Edição 347 | 18 Outubro 2010

Uma missão sob o signo da amizade

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Márcia Junges

Matteo Ricci deixou um legado importante para a Igreja atual, analisa Roberto Mesquita Ribeiro, ao referendar a amizade como pedra angular de sua missão na China. Contribuições às ciências foram outra marca do jesuíta no Império do Meio

“A estratégia de Ricci funda-se em uma teologia da Criação que reconhece a possibilidade de manifestação do Dom de Deus em todas as manifestações culturais da humanidade”, afirma o diretor do Centro de Estudos Chineses da Companhia de Jesus em Pequim, o Beijing Center, Roberto Mesquita Ribeiro.  Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ele acentuou que a missão de Ricci na China precisa ser compreendida sob o signo da amizade, herança valiosa para a Igreja como um todo em nossos dias. Segundo ele, o maior legado desse missionário jesuíta para o diálogo com as diferentes culturas é “a possibilidade de inventar caminhos novos para a mensagem de Cristo”. Certamente havia o sonho de inúmeras conversões no Império do Meio, mas números não eram prioridade para Ricci, pondera Ribeiro: “O que lhe era essencial era que a mensagem de Cristo, que os valores do Evangelho fossem conhecidos por todos. Ele queria que Cristo fosse uma voz no diálogo, e essa é a grande contribuição de Ricci”. Além disso, Ricci introduziu os fundamentos da matemática aplicada e ciência moderna na China, com contribuições à filosofia, cartografia, música, astronomia, pintura e teologia. “Desse modo, o aspecto mais importante da passagem de Ricci que se faz sentir na China de hoje é a relação de respeito e crescimento mútuo entre um ocidental e seus amigos chineses”.

Roberto Mesquita Ribeiro é padre jesuíta, natural da Bahia. É advogado, mestre em Literatura pela Universidade Federal da Paraíba – UFPA, estudou Filosofia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia – FAJE, em Belo Horizonte, e Teologia no Centro Sèvres, em Paris. Vive na China desde 2007, primeiro em Taipei, Taiwan, depois em Pequim, desde 2008.  Atualmente, é diretor do The Beijing Center for Chinese Studies – TBC, centro jesuíta de estudos superiores para estudantes das universidades ligadas à Companhia de Jesus interessados em cursar um semestre ou um ano na China. Trabalha, portanto, como educador, sobretudo promovendo estudos chineses nas universidades jesuítas e também promovendo pesquisas na área da história do cristianismo na China.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o fundamento teológico da estratégia de Matteo Ricci?

Roberto Ribeiro Mesquita – Não é fácil apontar os fundamentos teológicos da estratégia de evangelização idealizada por Alessandro Valignano , Visitador das missões do Oriente, e utilizada por Matteo Ricci na China a partir de 1582. Em certos aspectos, Matteo Ricci é filho de seu tempo. Sua primeira preocupação, por exemplo, será a tradução das orações do Pai Nosso e do Credo, atividades simples de catequese, como fizera São Francisco Xavier . O que é inovador na estratégia de Valignano e Ricci, o “modo soave” em seu modo de dizer, é que há uma grande atenção e respeito pela cultura local. Ricci percebe que o povo e a cultura chinesas são especialmente sofisticadas e merecem ser respeitadas e apreciadas. Todo o seu apostolado na China vai se definir pelo seu crescente interesse pela língua, pela cultura, e pelos amigos que Ricci fará na China. Desse modo, a estratégia de Ricci evolui de um modelo no qual a mensagem se impõe para um modelo no qual a mensagem se transmite através do diálogo. E creio que isso somente foi possível porque Matteo Ricci reconhecia a presença de Deus nas culturas, um dom comunicado através da Criação. Em outras palavras, a estratégia de Ricci funda-se em uma teologia da Criação que reconhece a possibilidade de manifestação do Dom de Deus em todas as manifestações culturais da humanidade.

IHU On-Line - Em que sentido o “outro eu” é considerado “amigo” nessa perspectiva de evangelização desse jesuíta?

Roberto Ribeiro Mesquita - A expressão “O meu amigo é a metade de mim e, portanto, o outro de mim mesmo” foi utilizada por Ricci na sua primeira obra em língua chinesa, o Tratado sobre a amizade. Na verdade, trata-se da tradução feita de memória do De Amicitia, de Cícero . Ao escolher essa obra, no entanto, Ricci comunica duas verdades. Primeiro, ele reconhece o valor das relações da amizade na cultura chinesa - uma verdade ainda atual. Segundo, ele reconhece a radicalidade do dom da fraternidade proclamado na fé cristã. Trata-se, enfim, do cuidado do outro, a atenção às pessoas e, em última medida, do amor radical pelo próximo, sobretudo pelos mais necessitados.

IHU On-Line - De que forma a missão de Ricci inspira a Igreja e os homens de hoje para um diálogo com a alteridade?

Roberto Ribeiro Mesquita - Ao iniciar sua obra na China com uma obra sobre a amizade, Matteo Ricci estabelece toda a missão na China sob o signo da amizade, e isso é uma herança valiosa para a Igreja hoje. Isso significa que o respeito pelas pessoas tem a primazia, que o diálogo no qual a missão se desenvolve é um caminho aberto a ser definido pelas curvaturas das palavras trocadas. Ricci jamais poderia antecipar que o caminho iniciado em 1582 em Macao o levaria a ser considerado mandarim, e a terminar seus dias próximo da corte, em Pequim. Certamente Ricci levava uma mensagem, a palavra revelada, o Cristo e as Escrituras. Mas o modo de comunicação dessa mensagem foi desenvolvido de modo inédito no diálogo que Ricci estabeleceu com seus amigos na China. É essa, no meu entendimento, a maior e melhor herança de Ricci para o diálogo com as diferentes culturas: a possibilidade de inventar caminhos novos para a mensagem de Cristo.

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