Edição 351 | 22 Novembro 2010

Pedagogia para a autonomia dos povos latino-americanos

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Graziela Wolfart

Danilo Streck argumenta que os autores e as autoras do livro Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia compartilham a convicção de que a educação tem um papel importante para o desenvolvimento dos países da América Latina

No próximo dia 30-11-2010 todas as pessoas interessadas na área da Pedagogia estão convidadas a participar do evento Sala de Leitura promovido pelo IHU. Na ocasião, o professor Dr. Danilo R. Streck, do PPG em Educação da Unisinos apresentará o livro organizado por ele, intitulado Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia. Na entrevista que aceitou conceder por e-mail para a IHU On-Line, ele adianta os aspectos centrais da obra. E explica: “o livro tem o propósito de trazer para a nossa formação e reflexão pedagógicas um pouco da riqueza do pensamento sobre educação que existe na América Latina e que, em grande parte, é desconhecido ou então desconsiderado em detrimento de autores europeus”. Danilo ainda acrescenta que “o grande tema é a recuperação de memória construída em séculos de resistência ao colonizador e a busca de uma educação que favoreça a autonomia das nações e dos povos da América Latina”. Para Danilo, “a secular colonialidade que também se verifica na educação só será superada se formos capazes de pensar a nós mesmos e nossas práticas como sendo historicamente situadas e condicionadas e, ao mesmo tempo, tomando consciência das lutas, das buscas e dos projetos das gerações que nos antecederam”.

Streck é mestre em Educação Teológica, pelo Princeton Theological Seminary. É doutor em Fundamentos Filosóficos da Educação, pela Universidade do Estado de Nova Jersey (EUA), com a tese John Dewey and Paulo Freire view of the educational function of education, with special emphasis on the problem of method (A visão de John Dewey e Paulo Freire da função educacional da educação, com ênfase especial no problema do método). Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos. Além da obra a ser apresentada semana que vem, Streck é autor, entre outros, de Rousseau e educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2004), Correntes pedagógicas: uma abordagem interdisciplinar (Petrópolis: Vozes, 2005) e Erziehung für einen neuen Gesellschaftsvertrag (Siegen: Athena, 2006). É um dos organizadores de Pesquisa participante: a partilha do saber (Aparecida: Ideias & Letras, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais as ideias centrais da obra Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia?

Danilo Streck - O livro tem o propósito de trazer para a nossa formação e reflexão pedagógicas um pouco da riqueza do pensamento sobre educação que existe na América Latina e que, em grande parte, é desconhecido ou então desconsiderado em detrimento de autores europeus. Pode-se dizer que o grande tema é a recuperação de memória construída em séculos de resistência ao colonizador e a busca de uma educação que favoreça a autonomia das nações e dos povos da América Latina.

IHU On-Line - Como se deu o processo de seleção dos 26 autores? Por que considera que os pensadores escolhidos marcaram a educação na América Latina e no Caribe?

Danilo Streck - Na apresentação do livro eu digo que cada autor selecionado vai trazer à memória muitos outros. Isso certamente significa uma limitação do trabalho, mas também pode representar a oportunidade de recriarmos a nossa tradição pedagógica, trazendo para as discussões pessoas que ousaram pensar a educação a partir de nossa realidade. Faz muito bem, por exemplo, ouvir Simón Rodríguez, o mestre de Simón Bolívar , alertar que “ou inventamos ou erramos.” Erramos muito, especialmente em educação, pela imitação acrítica de modelos importados. A seleção dos textos tem como viés político as lutas pela emancipação no campo pedagógico. Isso não significa que não haja diferenças e divergências nas propostas apresentadas, mas todas elas se inserem nessa mesma busca. Para mencionar um exemplo, enquanto o argentino Sarmiento vê a América Latina como campo de luta entre civilização e barbárie, o cubano José Martí  localiza o problema entre uma falsa erudição e a natureza que somos. Essas compreensões têm evidentes reflexos na educação.

IHU On-Line - Em que sentido aparece na visão dos pensadores escolhidos a busca pela emancipação do povo através da educação?

