Edição 346 | 04 Outubro 2010

A Criação como dom a ser reconhecido e agradecido

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Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

A compreensão do mundo como dom exige uma resposta a essa dádiva. Mas não há nada que o ser humano possa devolver a Deus. Entretanto, somos conclamados a reconhecê-lo e a agradecer por ele, afirma o reverendo anglicano Peter Pavlovic, secretário da European Christian Environmental Network

“O cuidado do meio ambiente, o cuidado da criação é parte integrante da fé cristã”, afirma Peter Pavlovic, secretário da European Christian Environmental Network e reverendo anglicano. E não só da fé cristã, mas também do próprio ser humano, já que sua identidade “não pode ser entendida sem se levar a sério nosso relacionamento com os demais seres humanos e o mundo que nos cerca e sem nosso relacionamento com Deus”, explica. Nesse sentido, “a mais proeminente contribuição do ensino cristão sobre o mundo e a criação é a compreensão da Criação como dom”. Segundo Pavlovic, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, estamos vivendo num mundo que não fizemos por merecer: “Ele nos é dado como um presente. Temos de valorizá-lo e responder ao Doador cuidando dele e tratando-o com carinho, não exaurindo seus recursos”, comenta. Além disso, é um dom, uma dádiva, um presente que não está estático no tempo, como algo que aconteceu “nas origens”. “A atividade providencial de Deus continua e está conosco inclusive no presente. Deus cuida de sua Criação a cada dia”, reflete Pavlovic. Por isso, “cuidar do meio ambiente, respeitar a Criação e protegê-la é nossa tarefa, mas não por causa do medo. Somos conclamados a proteger a Criação como presente que nos foi dado, a partir do respeito e da alegria”, diz.

O reverendo anglicano Dr. Peter Pavlovic, físico e teólogo, é secretário de estudos da Comissão sobre Igreja e Sociedade da Conference of European Churches – CEC [Conferência de Igrejas Europeias] , com sede em Bruxelas, uma comunhão de 125 igrejas ortodoxas, protestantes, anglicanas e vétero-católicas de todos os países da Europa. Com escritórios em Genebra, Bruxelas e Estrasburgo, a Conferência trabalha na promoção do diálogo entre as igrejas e as instituições políticas europeias. Pavlovic também é secretário da European Christian Environmental Network – ECEN [Rede Cristã Europeia para o Meio Ambiente] , uma plataforma para aprofundar o diálogo, a troca de experiências e o trabalho conjunto na proteção do meio ambiente entre as igrejas do Velho Continente.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância de uma rede de igrejas cristãs focada no meio ambiente? Quais são seus objetivos? Há experiências semelhantes em outras partes do mundo?

Peter Pavlovic – A Rede Cristã Europeia para o Meio Ambiente [European Christian Environmental Network – ECEN] é uma rede de cristãos da Europa que trabalha com questões ambientais e a proteção da Criação. A ECEN foi estabelecida em 1998 por recomendação da 2ª Assembleia Ecumênica Europeia que ocorreu em Graz (Áustria) em 1997. O testemunho das igrejas europeias em relação à Criação divina, nosso meio ambiente natural, foi um dos cinco temas principais dessa Assembleia. Em vista do fato de que muitos problemas ambientais atualmente cruzam as fronteiras nacionais, reconheceu-se que o testemunho das igrejas ganharia força se elas se pronunciassem coletivamente. Por isso, a Assembleia recomendou o estabelecimento de uma rede que canalizasse e fortalecesse o trabalho ambiental das igrejas europeias organizando projetos, conferências e assembleias, compartilhando conhecimento especializado.

A ECEN é uma rede horizontal quem tem tanto membros quanto amigos. A instância suprema de tomada de decisões da ECEN é sua Assembleia, realizada a cada dois anos. As atividades da ECEN se concentram em várias áreas temáticas, particularmente teologia, liturgia, mudança climática e gestão ecológica. Uma das atividades primordiais da ECEN é a promoção e celebração de um Dia da Criação e um Tempo da Criação nas igrejas europeias, de 1º de setembro até o segundo domingo de outubro. Para isso, se desenvolve material litúrgico a cada ano.
Em seu trabalho e em sua existência, a ECEN está estreitamente associada à Conferência das Igrejas Europeias. Dois de seus principais parceiros são o Conselho de Conferências Europeias dos Bispos – CCEE (www.ccee.ch) e o Conselho Mundial de Igrejas – CMI (www.oikoumene.org).

Embora a ECEN seja uma rede europeia, seus membros estão interessados na cooperação com colegas de outros continentes. Estamos buscando uma possibilidade de estabelecer e fortalecer laços com igrejas e cristãos do mundo inteiro engajados em várias atividades que visem a cuidar da Criação divina.

IHU On-Line – Em sua opinião, por que as igrejas, hoje, também se voltam para as questões ambientais? Qual é a sua contribuição específica para o cuidado da Criação?

Peter Pavlovic – O cuidado do meio ambiente, o cuidado da Criação é parte integrante da fé cristã. Ele não é algo acrescentado artificialmente à fé ou não suficientemente relevante para nossa fé. Isso está claro da primeira até a última página da Bíblia: a Criação está estreitamente ligada ao destino humano, ao papel e à tarefa dos seres humanos neste mundo. A identidade do ser humano não pode ser entendida sem se levar a sério sua atitude tanto para com a dimensão horizontal quanto vertical, ou seja, sem nosso relacionamento com os demais seres humanos e o mundo que nos cerca e sem nosso relacionamento com Deus. Ambas as dimensões desempenham um papel substancial para o desenvolvimento da identidade do indivíduo e estão inter-relacionadas. O relacionamento com Deus, com os demais seres humanos e com o mundo que nos cerca não podem ser separados um do outro.

Creio que a mais proeminente contribuição do ensino cristão sobre o mundo e a Criação é a compreensão da Criação como dom. Estamos vivendo num mundo que não fizemos por merecer; ele nos é dado como um presente. Temos de valorizá-lo e responder ao Doador cuidando dele e tratando-o com carinho, não exaurindo seus recursos. A compreensão do mundo como dádiva leva a consequências de longo alcance e muito diferentes de uma compreensão limitada do mundo como uma coleção de recursos naturais que precisam ser exauridos a fim de manter o nosso nível de consumo e a nossa felicidade superficial elevados.

IHU On-Line – Nesse sentido, qual a importância de celebrar um “Tempo para a Criação”?

Peter Pavlovic – A iniciativa do Tempo para a Criação tem sua origem na Igreja Ortodoxa. Em 1989, o patriarca ecumênico Dimitrios lançou uma conclamação para que uma parte especial do calendário litúrgico estivesse focada na proteção da Criação. Desde então, a iniciativa recebeu um apoio bastante forte em muitas igrejas do mundo todo.
Na Europa, a iniciativa para promover o Dia da Criação e Tempo para a Criação é uma das principais atividades da ECEN. A cada ano, a ECEN produz material litúrgico com orações, hinos e reflexões que podem oferecer às comunidades cristãs ajuda para encontrar uma forma adequada de celebrar Deus como Senhor da Criação. A liturgia e o louvor são um aspecto significativo da compreensão cristã da Criação e de nosso papel nela.
O Tempo para a Criação é, ao mesmo tempo, uma oportunidade maravilhosa para salientar a mensagem central da abordagem cristã de todos os problemas ambientais: sem levar a sério a dimensão ética de nossa vida e as perguntas que cada indivíduo deve se fazer todo dia – como, por exemplo, as seguintes: o que consumimos? O que fazemos com o lixo que produzimos? Como nos portamos para com a natureza que nos cerca? –, nenhum dos desafios ambientais cruciais sobre os quais ouvimos falar hoje em dia poderá ser realmente sanado.

IHU On-Line – Em termos bíblicos e teológicos, qual o significado e a importância do conceito de “Criação”?

Peter Pavlovic – Na abordagem mais óbvia, o termo “criação” está associado ao relato bíblico do Gênesis. A Criação, entretanto, significa muito mais do que uma imagem simplificada de que Deus cria o mundo literalmente em sete dias de 24 horas de duração. O conceito de Criação enfatiza a dependência humana em relação à Criação divina. Ele também acentua a beleza da Criação, contrapondo-se a uma concepção simplificada de sua funcionalidade, tão disseminada atualmente.

Em sua ênfase no conceito da Criação, a Bíblia oferece uma bela concepção multifacetada da natureza e do mundo em que vivemos. Além do relato da criação no Gênesis, há Salmos que sublinham o senhorio de Deus sobre a Criação. Os profetas, particularmente Isaías, expõem outro aspecto – uma visão de Criação contínua. Isso quer dizer que a Criação não é apenas algo que aconteceu no início do mundo. A atividade providencial de Deus continua e está conosco inclusive no presente. Deus cuida de sua Criação a cada dia. Um observador cuidadoso pode testemunhar isso de muitas formas.
O conceito de criação também está presente no Novo Testamento. Uma das passagens interessantes das cartas do apóstolo Paulo enfatiza que Jesus Cristo é o mais importante sujeito da Criação. A Criação precisa ser entendida adequadamente como Criação “nEle, por Ele e para Ele” (Colossenses 1,16). Isso acentua a ligação significativa e substancial existente entre a Criação e a nossa redenção.

IHU On-Line – O tema deste ano é “Criação florescente: Um momento para a celebração e o cuidado”. Que ideia embasa esse tema? Qual a sua atualidade?

Peter Pavlovic – Celebrar e cuidar são dois aspectos da mesma coisa, dois lados da mesma moeda. Eles são consequências da compreensão cristã da natureza e do mundo todo como dom. Isso implica o reconhecimento do fato de que fazemos parte do plano de Deus. Essa é a confirmação do sentido bom da Criação. Apesar de muitas limitações com que nos deparamos neste mundo, o mundo é bom, e nós temos o privilégio de assumir responsabilidade por ele e de desfrutá-lo. Além disso, este mundo é um lugar da atuação pessoal de Deus e de sua presença pessoal em nós e entre nós.
A compreensão do mundo como dom exige uma resposta a esse dom. Os maiores teólogos nos lembram que não há nada que o ser humano possa devolver a Deus. Entretanto, somos conclamados a reconhecer o dom e agradecer por ele. Esta é a ação de graças a Deus, onde a celebração e o cuidado da Criação florescente devem ser realizados. O grande teólogo europeu Pe. Dumitru Staniloe  chama essa ação de graças de “sacrifício” e “eucaristia” na mais ampla acepção do termo.

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