Edição 349 | 01 Novembro 2010

O espiritismo e as religiões afro

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Graziela Wolfart

Artur Cesar Isaia percebe que, entre o espiritismo e as religiões chamadas afro-brasileiras, existe um parentesco cultural evidente

“Embora os censos demográficos apontem para uma parcela mínima da população como seguidora do espiritismo, a crença em alguns pilares da sua doutrina aparece extremamente difundida no Brasil. A crença nos contatos com os espíritos, na reencarnação é algo que salta aos olhos em fenômeno comprovado pelas pesquisas de opinião”. A afirmação é do professor Artur Cesar Isaia, na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail. Por outro lado, continua ele, “a reincidente presença desses temas na mídia, nas telenovelas, principalmente, ajuda a compreender este fenômeno. Isto sem falar no evidente sucesso de bilheteria dos últimos filmes brasileiros que tratam desta temática”. Para Isaia, “no Brasil, principalmente devido às sobrevivências culturais dos africanos de origem banto, generalizou-se a crença e o culto em entidades ancestrais, nos espíritos, o que representa um elo comum entre as religiões afro-brasileiras, principalmente a umbanda e o espiritismo”.

Artur Cesar Isaia é graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu estágio de pós-doutoramento na École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Atualmente é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, onde é um dos coordenadores do Laboratório de Religiosidade e Cultura – Larc. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República e Teoria e Filosofia da História, pesquisando principalmente os seguintes temas: discurso religioso, catolicismo, espiritismo, umbanda.

É autor do livro Orixás e espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea e dos Cadernos IHU Idéias, n° 64 intitulado Getúlio e a Gira: a Umbanda em tempos de Estado Novo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que relação pode ser estabelecida entre o espiritismo e as religiões afro-brasileiras?

Artur Cesar Isaia - Entre o espiritismo e as religiões chamadas afro-brasileiras, existe um parentesco cultural evidente, apesar das relações, às vezes tensas, entre o órgão representativo do espiritismo brasileiro (a Federação Espírita Brasileira - FEB) e aquelas religiões. No Brasil, principalmente devido às sobrevivências culturais dos africanos de origem banto , generalizou-se a crença e o culto em entidades ancestrais, nos espíritos, o que representa um elo comum entre as religiões afro-brasileiras, principalmente a umbanda e o espiritismo. Em relação às manifestações existentes na umbanda, podemos ver nas fontes relativas ao espiritismo que até o primeiro quartel do século XX a FEB as reconhecia como espíritas. Este posicionamento é mudado na década de 1950, quando a FEB tenta demarcar território. A partir desta ocasião, mesmo que continue a reconhecer como espíritas boa parte dos fenômenos da religiosidade afro-brasileira (basicamente as manifestações dos chamados caboclos e pretos velhos), não os reconhece como amparados na doutrina espírita. Já na década de 1970, a FEB avança no sentido de marcar território frente às religiões afro-brasileiras. Passa, então, a reconhecer como espíritas somente as manifestações de natureza mediúnica amparadas na doutrina espírita (vale dizer nas obras de Allan Kardec e na sua interpretação das mesmas). É necessário termos em mente que estas sutilezas de argumentação doutrinária aconteceram ao largo das vivências de boa parte da população brasileira, a qual, espírita, frequentadora das religiões afro-brasileiras ou eventualmente frequentadora de ambas, dificilmente tomou conhecimento ou levou em consideração esses porta-vozes do espiritismo brasileiro.

IHU On-Line - O que podemos entender por “espiritismo de umbanda”?

Artur Cesar Isaia - Esta expressão aparece, sobretudo, em um momento de afirmação da umbanda no campo religioso brasileiro, no qual há uma necessidade de busca de legitimação. Ora, não podemos esquecer que este momento é ainda fortemente marcado por interditos preconceituosos, em um Brasil em que a abolição da escravidão é um fato recente. Apesar da perseguição oficial se estender também ao espiritismo (vale lembrar a explícita condenação às atividades espíritas no primeiro código penal republicano), este conta com muito mais aceitação por boa parte da elite letrada brasileira. Daí a insistência dos primeiros líderes e intelectuais umbandistas em se dizerem adeptos do “espiritismo de umbanda”. Esta expressão vai deslizar do vocabulário religioso dos primeiros umbandistas para a própria análise sociológica (ela aparece até mesmo na produção de Roger Bastide ).

IHU On-Line - Qual a influência do espiritismo nos processo de possessão das religiões neopentecostais?

Artur Cesar Isaia - Do ponto de vista cultural, é evidente que algumas denominações vão se ancorar em práticas extremamente familiares ao cotidiano e à tessitura valorativa de boa parte de população brasileira. Mesmo com um discurso de satanização do espiritismo, da umbanda e do candomblé (discurso muito semelhante ao católico do período pré-conciliar), o que se vê, na prática, é uma afirmação de valores e crenças pré-existentes, onde o inimigo passa a ser ressignificado e a servir de ponto de referência para o próprio sucesso dessas denominações. Um exemplo claro pode ser apontado na forma de nominar os demônios, em alguns rituais de exorcismo na Igreja Universal do Reino de Deus, onde aqueles aparecem com nomes e mise-en-scène típicos das manifestações de caboclos, pretos velhos, exus, principalmente.

IHU On-Line - Qual o impacto do espiritismo na dinâmica do campo religioso brasileiro?

Artur Cesar Isaia - Embora os censos demográficos apontem para uma parcela mínima da população como seguidora do espiritismo, a crença em alguns pilares da sua doutrina aparece extremamente difundida no Brasil. A crença nos contatos com os espíritos, na reencarnação é algo que salta aos olhos em fenômeno comprovado pelas pesquisas de opinião. Por outro lado, a reincidente presença desses temas na mídia, nas telenovelas, principalmente, ajuda a compreender este fenômeno. Isto sem falar no evidente sucesso de bilheteria dos últimos filmes brasileiros que tratam desta temática.

IHU On-Line - Por que o espiritismo era considerado loucura e doença contagiosa na primeira metade do século XX no Brasil?

Artur Cesar Isaia - Em minha opinião, basicamente por duas razões: a primeira prende-se às características da psiquiatria da época, extremamente normativa, refratária a qualquer vivência que não se encaixasse no tipo standard de sanidade mental construído. Como a psiquiatria da época ainda insistia na oposição total entre o racional e o irracional e o critério de sanidade auferia-se pelo predomínio do primeiro, as atividades mediúnicas eram encaradas como uma anormalidade, na qual o mundo subliminar, irracional afirmava-se frente à racionalidade e ao predomínio da vontade individual. A segunda razão, pela extrema familiaridade entre a medicina psiquiátrica e o estado nesta época. Em ambos, vigorava uma posição intervencionista, que pregava o “ajuste” de boa parte da população brasileira aos padrões de sanidade, higiene e laboriosidade, tidos, igualmente, como padrões de normalidade. Daí as campanhas antiespíritas e antialcoólicas, por exemplo, abraçadas por parte da medicina psiquiátrica da época, aparecerem entrelaçadas às atividades do Estado. Posicionamento totalmente diferente tem a medicina psiquiátrica contemporânea em relação a este assunto, em um momento em que o sujeito moderno, racional, cartesiano é relativizado.

IHU On-Line - Quais as principais diferenças em relação aos discursos religiosos espírita, católico e umbandista?

Artur Cesar Isaia - Do ponto de vista das vivências da população brasileira, talvez fosse mais fácil responder quais as semelhanças entre eles, já que boa parte dos brasileiros transita, sem problemas de consciência, entre espiritismo, catolicismo, umbanda e demais manifestações afro-brasileiras. Contudo, do ponto de vista estritamente doutrinário, o que as diferencia basicamente é a crença na reencarnação, assumida tanto pelo espiritismo quanto pela umbanda e que vai de encontro à ideia de salvação pregada pelo catolicismo e a crença nos chamados novíssimos: a morte, o juízo, o paraíso e o inferno.

IHU On-Line - Como o espiritismo se posiciona, em geral, em relação à política?

Artur Cesar Isaia - Essa pergunta é muito difícil de responder, uma vez que depende do ângulo que se está analisando a questão e de qual o “porta voz” autorizado escolhemos para falar em nome do espiritismo. Como no espiritismo não há uma hierarquia e nem uma autoridade central, as federações e associações espíritas não podem ter a palavra final sobre qualquer assunto. Mesmo a FEB teve e tem sua autoridade contestada inúmeras vezes. Um desses momentos foi o da assinatura do chamado Pacto Áureo , assinado em 1949 no Rio de Janeiro e que pretendia unificar o posicionamento dos espíritas no Brasil. Este documento foi contestado por alguns líderes espíritas, como Deolindo Amorim  (que, coincidentemente, escreveu sobre as relações entre espiritismo e religiões afro-brasileiras). Portanto, temos que precisar a partir de que fontes, de que universo empírico nos referimos para caracterizar o posicionamento espírita em relação à política. Se utilizarmos como corpus documental a obra de codificação espírita, o chamado “Pentateuco” (O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese) vamos ver o espiritismo referendando basicamente o mundo sociopolítico pós-revolucionário francês. Quando falamos em mundo pós-revolucionário, falamos da orientação institucional e da realidade sociopolítica que triunfou após 1789. Sendo assim, essas obras (que pertencem à segunda metade do século XIX) referendam em boa parte a conciliação entre os ideais revolucionários de igualdade, fraternidade e liberdade com os interesses da propriedade. Na obra de codificação espírita, vamos encontrar a defesa de um mundo harmônico e tranquilo, onde trabalhadores e patrões deveriam coexistir, onde se defende a legitimidade do salário e da propriedade privada e onde a luta revolucionária de matiz socialista é condenada (embora possamos ver a presença de socialistas utópicos como simpatizantes do espiritismo). Em linhas gerais, o Pentateuco referenda o liberalismo pós-revolucionário, aparecendo a defesa clara da laicidade do Estado, da universalização do ensino, da igualdade entre homens e mulheres e da república.

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