Edição 349 | 01 Novembro 2010

''O espiritismo se vê como uma religião cristã''

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Graziela Wolfart

Maria Laura Viveiros de Castro identifica que o espiritismo é um elemento importante no sincretismo brasileiro e pode ser visto como uma religião mediadora entre o catolicismo e a umbanda

Na opinião da antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro, o espiritismo é ainda pouco estudado diante da importância de sua presença na nossa sociedade. “Trata-se de uma religião discreta, não proselitista, mas muito marcante na sociedade brasileira, até por conta de sua proximidade, ou melhor, fluência de fronteiras, entre muitos ambientes católicos e mesmo umbandistas”. Na entrevista que aceitou conceder por e-mail para a IHU On-Line, ela defende que a relevância da noção de livre-arbítrio nessa religião, a valorização do estudo, as características muito próprias da experiência da mediunidade, tornam o espiritismo “uma religião capaz de produzir valores próprios e dar sentido à experiência de amplos segmentos das camadas urbanas no Brasil”. E acrescenta: “para os espíritas, todos somos médiuns. Porque somos humanos e humanos são, por definição, espíritos encarnados que se comunicam querendo ou não, sabendo ou não, aceitando ou não, com os espíritos desencarnados. A mediunidade ocorre assim no cotidiano, em todos os ambientes para os espíritas porque esse mundo terreno em que vivemos é apenas o mundo visível, englobado sempre pelo mundo invisível com o qual se comunica todo o tempo, seja pela mediunidade, seja pelas encarnações e desencarnações. Tornar-se espírita é, de certa forma, aceitar esses primados e praticar as diferentes formas da comunicação mediúnica dentro de uma rede de relações espírita e articulada através dos centros e lares espíritas”.

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti é professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Participa da coordenação do Laboratório de Análise Simbólica e coordena o Núcleo de Estudos Ritual, Etnografia e Sociabilidades Urbanas. Licenciada em História pela PUC-Rio, é mestre e doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. É autora de, entre outros, O mundo invisível. Cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo (Rio de Janeiro: Zahar, 1983).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a relação da doutrina espírita com a produção de experiências e valores próprios?

Maria Laura Viveiros de Castro - Meu livro foi escrito no começo dos anos 1980. Até então, o espiritismo era enfocado, sobretudo, como um dos contribuintes para o sincretismo brasileiro do catolicismo e das religiões da tradição afro-brasileira. Creio que minha pesquisa foi a primeira a defender a ideia de que o espiritismo kardecista era uma religião por si mesma e que estudou a sua cosmologia e seu sistema ritual característicos. É verdade que o espiritismo é um elemento importante no sincretismo brasileiro e pode ser mesmo visto como uma religião mediadora entre o catolicismo e a umbanda em especial. Mas é importante também perceber que é um sistema religioso, internamente articulado e bastante consistente e complexo do ponto de vista simbólico. A relevância da noção de livre-arbítrio nessa religião, a valorização do estudo, as características muito próprias da experiência da mediunidade, tudo isso torna o espiritismo uma religião capaz de produzir valores próprios e dar sentido à experiência de amplos segmentos das camadas urbanas no Brasil.

IHU On-Line - Como a senhora define as noções chaves da cosmologia espírita - evolução, carma e reencarnação?

Maria Laura Viveiros de Castro - Eu as estudei em profundidade no meu livro (O mundo invisível). Essas noções são os pilares da visão de mundo espírita na perspectiva de uma temporalidade diacrônica, ou seja, se pensarmos o mundo como um devir, um processo que caminha no tempo no qual os espíritos existem. No caso do espiritismo, esse caminho no tempo, rege a vida dos espíritos que é vista, através das sucessivas encarnações, como um progresso numa evolução linear e sempre do mais imperfeito e incompleto rumo ao mais perfeito, superior e completo. O carma integra esse conjunto, trazendo a marca das formas da atuação de um espírito por essa trajetória cósmica em outras encarnações para cada nova encarnação. É um sistema de pensamento complexo, pois, se o carma é uma forma do determinismo, a cada nova encarnação o espírito ao reencarnar poderá também exercer novamente seu livre-arbítrio que assim iria também evoluindo e tornando-se mais forte.

IHU On-Line - Qual a importância, dentro do espiritismo, da questão do estudo?

Maria Laura Viveiros de Castro - O espiritismo é uma religião letrada que tem a escrita e a leitura como atividades centrais. Tanto a escrita mediúnica, a psicografia, como a escrita propriamente humana tem espaço importante nessa prática religiosa e o estudo é muito valorizado por conta da relevância do valor do livre-arbítrio e da responsabilidade individual. As sessões de estudo integram, assim, a prática ritual do espiritismo como um todo. E o incentivo à leitura, às indagações, à curiosidade e mesmo à imaginação torna o espiritismo uma religião muito atraente para as camadas médias urbanas.

