Edição 347 | 18 Outubro 2010

Ricci, um precursor da globalização?

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Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Perspectiva “universal e universalizante” deve ser percebida no projeto do missionário de Macerata, pontua Filippo Mignini. A paz entre as nações só pode existir fundada sobre o conhecimento recíproco, pela razão, e o reconhecimento da dignidade de todas as pessoas

Uma das maiores dificuldades enfrentadas por Matteo Ricci para entrar na China era uma espécie de “ódio natural” que os nativos votavam aos estrangeiros. “Tal desconfiança fora codificada em leis precisas e em dispositivos jurídicos e administrativos que protegiam a China da incursão de estranhos no próprio território”, explica o filósofo e teólogo italiano Filippo Mignini, em entrevista exclusiva, concedida por e-mail à IHU On-Line. Ao adentrar em terras chinesas, “pela primeira vez em sua história, o cristianismo, como doutrina e como expressão de toda uma civilização, era constrangido a submeter-se ao exame e ao juízo de outra civilização”. De acordo com Mignini, serão “as contradições internas à igreja católica, as divisões entre as ordens religiosas, a ignorância, a presunção e a arrogância da cúria romana que destruirão o plano lucidamente concebido pelo jesuíta de Macerata”. Quanto à compreensão do legado de Ricci como precursor da globalização, o estudioso diz que o jesuíta “era portador de uma perspectiva universal e universalizante, própria do fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola” . E completa: “Outro sinal importante de sua perspectiva globalizante foi o bidirecionamento da comunicação por ele realizado: não somente da Europa para com a China, mas também da China para com a Europa, na convicção de que uma verdadeira comunicação entre amigos devia ser recíproca e paritária”.

Filippo Mignini é membro do Instituto para as relações com o Oriente, da Universidade de Macerata, na Itália. Estudou teologia na Universidade Lateranense e  filosofia na Universidade La Sapienza, ambas em Roma. Especialista no pensamento do filósofo Baruch de Espinosa,  desde 1996 ele é responsável pela programação e redação geral da revista internacional Studia Spinoziana. De sua produção bibliográfica, citamos Introduzione a Spinoza (Roma-Bari: Laterza, 1983), Breve trattato su Dio, l’uomo e il suo bene (L’Aquila-Roma: Japadre, 1986) e Padre Matteo Ricci. Europa alla corte dei Ming (Milano: Edizioni Gabriele Mazzotta, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais eram os maiores obstáculos para um estrangeiro e, sobretudo, um cristão entrar no Império Chinês dos séculos XVI e XVII?

Filippo Mignini - Matteo Ricci chegou ao porto de Macau realizando o grande “salto” da Índia em 7 de agosto de 1582, no nono ano de reinado de Wanli, 14º imperador da dinastia Ming (1368-1644). Quando ele ali chegou, fazia uns 35 anos que os mercadores e os missionários ocidentais tentavam entrar no Reino do Dragão, mas sem sucesso. Há três anos seu coirmão Michele Ruggeri , estudando a língua e a cultura chinesas, está fazendo todo esforço para obter permissão de estadia no interior do imenso e misterioso país. Em vão.

As principais dificuldades para o ingresso de estrangeiros na China eram os seguintes:

1. A profunda diferença e uma espécie de “ódio natural”, como o chama Ricci, dos chineses com todos os estrangeiros. Tal desconfiança fora codificada em leis precisas e em dispositivos jurídicos e administrativos que protegiam a China da incursão de estranhos no próprio território. Esta foi a mais profunda e árdua dificuldade que Ricci teve que enfrentar em sua missão. Muitos anos depois, quando já terá consolidado a própria residência em Pequim, escreverá expressando em síntese o tamanho epocal da própria missão: “Depois que a China é China, jamais há ali memória que nenhum forasteiro estivesse nela como nós estamos”.
2. A aprendizagem da língua chinesa, totalmente diversa da europeia e, como diz o próprio Ricci, “muito embrulhada”.
3. A compreensão e o padroado da milenária cultura chinesa no seu complexo. As últimas duas dificuldades deviam ser superadas porque, de outro modo, não teria sido possível de nenhuma maneira iniciar uma forma de comunicação com a China.
4. Visto o relativismo chinês em questão de religião, não existiam dificuldades particulares da parte de Ricci de ser aceito como portador de uma nova doutrina; a dificuldade estava, ao invés, da parte do jesuíta cristão que não conseguia comunicar a própria teologia pela falta, da parte chinesa, dos pressupostos doutrinais e filosóficos sobre os quais aquela teologia fora construída no decurso dos séculos.
5. O cristianismo, portador da ideia de uma só religião verdadeira e salvífica, devia confrontar-se com a ausência de tal ideia nos chineses, que consideravam igualmente úteis e positivas as diversas religiões históricas (principalmente o confucionismo, o budismo e taoísmo) praticadas por muitos séculos na China.
6. A ausência da ideia de uma alma imortal tornava mais difícil a relação com a morte, e particularmente árduo transmitir a doutrina de uma vida após a morte, conforme o sistema dos prêmios e das penas que haveria de determiná-la por toda a eternidade.

