outro modelo que não o definido na Europa, para o trato com a Ásia e a África. Leibniz  pensou o ecumenismo não apenas entre europeus, mas entre todos os povos. No caso do catolicismo, o fracasso foi evidente. Os jesuítas (apoiados por Leibniz) queriam preservar na China o culto aos ancestrais, vestes chinesas e filosofia confuciana nos ritos cristãos . Os dominicanos exigiam abolir o culto aos antepassados, vestes romanas, proibição das doutrinas de Confúcio. Venceram os dominicanos e, com eles, o diálogo entre Europa e China foi obstruído até hoje. Apesar de toda a sua boa vontade, os missionários católicos e protestantes na China, no Oriente e na África, não se desvincularam dos poderes coloniais europeus. Se lembrarmos que na China os ingleses colocavam na porta de seus clubes um aviso que proibia a entrada de cães e de chineses, percebemos o abismo entre as ideias ecumênicas de Leibniz e jesuítas e a efetividade histórica.

O século XX consagra o padrão ocidental de vida, de valores, de técnicas e ciências. Leroi-Gourhan, nos seus últimos dias, se preocupava com a inusitada atenuação das diferenças culturais, em proveito dos parâmetros ocidentais. Hollywood era vista por ele como a indústria que, por meio do star system, impunha padrões aos demais continentes, corroendo os valores e as forças inventivas das suas culturas, obrigadas ao empréstimo pela propaganda maciça e pelas armas.


Ocidentalização

Deixemos a fábula e sigamos o adensamento populacional. As cidades, das pequenas às metrópoles, são inventos técnicos. Quanto menor um coletivo, menor número de instrumentos de comunicação, governo, cultura ele movimenta. E mais sólidos se mostram aqueles valores na mente coletiva. O campo ético, ali, é mais denso e compacto, não permite desvios substanciais. Quanto maior o coletivo, mais os valores recebem matizes complexos. Chegamos ao que diz Weber  sobre o politeísmo dos valores. O passo não se dá sem quebras internas nos vários sistemas culturais. O imperialismo colonial efetivou tal tarefa em séculos de imposição pelas armas, astúcias diplomáticas, controle das comunicações. Com a última revolução técnica de alcance mundial, nas trocas entre culturas, a da informática (com a internet, a TV a cabo, etc.) os padrões ocidentais, inclusive o nivelamento por baixo dos valores, anunciavam uma vitória definitiva.

Para surpresa de teóricos e políticos, coletivos não ocidentais se mostram capazes de emprestar elementos da “nossa” cultura e também de inventar ou reinventar novas formas. E mais, dentro da própria cultura ocidental se cristalizam movimentos contrários ao politeísmo dos valores. Trata-se, entre outros, do fenômeno ainda não estudado em profundidade merecida, que se afirma sob o título de fundamentalismo. Católicos, protestantes, islamitas condensam seus laços com o passado e reagem contra a pulverização axiológica do Ocidente. As grandes matrizes éticas, com uso da tecnologia mais avançada, entram em campanha contra parte do Ocidente que se expandiu desde o século XV.

Aquelas matrizes (confucionismo e budismo na China, Índia e outros; o judaísmo e o cristianismo na Europa e nas colônias europeias, além dos países eslavos; o islamismo na Índia, no Paquistão, no Oriente Médio) definem até hoje um sistema interno de valores e atos. Mas na Europa e setores norte e sul-americanos, se firmou uma tênue camada social definida pelo que se convencionou chamar de “mundo secularizado”. Com a Renascença, as Luzes, os Estados independentes das igrejas, os valores mantidos pelas matrizes éticas mencionadas recebem corrosão virulenta. A parceria entre burgueses e líderes colonialistas, potenciada por intelectuais livres das amarras religiosas, gradativamente e com maior rapidez passou a corroer certezas coletivas que se ancoravam no Eterno ou na ordem natural.