IHU On-Line - Como podemos entender a perspectiva da caridade dentro da doutrina espírita?

Maria Laura Viveiros de Castro - Junto com a mediunidade e com o estudo, a caridade é o outro componente característico do sistema ritual espírita. Ela aproxima todos os espíritos encarnados pela ideia da imperfeição - somos sempre os rotos ajudando os esfarrapados, me dizia uma das minhas interlocutoras durante uma das pesquisas que realizei. Toda caridade tem, contudo, um elemento hierárquico; quem ajuda é, de alguma forma, superior a quem é ajudado. Isso porque a ideia da evolução perpassa tudo na doutrina espírita e há sempre superiores e inferiores se encontrando numa mesma encarnação ao longo da trajetória cósmica de cada um. Isso não quer dizer que a prática concreta da caridade não possa ser muito efetiva do ponto de vista social. É também uma doação de si do ponto de vista de quem ajuda.

IHU On-Line - Como se dá o processo da descoberta da mediunidade? Quais as características de um médium?

Maria Laura Viveiros de Castro - Para os espíritas, todos somos médiuns. Porque somos humanos e humanos são, por definição, espíritos encarnados que se comunicam querendo ou não, sabendo ou não, aceitando ou não, com os espíritos desencarnados. A mediunidade ocorre assim no cotidiano, em todos os ambientes para os espíritas porque esse mundo terreno em que vivemos é apenas o mundo visível, englobado sempre pelo mundo invisível com o qual se comunica todo o tempo, seja pela mediunidade, seja pelas encarnações e desencarnações. Tornar-se espírita é, de certa forma, aceitar esses primados e praticar as diferentes formas da comunicação mediúnica dentro de uma rede de relações espírita e articulada através dos centros e lares espíritas.

IHU On-Line - Como compreender a dinâmica de relacionamento entre os homens e os espíritos a partir da discussão da noção da pessoa nessa religião?

Maria Laura Viveiros de Castro - A pergunta é chave. A noção da pessoa é um conceito central na antropologia e estabelece uma base comparativa ampla para a antropologia das religiões. Escrevi mais recentemente um artigo Vida e Morte no espiritismo kardecista que enfocou bem essa questão. Para exemplificar brevemente: No eixo diacrônico que considera toda a evolução cósmica de um espírito através das suas sucessivas encarnações, nesta minha encarnação agora eu sou apenas um "eu menor", pois o meu "eu maior" é essa outra identidade mais ampla. Há assim, dentro de cada espírito individual, uma heterogeneidade interna, pois sempre somos mais do que podemos saber e conhecer nesta vida. No eixo sincrônico que considera a comunicação desse eu menor com os outros espíritos desencarnados nesta encarnação de agora, eu nunca estou segura de que uma ideia, pensamento ou mesmo atitude seja exatamente minha, ou seja, influenciada pela comunicação espiritual. Esses “não eu”, que são os outros espíritos, de alguma forma, participam então decisivamente do meu “eu” ao longo da minha vida. A noção da pessoa é aqui fundamentalmente relacional, incompleta, processual. É um ponto bastante interessante.

IHU On-Line - Que visão antropológica podemos estabelecer do espiritismo?

Maria Laura Viveiros de Castro - O espiritismo é ainda pouco estudado diante da importância de sua presença na nossa sociedade. Trata-se de uma religião discreta, não proselitista, mas muito marcante na sociedade brasileira, até por conta de sua proximidade, ou melhor, fluência de fronteiras, entre muitos ambientes católicos e mesmo umbandistas.

IHU On-Line - Em que sentido o espiritismo pode ser apontado como um elemento de mediação entre a tradição católica e as religiões afro-brasileiras?

Maria Laura Viveiros de Castro - Voltando a esse ponto, algumas ideias católicas, como as de santidade, podem ser aproximadas do universo espírita, também a de purgatório me parece muito próxima dos diferentes mundos invisíveis habitados e povoados por nossos seres queridos que já se foram e com quem podemos, no espiritismo, a continuar a nos comunicar. É importante lembrar que o espiritismo se vê como uma religião cristã. Com relação às tradições afro-brasileiras, a experiência da mediunidade, isto é, da comunicação com seres espirituais, é o elemento central de conexão. Muito embora no espiritismo a ideia da possessão não seja valorizada como forma de comunicação espiritual, por conta do valor livre-arbítrio, a possessão no espiritismo ganha a forma da obsessão e é uma forma negativa da experiência da mediunidade.

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