Edição 354 | 20 Dezembro 2010

O niilismo como doença da vontade humana

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Márcia Junges

Diagnóstico de Nietzsche sobre o fenômeno do niilismo continua atual e aponta a moral cristã como uma de suas origens. Radicalizar o niilismo é a única forma de superá-lo, pondera Clademir Araldi. Seus sintomas atingem inclusive a política, cujo projeto atual está esgotado

“Mais do que um fenômeno histórico, o niilismo é a doença da vontade humana. Essa doença da vontade teria origens em certas morais da tradição, principalmente a moral cristã”, afirma o filósofo Clademir Araldi em entrevista por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, na condição de “doença da vontade, o niilismo se alastra em todos os âmbitos da existência humana”. O diagnóstico do niilismo é feito de forma contundente pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que enfatizou que a crise de valores niilista atingiu não apenas os ateus, mas alcançou uma escala planetária. O homem hipermoderno substitui a autoridade divina pela História, pela tecnociência, a razão e o progresso. Iludido de que é livre em função das possibilidades que a sociedade de consumo oferece, esse homem tem no individualismo o cerne de suas relações sociais, “apesar de um discurso vago e propagado de solidariedade, numa era de democracia digital”. Sobre os sintomas do niilismo em nossa sociedade, Araldi acentua: “A pouca confiança das pessoas nas instituições sociais, a restrição sempre maior dos espaços de práticas sociais solidárias, vinculativas e a preocupação egoísta estreita com os simulacros de si mesmo expressam o vazio niilista de nossa sociedade”. A tarefa de Nietzsche é a construção “de uma nova nobreza no auge da modernidade, dominada pelos valores niilistas”, mas ele é muito mais coerente no diagnóstico desse vazio existencial do que na proposição de soluções afirmativas, pontua Araldi. Analisando a política atual sob a ótica do diagnóstico nietzschiano, o pesquisador frisa que o projeto político da modernidade está, sim, esgotado, uma vez que se apoia “em valores de uma moral que perdeu seu sentido”. Contudo, radicalizar o niilismo é a única forma de superá-lo. “A dificuldade está em apreender o espírito de aniquilamento”.

Clademir Araldi é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, com aperfeiçoamento em Filosofia pela Universidade Técnica de Berlim, Alemanha. Cursou mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a tese O niilismo na moral. Investigação sobre a crítica da moral em Nietzsche, e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com a tese A radicalização do niilismo na obra de Nietzsche: acerca da posição de um novo sentido de criação e de aniquilamento. É pós-doutor pela Universidade Técnica de Berlim e autor de Niilismo, criação, aniquilamento. Nietzsche e a filosofia dos extremos (São Paulo: Discurso Editorial, 2004). Atualmente, leciona na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Poderia traçar um breve panorama sobre o fenômeno do niilismo analisado por Nietzsche ?

Clademir Araldi -
Nietzsche interpreta toda a história da civilização ocidental como o advento, o desenvolvimento e a consumação do niilismo. Mais do que um fenômeno histórico, o niilismo é a doença da vontade humana. Essa doença da vontade teria origens em certas morais da tradição, principalmente a moral cristã. Mas poderíamos objetar que já na Antiguidade o niilismo se manifesta por um viés epistemológico, no ceticismo antigo, p. ex. Nietzsche entende que a própria experiência da verdade é um problema moral. Nesse sentido, a crença ou a descrença no valor da verdade e do conhecimento são questões morais. Em Platão , a verdade assumiria o estatuto de valor moral superior, numa nítida desvalorização do mundo natural. A partir daí, Nietzsche interpreta toda a história do niilismo ocidental como o desdobramento do ideal platônico da verdade na moral cristã. É a célebre afirmação que “o cristianismo é platonismo para o povo”. Enquanto doença da vontade, o niilismo se alastra em todos os âmbitos da existência humana. Com o predomínio das virtudes e dos valores morais cristãos (como a compaixão, a veracidade, o amor ao próximo e a humildade), o fenômeno do niilismo chegaria na época moderna transmutado em consciência científica. A busca da verdade engendrada pelo platonismo e cristianismo é radicalizada pela ciência moderna. O próprio Nietzsche seria herdeiro dessa vontade incondicional de conhecimento sobre o mundo e sobre a existência humana. O método genealógico, que Nietzsche aplica principalmente à moral, visa mostrar as raízes niilistas, ou seja, negadoras da vida, em nossas experiências valorativas.

O niilismo ocidental nasceu e se desenvolveu com o homem moral. E Nietzsche, herdeiro dessa longa experiência valorativa, quer tornar manifestas as contradições dos valores morais da tradição. A moral cristã, foco principal de seus ataques, repousaria em bases imorais. Ela predomina historicamente através da vontade mascarada de poder do sacerdote ascético, do desejo de dominar os fracos e sofredores. O niilismo, nessa ótica, só pode ser superado a partir da radicalização da moral ascética na modernidade. Antes que a moral cristã tivesse triunfado sobre os valores nobres, havia morais que afirmavam a vida em sua dimensão instintiva e natural. Nos gregos e romanos antigos teríamos a encarnação dos valores aristocráticos, da moral nobre. A tarefa paradoxal de Nietzsche é a de construir uma nova nobreza no auge da modernidade, dominada pelos valores niilistas.


IHU On-Line - Qual é a atualidade do diagnóstico nietzschiano sobre o niilismo? Como o seu “pensamento dos extremos” nos ajuda a compreender o relativismo de valores que vivenciamos?

Clademir Araldi -
Sem dúvida, o diagnóstico de Nietzsche sobre o niilismo é atual, pois vivemos numa crise de valores, quer ela seja admitida ou não. Heidegger  nos mostrou muito bem, em seus escritos posteriores à Segunda Guerra Mundial, que o niilismo assume uma escala planetária, não se restringindo apenas ao mundo ocidental, com o desenvolvimento da técnica no século XX. E isso Nietzsche enfatizou bem: a crise de valores niilista não atinge somente os ateus, que se desgarraram da crença num Deus garantidor da verdade e do sentido da vida. O niilismo é um fenômeno planetário (hoje diríamos, global), pois tem a ver com uma questão que diz respeito a todos: como dar sentido à existência singular depois que ficou evidenciado o vazio da interpretação moral cristã? Deparamo-nos aqui com a controvertida afirmação de Nietzsche, de que “Deus morreu”. A “morte de Deus” não é uma invenção de Nietzsche. Mas é a constatação de que o homem moderno (e contemporâneo) já há muito não pauta suas ações pelos valores genuinamente cristãos. Ou seja, Deus não possuiria mais poder sobre as ações e desejos do homem, em sua destinação terrena.


Forma doentia de egoísmo

No fundo, a práxis de vida de Jesus (que Nietzsche não desvaloriza em absoluto) não seria mais possível num mundo dominado pela busca de bem-estar e de posses materiais. Nós ainda estaríamos muito distantes de compreender todas as consequências da morte de Deus, porque substituímos a autoridade de Deus, pela autoridade da História, da tecnociência, da razão e do progresso.
Mas poderíamos contestar esse diagnóstico, ao apontarmos para o crescente número de crentes no início do século XXI. De modo que, mesmo na recente campanha presidencial brasileira, os principais candidatos declararam abertamente seu “cristianismo”, ou foram “forçados” a admitir que tiveram uma formação cristã... Em nossa “individualizada sociedade de consumidores”, para usar uma expressão de Zygmunt Bauman , é muito penoso assumir radicalmente a responsabilidade pelos próprios valores e modos de existência.

A crença em um Deus (seja ele cristão ou não) ou o cultivo de alguma forma de espiritualidade expressam a necessidade de ter um apoio firme, uma fé incontestável em algo absoluto, em meio à relatividade dos valores que nos cercam. O mundo moderno é dominado pela circulação incessante de mercadorias, de valores, de desejos e de necessidades. Com a experiência hipermoderna da aceleração dos acontecimentos, parece que o indivíduo não tem mais condições de assumir, com seu potencial crítico e criativo, as rédeas de seu próprio destino. Mas ele pode canalizar suas energias na busca de uma felicidade que pode ser alcançada através do trabalho, no consumo frenético de bens e mercadorias. E esse indivíduo hipermoderno pode ainda se iludir continuamente de que é original e livre, à medida que configura a seu bel prazer seu mundo descartável de vivências e desejos. Nietzsche diria que isso é uma forma doentia de egoísmo, uma luta incansável para dar uma breve duração a certos fantasmas de nossa imaginação, sem que pensemos profundamente na construção de nossa subjetividade (de nosso mundo interior de paixões, sentimentos e pensamentos).


Pensamento dos extremos

O pensamento dos extremos de Nietzsche pode contribuir para os seres humanos do século XXI a repensarem os valores pelos quais pautam sua existência. É preciso radicalizar experimentalmente a consequência do cultivo dos principais valores de nosso tempo (bem-estar, individualismo consumista), a saber, o vazio de sentido que mais cedo ou mais tarde se impõe para quem segue irrefletidamente nessa senda. Assim, seria possível reverter os resultados niilistas de certas práticas contemporâneas no extremo oposto de uma existência decidida para construir sua própria individualidade, a partir da base instintiva da natureza. Mas isso não é nada simples. Nietzsche é muito mais coerente em diagnosticar o vazio da existência dos inquietos seres de nosso tempo do que em propor soluções afirmativas para ela.


IHU On-Line - Atualmente, quais são os principais sintomas do niilismo em nossa sociedade?

Clademir Araldi -
Penso que podemos diagnosticar sintomas de uma crise niilista tanto no plano coletivo quanto no plano individual. Parece que os homens há muito deixaram de ser sujeitos autônomos dos processos, valores e leis que regem nossa sociedade contemporânea. Apesar de passar por crises, as democracias liberais oferecem várias opções aos indivíduos nela jogados, mas sempre dentro de uma lógica de produção, circulação e consumo. O mercado, assim, parece encantar de novo o mundo com seus valores e leis invisíveis, com promessas de felicidades imensas para indivíduos empreendedores. O individualismo está no cerne de nossas relações sociais, apesar de um discurso vago e propagado de solidariedade, numa era de democracia digital. Mas é quase sempre o temor de ferir o espaço de jogo individual que move os atores a preocupar-se um pouco com os outros no palco contemporâneo de luta por destaque.

O niilismo se insinua através desse individualismo associal. Por mais que o indivíduo se esforce sem refletir sobre o sentido de seus empreendimentos e investimentos pulsionais, o vazio desses valores incomoda muito. Isso porque os bens de consumo são muito fugazes. A satisfação que eles trazem é tão breve que a compulsão por novos produtos e realizações não consegue preencher a necessidade humana por um sentido firme, por afetos que não sejam tão diluíveis nas aparências enganadoras do consumismo. A depressão é um sintoma bem nítido dessa doença em nossos tempos. E principalmente a luta para evitar o desespero latente em não ter nada que fazer para preencher o vazio de uma vida que se consome na superficialidade das relações. A pouca confiança das pessoas nas instituições sociais, a restrição sempre maior dos espaços de práticas sociais solidárias, vinculativas e a preocupação egoísta estreita com os simulacros de si mesmo expressam o vazio niilista de nossa sociedade.


IHU On-Line - Com base nesse autor, acredita que o projeto político da modernidade está esgotado? Por quê?

Clademir Araldi -
Nietzsche afirmou que o projeto político da modernidade está esgotado, porque ele estava ancorado em valores de uma moral que perdeu seu sentido. Tanto o socialismo quanto o liberalismo acreditam num melhoramento “moral” dos seres humanos. As consequências dos projetos políticos da modernidade seriam niilistas, pois não fornecem uma saída para a crise de valores e sentido que atravessa nossa história ocidental. No fundo, Nietzsche subsume os movimentos políticos modernos ao processo de dissolução dos valores morais. E o filósofo solitário, que se reconhecia como apátrida na inquieta Europa do século XIX, dedicou-se incansavelmente nos últimos anos de sua produção filosófica a criticar os interesses mesquinhos da “pequena política moderna”. Os valores da moral de rebanho é que predominariam nos diversos modelos políticos da Europa oitocentista. Não é tão simples assim sustentar o esgotamento desse projeto político moderno. Até porque essa “pequena política” pode ter uma vida ainda muito longa, rejuvenescendo-se com as novas conquistas econômicas e sociais nas democracias liberais. Não só nos países ricos, mas também nos emergentes. Quem poderia afirmar que o ideário político moderno está esgotado no Brasil, onde vivemos uma euforia de crescimento (econômico, pelo menos)?

A “grande política” que Nietzsche propunha é demasiado vaga. A menção aos filósofos legisladores, aos novos valores da aristocracia do futuro é utópica demais para os homens de nosso tempo, que têm à mão um projeto político mais eficaz para suas necessidades mais imediatas.


IHU On-Line - Que tipo de política se delineia para o futuro tomando em consideração o cenário atual de relativismo de valores? Podemos dizer que hoje há uma exacerbação niilista na política e na ética? Por quê?

Clademir Araldi -
É muito difícil fazer uma previsão sobre o futuro da política, na era da globalização. Experimentamos a morte das utopias (socialistas e capitalistas). Por um lado, cresce sempre mais a necessidade de estabelecer organizações globais (como a ONU, o FMI, a Conferência das Partes (COP16), o G20 ) para discutir os principais problemas econômicos, sociais e ecológicos que afetam a todos os países. Mas, por outro lado, ficamos sempre frustrados com os resultados insignificantes dessas organizações. A busca por resultados econômicos a curto tempo impede que se discutam as questões mais urgentes num cenário voltado para um futuro sustentável. Isso porque os valores que norteiam nossa sociedade são imediatistas, como disse. Se o mais importante é manter o padrão de consumo e as condições de satisfação dos interesses dos indivíduos de nossa sociedade, parece-me que não há nenhum cenário promissor para superar através da política o relativismo desses valores.
Partindo de Nietzsche, podemos afirmar que existe, sim, uma exacerbação do niilismo na política atual. Não que haja uma separação total entre ética e política. Mas são os valores morais decadentes, que regem a política contemporânea, os responsáveis pela radicalização do niilismo.

Enquanto houver um crescimento econômico sustentável, os atores contemporâneos poderão espantar o fantasma do niilismo para alguns recantos de sua existência. Mas basta uma ameaça de crise econômica ou ecológica global, que soam alarmes apocalípticos de um ataque niilista ao nosso exaurido planeta Terra. Mas não há soluções concretas e imediatas para o niilismo político contemporâneo, porque não há o desejo por um modo de vida e por valores novos, forte o bastante para superar esse hóspede inquietante de nossa ambiência global.


IHU On-Line - Em que aspectos a radicalização do niilismo é importante e inclusive desejável?

Clademir Araldi -
Segundo o pensamento nietzschiano dos extremos, radicalizar o niilismo é a única possibilidade para superá-lo. A dificuldade está em apreender o espírito de aniquilamento. Como nos mostrou enfaticamente Ernst Jünger, o niilismo impera numa esfera em que desaparecem as imagens e conceitos, com as quais nos movemos no mundo e damos sentido às coisas e à nossa existência. Por isso, Nietzsche tenta encurralar o fenômeno do niilismo na experiência moral dos valores. É terrível viver numa época sem valores, sentimentos e sentidos fixados num solo firme. Sentimo-nos inquietos e perturbados com a fugacidade e transitoriedade de nossa existência. Apesar de todos os esforços, parece que essa “doença mortal” está sempre a corroer os valores e os sentidos aos quais nos agarramos. E aqui se mostra a maestria do pensador Nietzsche. O niilismo, em sentido estrito, não é a causa da doença do homem moderno, mas é a consequência dos valores milenares da moral cristã. Se a moral cristã pretendia ser a única interpretação válida para a existência, o asceta solitário dos altos montes suíços nos dá uma receita bem amarga: essa interpretação já não tem mais efeito sobre a vida humana, cabe agora propor novos valores, sem a pretensão de que eles sejam eternos, verdadeiros e transcendentes. Assim, radicalizar o niilismo é entrar nos indesejáveis desertos esvaziados de sentido, com o desejo de encontrar algum oásis, através da vontade criadora do ser humano. De um novo homem, que iria além de seu mundo esgotado de valores e agora quer criar novos valores, virtudes, traços de caráter, mesmo que sejam finitos e transitórios. O grande problema (e talvez Nietzsche tenha calado sobre isso) é que isso não nos garante que o niilismo esteja superado definitivamente... Num sentido mais amplo, niilismo é o horror vacui, está alojado na natureza mais íntima da vontade humana. “O ser humano prefere querer o nada a não querer”, nos diz Nietzsche. Os efeitos do niilismo são indesejáveis, mas o nada que impera, no fundo e nos limites da existência humana, talvez seja ainda mais indesejável...


IHU On-Line - Qual seria o solo comum para o entendimento dos seres humanos numa sociedade com essas características niilistas?

Clademir Araldi -
O fenômeno do niilismo tem a grave consequência de nos retirar o solo comum, sobre o qual até um certo momento nos sentíamos bem e confortados. Ou seja, o solo firme da comunidade, da tradição, da religião, da cultura, com seus valores válidos e firmes. Não há como negar que isso deu sentido e felicidade para a vida humana. A perda desses referenciais gera um “desespero silencioso”, que se agrava e pode se expressar com violência. Basta ver o que Nietzsche diz de sua experiência de Freigeist (espírito livre), de sua andança pelos mundos estranhos e calados da solidão. Sem o solo firme dos espíritos vinculados à comunidade, o filósofo solitário se sentiu muito isolado e viveu a experiência terrível do esvaziamento niilista da vida. Mas nasceu o desejo por novos vínculos, por uma comunidade de espíritos livres, por discípulos e amigos, que pudessem apreciar as criações do solitário. O problema está em criar um novo solo comum, que seja o ponto de partida para o entendimento recíproco entre as pessoas.
Enquanto reinar o individualismo e o egocentrismo niilista em nossa sociedade, mais forte será a experiência da fragmentação e do relativismo dos valores. O que permite termos esperança de superar essas tendências niilistas é o desejo presente em quase todos os seres humanos de construir relações (amizades, amores, companheirismos) duradouras. Se percebemos ainda que esse mundo hipermoderno de competitivas e desumanas relações comerciais não nos traz realização e satisfação, então podemos esperar um futuro melhor para nossas vidas. E o mais importante, com essa percepção, é mobilizar nossas energias de vontade para a construção de novos valores, que não sejam apenas válidos para cada um. Mas é muito difícil pensar num solo comum para toda a sociedade, pois os indivíduos parecem ter desejos e interesses tão conflitantes. E se as próximas gerações não tiverem essa percepção, ou seja, se não tiverem consciência ou sentimento desses valores morais, antigos ou novos? Poderia o ser humano bastar-se, aquém da ética, com seu mundo individualizado de prazeres, desejos e bens de consumo? Seria precipitado oferecer respostas imediatas à altura desses questionamentos.


IHU On-Line - Que espaço tem a solidariedade e a ética no contexto do niilismo?

Clademir Araldi -
Fala-se muito hoje em “fim da solidariedade”. Nesse mundo virtual da cibercultura, tudo parece se dissolver num jogo interminável de conexões e desconexões. O terrível é que não são relações de fato (como compreendíamos ser a realidade de fato) entre pessoas, com uma identidade definida, com sua singularidade no desejar, no ser e no agir. São conexões e desconexões entre simulacros, imagens fragmentadas e fantasias que os humanos constroem de si mesmos, numa rede difusa, sem história e sem profundidade. Não faltam até mesmo ensaios de compreender a relação dinâmica das vontades de poder de Nietzsche num único ambiente de imanência que seria a cibercultura. Mas isso seria perder o principal da filosofia de Nietzsche: seu esforço ético de propiciar novas formas de existência, a partir do cultivo do espírito e de novas virtudes. E é justamente esse o problema de nosso tempo, da era da revolução digital em que apenas mergulhamos: é um mundo sem espírito, sem força interior própria. Nessa inflação de informações, nessa troca incessante de imagens e na proliferação de necessidades e satisfações fúteis o que vinga mesmo são formas de narcisismo e de exibicionismo de pouco ou nenhum valor.
Esse é um grande desafio para a ética nas próximas décadas. Até que ponto as próximas gerações estarão afetadas por esse individualismo? Elas terão vontade para construir relações solidárias, terão preocupação e responsabilidade com o outro, na singularidade de sua existência? Se a solidariedade desaparecer, o outro também sumirá, e restará apenas um agregado de indivíduos (que ainda chamamos de sociedade) com suas preocupações narcisistas, com responsabilidade apenas por si mesmos. O problema é que ele já não terá uma identidade determinada, mas lidará apenas com fragmentos do que se chamava de “si mesmo”. Certamente, Nietzsche não é o filósofo defensor desse egoísmo não ético. O valor moral da solidariedade pode ser reconhecido justamente no interior desse enorme perigo niilista, presente em nossa cultura contemporânea. Entretanto, novas práticas solidárias e novas formações éticas somente podem surgir com uma vontade enérgica para afrontar o fenômeno atual do niilismo. São tarefas humanas. Elas terão êxito? Esse é o caráter frágil, espantoso e promissor da existência humana, no tempo do niilismo...

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