Dissolução e estraçalhamento do indivíduo

A tarefa corrosiva conduzida pela burguesia e seus intelectuais foi descrita por Hegel e Marx . Para mencionar o mundo ético, Hegel usa com frequência inquietante o termo “dissolução” (Auflösung). Na “Filosofia Real” ele define o elemento químico quando unido ao calor: “a matéria calórica é existência, possibilidade de difundir-se perfeitamente; os elementos já estão perfeitamente dissolvidos, carecem entre si de massa, de existência (...). Trata-se da matéria, dissolvida por si mesma (...) que existe enquanto dissolução”. Da química, Hegel vai ao orgânico e guarda o termo “dissolução”. O sangue, no animal, “é a simples dissolução que não apenas contém tudo, mas que é calor, unidade de si e da figura, o devorar-se a si mesmo. Desse modo, o organismo está tenso como indivíduo inteiro perante o exterior, tem fome e sede. É um todo que devora a si mesmo”. No mundo espiritual, humano, a concepção hegeliana do elo entre indivíduos e todo social é de unidade e compenetração. O todo só é através do singular. E o singular só no universal encontra a base de sua existência. Caso o indivíduo se apoie apenas em si mesmo, negando o universal, faz surgir o ideal. Este, por sua vez, começa a dissolver o Todo existente. O mundo ético já se encontra elaborado para o indivíduo na aparência de necessidade externa. Mas a adesão à racionalidade objetiva do Estado pode ser uma submissão simples, ou nascer de um recolhimento livre e meditado.
Ao discutir O sobrinho de Rameau , Hegel descreve o indivíduo e seu estraçalhamento. Ali, os elementos sólidos se dissolvem numa perversão generalizada. Na vida contemporânea, diz o filósofo, “o Bem e o Mal, ou a consciência do bem e do mal, nobre e vil, são desprovidos de verdade; todos esses momentos se pervertem uns nos outros e cada um deles é o oposto de si mesmo”. No reino do “puro cultivo” o espelhamento rege indivíduos e grupos. Todos os partícipes da experiência social nela se integram de modo pervertido: “exercem um para o outro uma justiça universal; cada um tornou-se estranho a si mesmo, em si mesmo, enquanto se insinua em seu oposto, e o perverte do mesmo jeito”.

A “boa consciência” quer “moralizar” o mundo. Mas, se “lamenta a dissolução (Auflösung) de todo esse mundo perverso, ela não pode pedir ao indivíduo que o abandone, pois o próprio Diógenes em seu tonel é por ele condicionado...”. Quem possui consciência ética do mundo sofre. E faz sofrer. É como um turbilhão dissolvente. O mundo, na sua consciência, “tem, sobre si mesmo, o sentimento mais doloroso e o olhar mais verdadeiro - o sentimento de ser a dissolução (Auflösung) de tudo o que se consolida, de ser dilacerado através de todos os momentos de sua existência, fragmentado em todos os seus ossos. Ele é, também, a linguagem desse sentimento e do discurso espirituoso que julga todos os lados de sua condição...”.


Paradigmas corroídos

Vejamos, em diapasão similar, o Manifesto Comunista . Com a burguesia, “todas as relações sociais sólidas tornaram-se enferrujadas; com seu cortejo de concepções e intuições se dissolvem; as que subsistem envelhecem antes de esclerosar. Tudo o que era estabelecido e estável evapora; tudo o que era sagrado se profana. Os homens são, finalmente, constrangidos a considerar com um olho desiludido o lugar que ocupam na vida e nas suas mútuas relações”.

Espero ter sugerido uma via para pensar a questão posta. Não imagino que ela explique o abismo em que nos encontramos. Mas a partir daquele ângulo é possível seguir outros, tão ou mais relevantes para se entender a pergunta. Eu mesmo desenvolvi o problema em escritos, como, por exemplo, o artigo O sublime e o prosaico: Revolução contra reforma , ou também A crise dos paradigmas e a emergência da reflexão ética, hoje” .

Vivemos sob o signo das Luzes europeias e do etnocentrismo que ajudou a corroer paradigmas éticos milenares, no Ocidente e no Oriente. Tais paradigmas foram inventados ou emprestados. O niilismo reside sobremodo nas culturas secularizadas do Ocidente. Nas demais partes do mundo são mantidos os modelos axiológicos antigos, mesmo que revitalizados pelas técnicas e artes (pela internet e labor científico). Um país preso a matrizes rígidas, como o Irã, não por acaso tenta, de modo certo ou não, fabricar artefatos atômicos.


IHU On-Line - Há peculiaridades desse relativismo no caso da sociedade brasileira? Quais seriam elas?

Roberto Romano -
No caso brasileiro, a franja da sociedade que se move pelos rescaldos das Luzes, da democracia liberal, do ceticismo enquanto via de pensamento, é ainda mais diminuta do que na Europa e nos EUA. Ocorre entre nós, na verdade, uma peculiar corrosão ética não alheia ao capitalismo, como nas práticas do favor que atravessam todas as relações sociais e políticas. Maria Sylvia Carvalho Franco , em Homens Livres na Ordem Escravocrata mostra que no Brasil as formas violentas e corrosivas do trato social têm origem capitalista e não em supostas heranças pré-capitalistas. No mercadejo ético em que nos inserimos, o caráter dos indivíduos e grupos é corroído de alto a baixo. Aliás, uma releitura urgente, para captar os nossos dilemas coletivos, é o livro atualíssimo de Emmanuel Mounier , O Tratado do Caráter, infelizmente até hoje não traduzido para o vernáculo.


IHU On-Line - Qual seria o solo comum para o entendimento dos seres humanos numa sociedade com essas características niilistas?

Roberto Romano -
Eu diria, não em tom de blague, que a existência numa “sociedade” assim se resumiria no enunciado posto em peça teatral tremenda, Huis Clos : “Cada um de nós é o carrasco dos outros”. Donde... “l’enfer c’est les autres” (o inferno são os outros).


IHU On-Line - Que tipo de ética se faz necessária em nossos dias?

Roberto Romano -
Claude Lefort , meu orientador de doutorado falecido recentemente, escreveu um belo texto intitulado A invenção democrática: os limites da dominação totalitária (São Paulo Brasiliense, 1983). Recordando o esquema acima, de Gourhan, penso que precisamos de imaginação e força intelectual suficientes para inventar novas sendas éticas, não deixando de emprestar formas e valores do nosso passado e do pretérito da humanidade. Para tal faina o primeiro passo, e não faço um paradoxo, é realizar uma “époche” do que vivemos no presente. O caminho da fenomenologia ainda é um instrumento seguro para sabermos o que fazemos e pensamos. A partir da base essencial que preside nossa consciência poderemos inventar elos novos entre indivíduos, grupos, povos.


IHU On-Line - Em outra entrevista à IHU On-Line, o senhor afirmou que o Brasil é um Estado “despótico e inimigo dos diretos humanos”. Como essa afirmação se relaciona com o niilismo ético e político que vivemos em nosso país?

Roberto Romano -
Nosso Estado preza mais o mercado (inclusive eleitoral) do que as pessoas. Aqui, todos são meios e raros conseguem, pagando preço altíssimo, viver consigo mesmos o segredo da consciência moral. O mercado exerce uma corrosão previsível e impiedosa em todos os setores da vida, incluindo a universidade.


IHU On-Line - Em que medida o pós-humanismo é o passaporte que concretiza essa corrosão das instituições e dos valores, iniciada séculos atrás?

Roberto Romano -
Eu diria que o próprio humanismo tem sua face desumana. Mesmo autores das Luzes como Montesquieu  e Diderot , para não falar de Hume  e de outros, mostram uma face etnocêntrica nada favorável aos direitos humanos. Um livro essencial para os nossos dias e reflexão, penso, é o de Laurent Estève (Montesquieu, Rousseau, Diderot: du genre humain ao bois d’Ébène, les silences du droit naturel. Editions Unesco, 2002). Ali, notamos o quanto alguns ícones das Luzes são bastante... tenebrosos. O que se chama de pós-humanismo, no meu entender, é o disfarce de um rosto enodoado de crimes, uma face de Dorian Gray .


IHU On-Line - Para Agamben , o campo de concentração é o paradigma político da modernidade. Como essa constatação nos ajuda a compreender a política praticada no Ocidente?

Roberto Romano -
Eu relativizaria o enunciado. A prudência indica ser preciso buscar vários modelos para a intelecção da política ocidental.


IHU On-Line - Acredita que o projeto político da modernidade está esgotado? Por quê?

Roberto Romano -
Não sabemos. E se arrisca muito quem disser algo em sentido positivo ou negativo. A “modernidade” está unida ao processo da cultura secularizada, como a indiquei acima. Trata-se de um complexo ideal e fenomênico recente na história humana. Se irá prosperar em detrimento das grandes matrizes éticas e religiosas, não sabemos.


Leia mais...

>> Roberto Romano já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira.

* “O governo do Brasil retoma a ética conservadora e contrária à democracia, o que exige da Igreja o papel vicário”. Publicada nas Notícias do Dia 14-01-2008

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição