Edição 349 | 01 Novembro 2010

IHU Repórter

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Patrícia Fachin

Capixaba de nascimento e filha de uma gaúcha e um catarinense, a psicóloga Débora B. Bauermann vive no Rio Grande do Sul há 13 anos e, há sete, trabalha na universidade. Logo após iniciar a graduação em Psicologia, em 2001, Débora começou a participar do Programa Gestando o Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo – Gdirec, juntamente com a professora Adevanir Aparecida Pinheiro e o Pe. José Ivo Follmann, desenvolvendo atividades e serviços que proporcionam condições e espaços de diálogo entre as múltiplas crenças religiosas presentes na região. E hoje atua no Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – Neabi, que desenvolve projetos com a temática da educação das relações étnico-raciais. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, Débora conta sua trajetória na universidade e propõe reflexões sobre temas como o racismo, o qual ainda não foi superado pela sociedade brasileira. Confira.
Débora (a última à direita) com o Grupo de Cidadania e Cultura Religiosa Afrodescendente

Origens – Sou capixaba. Nasci no Espírito Santo, mas moro no Rio Grande do Sul há 13 anos. Minha mãe chama-se Zair e é gaúcha, e meu pai chama-se Wili e é catarinense. Eles se conheceram em São Leopoldo, quando meu pai estudava Teologia, e mudaram para o Espírito Santo quando ele precisou fazer o estágio do curso. Nesta época, minha mãe já havia concluído o curso em Pedagogia. Eles sempre foram engajados com os movimentos sociais, com o PT e minha mãe com o cooperativismo e economia solidária.  Envolvendo-se com a militância, meu pai desistiu do estágio e resolveu ser metalúrgico. Ele concluiu o curso há cinco anos e hoje é pastor da IECLB.

Sou a filha do meio. Tenho um irmão com 29 anos, o Fabrício, que é professor de Educação Física no município e é casado com a Emilie; eu tenho 27; e a irmã mais nova, Aline, que estuda Educação Física na Unisinos, tem 23 anos. Nasci em Vitória, mas parte da infância vivi em Manguinhos, em um balneário de pescadores, vivendo mais próximo da natureza, da praia. Estranhei o clima do Sul. Passam os anos e acho que não vou me adaptar ao frio, prefiro o calor.

Vivi lá até os 14 anos, quando meus pais se separaram. Em função disso, minha mãe decidiu retornar para o Rio Grande do Sul porque toda a família dela morava neste estado. Desde então, moro em São Leopoldo com minha mãe, minha irmã e minha avó materna.


Estudos –
Estudei no Colégio São Luis. Minha mãe desenvolvia trabalhos sociais na instituição e minha irmã e eu ganhávamos bolsa parcial para estudar. Prestei vestibular com 17 anos e ingressei no curso de Psicologia da Unisinos, em 2001.


Trajetória na universidade –
Como eu não tinha condições de pagar o curso, durante um bom tempo cursava uma ou duas disciplinas por semestre. No segundo ano, conheci a professora Adevanir Pinheiro (Deva, como a chamamos). Comecei a trabalhar com a pesquisa que ela e padre José Ivo Follmann coordenavam. Transcrevia questionários da pesquisa sobre o mundo das religiões . Assim, comecei a me inserir no projeto, passei a ser estagiária e a fazer cadastramento dos locais de cultos religiosos, fazendo algumas entrevistas com lideranças religiosas. Depois fui bolsista de iniciação científica do Pe. José Ivo, numa pesquisa ligada ao PPG de Ciências Sociais, intitulada Contribuições das Grandes Religiões para uma Fundamentação Ética e Orientação das Políticas Socias no Mundo Contemporâneo. Neste período já participava das reuniões do Grupo Inter-Religioso de Diálogo , ao qual sou muito grata a cada um dos líderes religiosos que compõem o grupo pelos aprendizados que tive junto a eles. Acompanho também, desde a origem, juntamente com a profa. Deva, o Grupo de Cidadania e Cultura Religiosa Afrodescendente na universidade, que é um grupo de convivência aberto à comunidade externa, onde compartilhamos histórias de vida e também estudamos a respeito das relações étnico-racias, buscando a valorização da identidade negra.

Concluí o curso em janeiro e fico avaliando minha trajetória na universidade, a qual diz muito do que eu sou hoje enquanto pessoa e profissional.
Acho que seria importante os estudantes terem a vivência de estágio nos projetos sociais da universidade. A experiência que eu tive de participar de projetos sociais na unisinos, me deu outra perspectiva profissional. Principalmente porque na psicologia trabalhamos pouco com esses dois temas que nos atravessam enquanto sujeitos e nos subjetivam: a dimensão da religiosidade e a dimensão étnico-racial. Vejo que ainda é um tabu falar desses dois temas na academia – embora alguns aspectos já tenham sido superados.

A questão racial foi tema do meu trabalho de conclusão, a partir da vivência que tive junto ao Grupo de Cidadania Afro. Pesquisei como os psicólogos percebem as relações étnicorraciais no cotidiano do trabalho e também as suas experiências enquanto brancos. O branco pouco se coloca no debate do racismo. Enquanto negarmos sua existência, será impossível iniciar um diálogo e produzir mudanças nessa situação.


Racismo - Fui educada em um ambiente em que todos se diziam abertos para questões sociais e étnicorraciais e, de fato, sempre me vi assim. Mas quando comecei a participar do grupo de cidadania afro, que realiza encontros todas as sextas-feiras, na universidade, fui me dando conta da minha identidade. Percebi como esses preconceitos fazem parte da nossa sociedade, fazem parte da gente, ainda que inconscientemente.
Às vezes, achamos que o racismo irá se manifestar de uma forma clara: gosto ou não gosto de negros. A questão está além disso. Temos de conseguir perceber a situação de uma forma macro, considerando questões políticas e econômicas e, a partir disso, compreender a situação dos negros e brancos na sociedade. Quantos negros existem na universidade? Temos de nos questionar sobre as coisas que estão naturalizadas. Não perceber a presença/ausência do negro em alguns setores sociais é uma forma de negar a sua existência e legitimar o mito da democracia racial.


Religião –
Quando iniciei as atividades no programa de diálogo inter-religioso, disse para a professora Deva que eu não tinha religião, pois pensei que teria que ter uma identidade religiosa pra trabalhar no projeto, mas sempre fui bem acolhida como “sem religião”. Mesmo sem ter uma religião naquele período, sempre busquei ter uma espiritualidade, que pra mim sempre esteve voltada para o contato com a natureza e para uma prática ética e de respeito à vida em todas as suas manifestações, independente de denominação religiosa.
No Grupo Inter-religioso de Diálogo, tive a oportunidade de conhecer várias religiões e, aos poucos, fui me identificando com algumas. Conheci o Santo Daime , uma religião que logo de início me encantou por sua simplicidade e por ser uma doutrina musical. Aos poucos fui me aproximando e conhecendo mais e hoje é a religião que pratico.


Lazer – Gosto de cinema e de dançar. Nos momentos de lazer gosto de encontrar os amigos, viajar e estar próximo à natureza, próximo ao mar.


Planos – Eu e mais sete colegas psicólogos estamos abrindo uma clínica em Sapucaia do Sul, cidade da região metropolitana de Porto Alegre-RS. Estamos com esta perspectiva de trabalho paralelo com outros trabalhos. Pensamos em fazer uma abordagem mais aberta, trabalhar com atendimentos individuais, com Acompanhamento Terapêutico (AT), com grupos e em parceria com as escolas e outras instituições. Nosso desejo é que se constitua também como um espaço cultural, com oficinas, saraus, discussão de filmes, dentre outras atividades.


Sonhos – Um dos meus sonhos já está concretizado na universidade: o trabalho com a educação das relações étnicorraciais. Desejo que esse projeto continue crescendo e tendo mais engajamento da comunidade externa e acadêmica para que um dia consigamos ver a universidade mais colorida e condizente com a realidade brasileira onde pratcamente a metade da população é negra.


Livro - Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso.


Autor -
 Clarice Lispector.


Filme -
 Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman.


Unisinos – A universidade passou por uma crise financeira e hoje percebo que está se resgatando os valores da missão jesuíta e a importância dos projetos sociais. Vejo essa interface da universidade com a comunidade como uma riqueza e, no momento em que essa relação for ampliada, a universidade tende a crescer e ser um espaço ainda mais rico.


IHU –
Vejo o IHU como um microcosmo da universidade; é um polo irradiador de novas idéias. Mesmo trabalhando na universidade, não consigo acompanhar todas as atividades, de tão intensas que são. O IHU Idéias sempre discute temas diferentes e a revista tem uma produção semanal, isso mostra que o IHU repercute temas de ponta. O Instituto poderia ficar ainda mais rico se fosse possível estabelecer uma relação maior com os projetos sociais.

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