Danilo Streck - Procurou-se, na seleção de autores e textos, escutar vozes diferentes, muitas vezes silenciadas. É o caso das mulheres que aqui aparecem representadas por figuras como Nísia Floresta , Maria Lacerda de Moura  e Gabriela Mistral . Ou então a voz dos negros que escutamos através de Manoel Bomfim e Frantz Fanon . Tem também a voz do revolucionário Che Guevara  para quem a universidade latino-americana deveria se pintar de negro, de mulato, de operário e camponês. Ou do monsenhor Romero  que, em suas homilias, pregava que a educação deveria criar condições para formar pessoas autônomas, protagonistas da transformação da sociedade em que vivem. Os autores e as autoras compartilham a convicção de que a educação tem um papel importante para o desenvolvimento dos países da América Latina, mas não a veem como instrumento mágico. Ela é uma das condições necessárias, mas deverá ser sempre pensada no contexto de projetos de sociedade e no entendimento do “ser mais” humano a que Paulo Freire se refere. A meu ver, os colegas que colaboraram na apresentação e seleção de textos tiveram a preocupação de situar o pensamento pedagógico num contexto mais amplo da obra e das concepções do autor e da autora.

IHU On-Line - Em que medida a obra pode oferecer uma base sólida para a práxis pedagógica na América Latina?

Danilo Streck - Não se pode esperar que qualquer obra ofereça, por si, uma base sólida para a práxis pedagógica na América Latina ou em qualquer outra parte do planeta. Diria mais modestamente que a intenção é ajudar a criar ou fortalecer uma base ou, se quisermos, uma espinha dorsal para a nossa práxis. Não se trata também de promover uma espécie de xenofobia pedagógica, negando as boas e necessárias contribuições que vêm de fora. Acredito, no entanto, que a secular colonialidade que também se verifica na educação só será superada se formos capazes de pensar a nós mesmos e nossas práticas como sendo historicamente situadas e condicionadas e, ao mesmo tempo, tomando consciência das lutas, das buscas e dos projetos das gerações que nos antecederam.

IHU On-Line - Qual o verdadeiro papel e importância de Paulo Freire para a pedagogia latino-americana?

Danilo Streck - A obra de Paulo Freire  aparece na antologia como representando a consolidação de uma forma de pensar e de praticar a educação. A repercussão em outros continentes tem a ver com uma radicalidade que se firma na realidade concreta de um povo que busca mudar a sua vida. No texto reproduzido na antologia, inédito em língua portuguesa, ele discute a questão da liberdade cultural na América Latina e denuncia a cultura do silêncio promovida pela colonização e por posteriores formas de dominação. Para que haja desenvolvimento, o locus de decisão para a transformação deveria estar dentro e não fora de um ser, no caso, da sociedade. É um texto escrito em 1970, quando se criticava a modernização como transferência de modelos, de instrumentos, de técnicas e formas de vida. Enquanto “fonte”, creio que o texto é relevante para nos posicionarmos no contexto do neotecnicismo que vemos na educação, hoje. Dito de outra forma, os textos não foram selecionados com a presunção de serem atuais hoje, mas porque testemunham o envolvimento de pessoas com temas e problemas de seu tempo e que podem nos ajudar a enfrentar os problemas de nosso tempo.

IHU On-Line - Qual a especificidade da contribuição dos povos guarani, dos zapatistas e dos povos da Floresta na Amazônia para o conceito de educação que temos hoje?

Danilo Streck - O livro inicia com “a educação dos guarani  pelos guarani”, com apresentação do Pe. Bartomeu Meliá , e termina com a “educação rebelde e autônoma” dos zapatistas . É uma lembrança de que a educação nessa terra não iniciou com a vinda dos colonizadores e que, apesar do conhecido massacre físico e cultural, é nessas culturas originárias que hoje, paradoxalmente, se encontram sinais de saída para o que alguns pensadores qualificam como crise civilizacional. Da mesma forma, ao olhar o mapa da América Latina, a Amazônia aparece como apenas uma área coberta de matas (e cada vez mais de pastagens e plantações) e como um enorme vazio cultural e pedagógico. A intenção foi de sinalizar que na mata e na beira dos rios houve e há pessoas e povos que aprendem e que ensinam, e que faríamos bem em conhecer e integrar estes saberes em nossa práxis pedagógica.

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