IHU On-Line - De que forma Ricci introduziu o cristianismo na cultura chinesa? Que método utilizou para obter este objetivo?

Filippo Mignini - Para introduzir o cristianismo na China, Ricci utilizou quatro instrumentos principais:

1. O método da inculturação e da “adaptação”.
Com respeito a este tema, sobre o qual muito tem sido escrito, tanto em geral como com particular referência à experiência jesuítica na China e assinaladamente àquela ricciana, limito-me a poucas observações. Recordo, sobretudo, que o termo indica aquele método preciso de comunicação com outro povo ou país que consiste em tornar própria a cultura do outro, em nela entrar para estabelecer, no plano de certa identidade, fundada principalmente na aprendizagem da língua, a transmissão da própria mensagem. A assunção da cultura alheia como própria se refere a todos os aspectos da vida pessoal e social, dos costumes à alimentação, da moradia aos hábitos, da língua ao conhecimento dos sistemas de pensamento e de valores do próprio interlocutor. Este método não implica, obviamente, uma renúncia à própria identidade essencial, por exemplo, às próprias convicções filosóficas e religiosas, mas a todos aqueles aspectos não essenciais da própria identidade. O abandono destes aspectos permite uma comunicação, de outro modo impossível, sobre aspectos essenciais. Tal renúncia à própria identidade, que Ricci indica com o verbo “expropriar-se”, isto é, abandonar o que sentimos como próprio, pode ser considerada uma espécie de kénosis, uma figura e reatualização daquela “autoexpropriação” ou “esvaziamento” realizado pelo filho de Deus ao fazer-se homem, sobre o qual está fundado o processo salvífico. Tal experiência de assimilação ao outro se estendeu, na experiência ricciana, até os símbolos religiosos, a fim de realizar uma perfeita inculturação.

“Deve-se, no entanto, observar que o método da inculturação não foi uma invenção espontânea, uma escolha livre e incondicionada, mas uma necessidade sugerida pela precisa situação histórica na qual a pessoa se encontrava para agir. Em outros termos, foram a peculiar natureza da sociedade e do Estado chinês, seu fechamento férreo perante toda alteridade ou exterioridade, os fortíssimos preconceitos ante todos os estrangeiros, em particular os ocidentais, a impossibilidade de entrar na China como antes disso havia costumeiramente ocorrido em todos os outros países do mundo – ou seja, em seguimento de um exército invasor ou em condições de reduzidíssima organização estatal ou de baixíssima civilização – os que impuseram este método, revelando-se impraticável qualquer outro.
Além disso, deve-se observar um aspecto distintivo e característico na missão chinesa, cuja consciência e oportuna análise podem ter consequências significativas para melhor compreensão da natureza e dos limites da própria evangelização cristã também hoje e não somente em relação à China. Pela primeira vez em sua história, o cristianismo, como doutrina e como expressão de toda uma civilização, era constrangido a submeter-se ao exame e ao juízo de outra civilização. Isso jamais se verificara antes, em nenhuma parte do mundo e em nenhuma outra época, com a mesma intensidade e da mesma forma.

2. A necessidade de considerar primária e fundadora a abertura de uma comunicação enquanto tal com os letrados chineses. Esta comunicação se atuou em dois planos principais: no da vida moral, instituindo uma espécie de confronto sobre as doutrinas, as técnicas e as práticas para a obtenção da máxima virtude possível para o homem; no plano dos saberes, não somente morais, mas especialmente matemáticos e naturalísticos. A comunicação das doutrinas científico-matemáticas do Ocidente também constituía uma forma privilegiada de transmissão dos pressupostos da teologia cristã.

3. Não satisfeito com o trabalho executado através da transmissão das ciências, Ricci quis expor de modo sistemático os pressupostos doutrinais do cristianismo numa obra de teologia racional intitulada Verdadeiro significado do Senhor do Céu (Pequim, 1603). Para aqueles que haviam abraçado o cristianismo, Ricci traduziu ao chinês também os principais textos da doutrina cristã (Dez mandamentos, Credo, preces, etc.).

4. Especialmente em sua última obra de filosofia moral (Dez capítulos de um homem estranho), Ricci também introduz de modo significativo o texto bíblico através de uma série de citações e referências tanto explícitas, quanto implícitas. Ele apresenta desse modo a Bíblia como o texto de referência dos cristãos, análogo àquele que os Quatro livros e as Cinco doutrinas o são para os confucionistas.

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