Edição 347 | 18 Outubro 2010

Hábito Negro: as reduções no Canadá

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Cássio Pereira e Márcia Junges

Luiz Fernando Medeiros Rodrigues analisa os aspectos etnográficos do filme Hábito Negro e reflete sobre a relação estabelecida entre indígenas e jesuítas

Hábito Negro (Black Robe) é um filme de 1991 que narra a história de um padre jesuíta no Canadá, então colônia fraco-inglesa. Dirigido por Bruce Beresford, o filme se passa no ano de 1634, quando o padre jesuíta La Forgue (interpretado por Lothaire Bluteau) inicia uma jornada através do Canadá a fim de ajudar os índios Huron. No próximo dia 20-10-2010, Hábito Negro poderá ser visto na sessão comentada do pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU – A experiência missioneira: território, cultura e identidade. O professor da Unisinos Luiz Fernando Medeiros Rodrigues comentará a obra, que será exibida às 19h30min, na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, o professor do PPG em História analisou os aspectos etnográficos do filme e refletiu sobre a relação estabelecida entre indígenas e jesuítas. "Talvez o fato mais interessante é a cena final do filme: quando os iroqueses compreendem que estão diante de um Deus que os dominará, um Deus que decide quem entre eles viverá ou morrerá, não vendo outra escolha, estes se ajoelham e pedem para serem batizados. É a derrota da resistência e o triunfo dominação", descreve.

Professor do PPG em História da Unisinos, Luiz Fernando Medeiros Rodrigues é o atual curador adjunto do Memorial Jesuíta. Doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, Itália, seus temas de pesquisa são missões e congregações religiosas na América Colonial; fontes missionárias e história indígena na Amazônia; crônicas e cronistas coloniais; e historiografia colonial.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Mesmo com a história se passando no Canadá, de que forma o filme auxilia a compreender o processo da catequização indígena na América do Sul?

Luiz Fernando Medeiros Rodrigues – Antes de tudo, deve-se ter presente que o filme é baseado no romance “Black Robe”, de Brian Moore. Este narra a história do primeiro contato entre os índios Huron na região de Quebec e os missionários Jesuítas franceses, os quais queriam evangelizá-los, convertendo-os ao cristianismo. Nem tudo, portanto, é histórico. Todavia, há aspectos muito interessantes do ponto de vista historiográfico. Por exemplo: os detalhes arquitetônicos das choças indígenas, os métodos de caça e de obtenção de alimentos; o modo como os índios cooperam entre si na coleta de alimentos, a necessária confiança mútua entre cada elemento do grupo dos indígenas, qual meio eficaz para fazer frente aos extremos limites que a dureza do clima e da natureza os expõem; todos estes detalhes são muito realísticos. Para além destes detalhes mais concretos da vida cotidiana, o filme claramente expõe o sistema de vida, os valores e as crenças dos índios em contraste e, por vezes, até mesmo em oposição conflituosa com o sistema de vida e a religião dos colonos e padres jesuítas franceses.

No filme, aparece rapidamente um índio “convertido”, com um crucifixo no pescoço, que claramente não é expressão da sua adesão de fé em Jesus Cristo, mas apenas um artifício de conveniência para cativar benevolência na sua relação com quem poderia lhe dar o que desejava. Outro elemento interessante diz respeito ao batismo. Mesmo que, numa perspectiva cristã – enquanto “cultura de fora e exterior” –, a magia e a feitiçaria dos Aloquis tenha conotações negativas, facilmente associadas à feitiçaria européia (enquanto heresia e idolatria), para os índios, a magia é simplesmente definida como tendo aparentemente poderes sobrenaturais. Desta forma, a água usada no batismo que tem a possibilidade de bendizer, transforma-se em algo mágico. E os Aloquis chamam o batismo de “magia da água”. Estes o vêem como rito mágico capaz de roubar os seus espíritos e, portanto, como ação demoníaca; não como um ritual ou ato de fé. Por conseqüência, os jesuítas são vistos como feiticeiros-demônios cujos poderes contribuem para desfazer a integridade do ser Huron. Os diálogos entre o protagonista, o P. Laforgue, e o chefe Aloqui Chomina encarnam o difícil contato entre as duas culturas. Ambos se perguntam se o seu interlocutor é “homem”.  O filme tem o mérito de explorar este e outros elementos que, de forma análoga, certamente também aconteceu na evangelização da América do Sul.

IHU On-Line – De que forma o etnocentrismo aparece no filme e como ele habitou o trabalho dos jesuítas?

Luiz Fernando Medeiros Rodrigues – O contexto histórico no qual o filme de desenvolve, narra os acontecimentos entre os anos 1600 e 1650, na região dos grandes lagos, fronteira entre Estados Unidos e Canadá. No século XV britânicos e franceses iniciaram a colonização do Canadá. Os britânicos, em menor número, foram para a “Terra de Rupert”, na região noroeste. Já os franceses, em número bem maior, ocuparam a região dos Grandes Lagos e do Rio São Lourenço, bem como a região que atualmente compõe as atuais províncias de Nova Escócia e Nova Brunswick. Os índios Iroqueses não aceitaram essa dominação e se colocaram em guerra contra os Hurons, que estavam acolhendo a cultura e os jesuítas franceses. Essas guerras, que começaram volta de 1640, geraram diversas lutas, culminando com o Tratado de Paris, em 1763, com o qual os franceses cederam seus territórios da Nova França e da Acádia aos britânicos. Mas o antigo Canadá permaneceu francês, permitindo que a Igreja Católica e a língua francesa continuassem a sobreviver no Canadá, até os dias atuais. Depois de anos de trabalho duro é que os jesuítas conseguiram batizar o primeiro índio. Pela resistência crescente e obstinada, em clima de perseguição, o ritmo das conversões era desesperadamente lento.

Em 1641, a missão jesuíta não tinha mais de 60 cristãos. As dificuldades aumentaram a partir de 1642 quando os índios Iroqueses iniciaram a invasão das terras Hurons. Foi neste período que o P. João de Brébeuf viveu no meio dos Hurons. Mas, durante o conflito contra os Iroqueses, estes invadiram a aldeia dos Hurons, amarraram o jesuíta em um pau e o torturaram de diversas maneiras, chegando a arrancar suas unhas. Finalmente, como era costume, vendo que ele fora um guerreiro muito corajoso, comeram seu coração. Este contexto de fundo aparece no filme quando o P. Laforgue, o chefe Aloqui Chomina, sua filha, o filho menor e o francês David, são capturados e torturados pelos Iroqueses. Ao longo de todo o filme, o que aparece, em minha opinião, não é tanto um etnocentrismo como tal (claro que em várias cenas ele aparece), mas são as reais dificuldades de duas culturas desconhecidas uma da outra que se encontram e, de certa forma, procuram conviver, “negociar” e se “acomodar”.

Citei acima a questão do batismo. Ponto de conflito será a escritura. Numa das cenas do filme, os índios hurons perguntam ao P. Laforgue o que está fazendo com o papel e a pena. Ele responde que está escrevendo palavras. Sem o compreender, o P. Laforgue pede que digam uma coisa que somente eles o saibam. O jesuíta escreve o que os índios dizem e, depois, faz o jovem francês, David, ler para todos o que tinha escrito, repetindo quanto tinham dito os índios. Espantados com a magia do padre, os índios interpretam a leitura como o roubo de seus espíritos. Laforgue é um demônio! Talvez o fato mais interessante é a cena final do filme: quando os iroqueses compreendem que estão diante de um Deus que os dominará, um Deus que decide quem entre eles viverá ou morrerá, não vendo outra escolha, estes se ajoelham e pedem para serem batizados. É a derrota da resistência e o triunfo dominação.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição