Edição 349 | 01 Novembro 2010

A evolução como elemento central do espiritismo

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Graziela Wolfart

Na visão de Luiz Carlos Susin, algumas teses centrais do espiritismo são uma releitura de crenças pré-cristãs, muito arcaicas na área indo-europeia de cultura religiosa, como a crença nas reencarnações

“Há uma assimilação, um certo sincretismo, entre elementos modernos, elementos cristãos e elementos pré-cristãos”, afirma o professor Luiz Carlos Susin, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Ao relacionar a teoria da reencarnação com a teoria da ressurreição, Susin defende que “ambas afirmam que esta vida presente não é tudo e que a morte não é o fim de tudo. Mas a semelhança termina nisso, embora seja um ponto inicial muito importante”. E explica: “a reencarnação supõe a teoria do carma, do autoaperfeiçoamento, mas também da independência entre espírito e corpo, de caráter dualista. A ressurreição, ao contrário, não é dada por mérito, mas por graça, é iniciativa divina, fidelidade no processo criador de Deus, e supõe uma antropologia que tem na corporeidade o eixo da condição humana”.

Luiz Carlos Susin é frei capuchinho, mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – Estef, em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, dentre as quais citamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Considerando que a doutrina espírita tem muitos elementos cristãos, que relação podemos estabelecer entre o cristianismo e o espiritismo?

Luiz Carlos Susin - De fato, há muitos elementos em comum. No entanto, algumas teses centrais do espiritismo são uma releitura de crenças pré-cristãs, muito arcaicas na área indo-europeia de cultura religiosa, como a crença nas reencarnações. É necessário levar em conta a história das origens do espiritismo moderno. O seu fundador, Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, foi um filósofo e educador formado numa corrente pedagógica chamada “Escola de Pestalozzi”. Ele foi aluno de Pestalozzi  e escreveu sobre educação para a autonomia dos indivíduos mediante o exercício da razão. A razão e a ciência seriam sua bandeira também para incentivar a espiritualidade num tempo em que a ciência parecia derivar para o materialismo. O século XIX, seu século de vida, foi marcado pelo otimismo na área das ciências influenciadas pela teoria do evolucionismo e na área da técnica que criou o “mito do progresso”. Por isso, a ideia de “evolução” e de progresso humano e espiritual marcou para sempre as crenças espíritas. Mas tudo isso se dá em um ambiente cristão, onde a pessoa de Jesus e os evangelhos, mesmo na luta contra o autoritarismo da Igreja, continuam sendo referência fundamental. Há, pois, uma assimilação, um certo sincretismo, entre elementos modernos, elementos cristãos e elementos pré-cristãos.

IHU On-Line - Como podemos relacionar a teoria da reencarnação com a teoria da ressurreição?

Luiz Carlos Susin - Ambas afirmam que esta vida presente não é tudo e que a morte não é o fim de tudo. Mas a semelhança termina nisso, embora seja um ponto inicial muito importante. A reencarnação supõe a teoria do carma, do autoaperfeiçoamento, mas também da independência entre espírito e corpo, de caráter dualista. A ressurreição, ao contrário, não é dada por mérito, mas por graça, é iniciativa divina, fidelidade no processo criador de Deus, e supõe uma antropologia que tem na corporeidade o eixo da condição humana. Por isso a ressurreição significa que o mais importante não é a imortalidade da alma – seria muito pouco ou praticamente nada, porque seria a “imortalidade daquilo que não foi vivido”, segundo uma expressão do grande teólogo evangélico Jürgen Moltmann. É que nossas experiências humanas são vividas na carne, no corpo, na fragilidade, e é esta realidade frágil e efêmera, a nossa vida real, de carne e osso, que clama por salvação. Portanto, a ressurreição é uma forma de crer na unidade inseparável de corpo e espírito em que “a alma é a vida do corpo”, parafraseando Aristóteles e Tomás de Aquino: “a alma é a forma do corpo”. A ressurreição é a transfiguração da condição corporal do ser humano cuja alma é a sua relação com o seu Criador e Salvador.

IHU On-Line - A teoria da reencarnação não pode ser considerada determinista, no sentido de que nascemos já com uma alma com características prontas?

Luiz Carlos Susin - A teoria completa não é propriamente determinista, mas leva em conta doses de determinações, justamente o que acontece com as leis do “carma”. Pode-se definir o carma como “causa” ou como “ação causal”, ou simplesmente “ação” no sentido pleno da palavra: toda ação tem efeitos, é causa de algo. Esses efeitos podem ser passageiros, dispersos, mas há sempre uma camada mais profunda de efeito que se torna mais “estável”, que ganha determinação, torna-se uma realidade solidificada. Nisso consiste a formação de um carma. Costumo comparar, em termos de experiência, ao efeito de uma ofensa grave, que se torna uma mágoa persistente, como se fosse um punho fechado no fundo do peito, aparentemente mais forte do que a vontade de superar ou de esquecer. Mas toda ascese, toda disciplina, nesse caso, é agir para desfazer a dureza e os efeitos do carma através de ações contrárias, boas. Os orientais diriam que se pode e se deve seguir o caminho do “dharma” cumprindo os ensinamentos. A bondade, a caridade, etc. abrem espaço de superação e criam liberdade em relação ao determinismo criado pelo carma. Mas isso pode durar muitas vidas, segundo a crença reencarnacionista. Uma única vida não daria conta do que já somos ao nascer e nem do que somos ao morrer. A evolução até ser um “espírito de luz” exigiria, então, com toda coerência doutrinária, sucessivas reencarnações.

IHU On-Line - Por que o senhor acredita que a falta de uma antropologia bíblica no espiritismo seja algo que faz uma grande diferença em relação ao cristianismo?

Luiz Carlos Susin - O próprio cristianismo, ao adotar a linguagem e a razão gregas, obscureceu a antropologia, a experiência humana, que está na base do Novo Testamento. O fundador do espiritismo conheceu um cristianismo do século XIX, que não via com realismo a carne humana como expressão de nossa fragilidade corporal a clamar pela salvação gratuita e fiel do Criador. O cristianismo do século XIX estava envolvido com a ressurreição apenas como um exemplo ou uma forma de afirmar a imortalidade e dava ênfase na imortalidade e na salvação da alma, já que o corpo apenas embarcaria de carona no final dos tempos. Além disso, o cristianismo também estava atolado na meritocracia da salvação: portanto, de certa forma, a salvação dependeria de nossos méritos, sendo Deus apenas um juiz que sentenciaria se nós nos salvamos ou nos perdemos por nossos méritos, por nossas ações. Nisso, infelizmente, houve muito em comum e marcou também o espiritismo. É o que nós chamamos de “dualismo”, de tradição mais grega do que bíblica. Há um esforço, por parte da teologia cristã, no século XX, de retorno à antropologia bíblica, ou seja, semítica de origem. Mas não teve ainda a repercussão e as consequências necessárias. E o espiritismo, a meu ver, está fixado nesse dualismo que, a partir da física quântica, ganhou novas versões, mais suavizadas, mas continua persistindo.

IHU On-Line - Que semelhanças podem ser apontadas nas práticas de caridade espírita e católica, por exemplo?

Luiz Carlos Susin - Em ambas pode-se praticar a caridade por interesse próprio, para garantir méritos e ganhar o céu, ou para garantir a evolução do espírito e merecer uma reencarnação ou um plano superior de vida. O interesse egocêntrico pode se instalar até inadvertidamente no fundo de ações generosas, sejamos cristãos ou espíritas ou de qualquer outra tradição religiosa. O “mercado” de ações, a bolsa de valores, da área religiosa está muito presente no atual neopentecostalismo de forma tão descarada que dinheiro virou sacramento e sucesso mundano virou bênção. A imagem de Deus que está atrás disso é uma blasfêmia e um insulto ao evangelho. Mas, em situações mais normais, quando se pratica o bem, a misericórdia e o amor ao próximo, não se pode medir o quanto há de interesse em ganhar algo em retribuição ou o quanto há de real gratuidade a fundo perdido, como ensinam os evangelhos. Objetivamente, no entanto, é realmente perigoso ter uma mentalidade de “causa e efeito”, sobretudo na área ética, porque não só o bem é facilmente manipulado pelo interesse, mas a doença ou a deficiência, ou a pobreza, começam a ser vistas como viam os opositores de Jesus: como uma culpa, efeito de um ato mau em algum momento desta ou de outras vidas. Como os opositores de Jesus não acreditavam em reencarnações, atribuíam um problema de nascimento, como o caso do cego de nascença, a uma culpa dos antepassados. Isso é objetivamente injusto.

IHU On-Line - Qual a importância da evolução espiritual individual pregada pela doutrina espírita? Como conceituar, sob o viés da cosmovisão espírita, os conceitos de bem, justiça e caridade?

Luiz Carlos Susin - A palavra “evolução”, tomada do fascínio que ela exercia no século XIX, é central para o espiritismo. Trata-se de uma via democrática e individual, uma experiência condizente com a modernidade. Mas os laços de solidariedade e de comunidade ficam garantidos pela necessidade de justiça e de caridade para esta evolução. Ninguém evolui sozinho. Em contraste com a teoria arcaica de reencarnação, que pode ainda ser constatada entre os hindus, na evolução não se regride, há um otimismo próprio do século XIX. O século XX foi marcado pelas grandes guerras, pelo Holocausto, pelo pessimismo em relação a uma tremenda regressão ou involução humana, e não sustenta mais todo aquele otimismo em que nasceu o espiritismo. O conceito de justiça, seguindo a lei do carma, é fortemente calcado na “equidade”, ou seja, na igualdade e proporção entre a causa e o efeito, entre o que se faz e o que se paga ou se merece. Não há – e isto é o lado mais problemático para a sensibilidade evangélica – nada de perdão: o que aqui se faz, aqui se paga. No perdão há uma experiência de gratuidade, de graça absolutamente imerecida, sem lógica de causa e efeito. Pelo contrário, o perdão é a graça que rompe a cadeia cármica de causa e efeito. É uma nova criação ex nihilo, do nada. É um ato de liberdade que desarranja a lógica de merecimentos. Há espíritas que argumentam que nisso está o relaxamento do esforço por merecer e por evoluir. Mas há parábolas de Jesus que mostram o seguinte: quem experimentou realmente o perdão torna-se ainda mais generoso em perdoar e em agir bem por pura graça.

IHU On-Line - Para os católicos, praticar o bem não é condição para a salvação da alma?

Luiz Carlos Susin - Pode-se dizer ainda com mais ênfase o contrário: praticar o mal é causa de perdição da própria vida, é aumentar a dor e o extravio ainda nesta vida, nem precisa morrer para sentir isso. Mas a prática do bem, na prioridade da pura graça e do dom generoso de Deus, que faz chover também na roça dos maus, não é uma condição, algo prévio à salvação. É uma consequência da experiência de estarmos confiantes na salvação já doada em abundância. O bem que praticamos não é para ganhar algo, é para difundir o que já ganhamos.

IHU On-Line - Que comparação podemos estabelecer entre a “lei do carma” e a constatação e a expressão de São Paulo na carta aos romanos, “corpo de pecado”, do qual ele diz que é Cristo que o liberta, não as suas obras?

Luiz Carlos Susin - De fato, Paulo examina as contradições de sua vida na prática da lei e da moral: vê o bem e quer praticá-lo, mas acaba praticando o mal que não quer, como se nele houvesse duas vontades, uma luta com a resistência de seus “membros”, um corpo que não obedece a sua melhor vontade. Nesse corpo, nós podemos ver algo da doutrina do carma: um velho corpo habituado de tal forma a práticas viciadas que resiste ao bem. Paulo não vê a solução em algumas centenas ou milhares de reencarnações para finalmente se libertar deste peso em seu corpo: Cristo já é sua liberdade, de tal forma que, mesmo sentindo os “espinhos da carne”, seus condicionamentos ruins ou suas imaturidades resistentes – diríamos hoje com a psicologia – Paulo já celebra sua salvação pelo amor de Cristo. Por isso, pode praticar o bem não tanto porque se pensa bom, mas “apesar” de suas experiências de ser ainda mau. Esta é, apesar de tudo o que há de mal em nós, a liberdade dos filhos e filhas de Deus.

Leia mais...

>> Luiz Carlos Susin já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.

* Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa. Publicada na IHU On-Line número 320, de 21-12-2009;
* A mudança de eixo da humanidade. O III Fórum Mundial Teologia e Libertação. Publicada em 28-1-2009;
* Teologia da Libertação após Aparecida volta ao fundamento? Publicada em 8-6-2008;
* Segundo Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Entrevista publicada em 9-2-2007;
* Jon Sobrino e a Notificação do Vaticano. Depoimento de Luiz Carlos Susin, publicado em 15-03-2007. 

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