Edição 346 | 04 Outubro 2010

''É preciso parar os relógios e anunciar um ‘tempo para a criação''

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Moisés Sbardelotto

“O Tempo para a Criação é a expressão da espiritualidade e da vontade coletiva de desfazer o nó do capitalismo e sua roda dentada”, defende a teóloga Nancy Cardoso Pereira. É preciso dar um “tempo para a Criação” e ser capaz de deixar o planeta viver sem a pressão do “tempo para o lucro”

Parar os relógios e deixar o planeta viver sem a pressão do “tempo para o lucro”. Para a teóloga Nancy Cardoso Pereira, o Tempo para a Criação é justamente “a expressão da espiritualidade e da vontade coletiva de desfazer o nó do capitalismo e sua roda dentada”. Por isso, é um tempo para superar “um modelo econômico que calcula tempo e dinheiro na redução da natureza como matéria prima e na redução do trabalho em extração de mais-valia”, afirma, na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line. Isso encontra ressonância ainda nos primórdios da civilização, explica Pereira, conforme relatado pelo livro bíblico do Gênesis, que “aponta para a dinâmica do ‘descanso’ como parte integral do processo da criação-em-criação”. Esse processo, segundo ela, recupera tradições e modos de vida que podem animar este “outro tempo possível”. “Esse ‘tempo para criação’ é também tempo de festa, de celebração como período de ‘bem-viver’ (sumak kawsay) para todos, todas e tudo”, diz. Esse desejo de conviver não é, portanto, um chamado ao passado ou um romantismo utópico, mas é “fruto de lutas e consensos que vão sendo construídos a partir de outros modos de vida e relação”. Nancy também critica a “falsa conexão entre mulher e natureza nas teologias patriarcais”, pois elas explicitam o “projeto comum de dominação sobre a natureza e sobre as mulheres que se perpetua, ainda hoje, de forma mais ou menos sofisticada nos monólogos teológicos dos senhores teólogos”. É preciso, portanto, superar o elogio da natureza feminina ou a celebração de uma suposta proximidade da mulher com/na natureza. Por outro lado, projetos como a campanha 10:10:10, que fomentam os pequenos passos, “são vitais, mas precisam se relacionar com práticas comunitárias e escolhas estruturais da vida em sociedade”. Por isso, “fechar a torneira enquanto se escova os dentes, enfrentar a Syngenta e a Aracruz e denunciar a bancada do agronegócio em sua fúria devoradora de florestas são ações positivas que exigem mudança de hábitos cotidianos”, explica.

Teóloga e filósofa, Nancy Cardoso Pereira é mestre e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo - Umesp, e pós-doutora em Historia Antiga pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente, é professora e coordenadora no Curso de Teologia e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Severino Sombra, do Rio de Janeiro. Membro do conselho editorial da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, é também agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância de celebrarmos um “Tempo para a Criação”, conforme proposto pelo Conselho Mundial de Igrejas?

Nancy Cardoso Pereira – O tempo de criação não se refere a um tempo primeiro de origem-originária. O tema da campanha é “Time for Creation”, isto é “Tempo para Criação”, afirmando o caráter processual da vida em todas as suas dinâmicas e, de modo vital, as relações de relações – antigas e novas – de interação e de renovação entre seres vivos e ambiente. Essas relações têm sido pressionadas historicamente por um modelo econômico que calcula tempo e dinheiro na redução da natureza como matéria prima e na redução do trabalho em extração de mais-valia. O “Tempo para Criação” é, para mim, a expressão da espiritualidade e da vontade coletiva de desfazer o nó do capitalismo e sua roda dentada. Dar um “tempo para criação”, criar mecanismos de defesa e ser capaz de deixar viver o planeta sem a pressão do “tempo para o lucro”.
Hoje não se sustenta mais a ideia de que o crescimento da produção e a ampliação do consumo – equacionados na base do tempo-dinheiro – sejam sinônimos de bem-estar e de que todos os habitantes do planeta poderiam se beneficiar. A terra não respira e os trabalhadores e as trabalhadoras também são imersos na lógica do curto prazo. Por isso, hoje é preciso interromper os relógios e anunciar o “Tempo para Criação”.

IHU On-Line – O tema proposto para este ano é “Criação florescente: Um momento para a celebração e o cuidado”. Como podemos compreender esses dois aspectos – celebração e cuidado da Criação – a partir da tradição cristã?

Nancy Cardoso Pereira – No livro de Ivoni e Haroldo Reimer, Tempos de Graça (São Leopoldo: CEBI/ Sinodal; São Paulo: Paulus, 1999), somos apresentados ao projeto do Ano Jubileu como tempo de descanso e recriação das relações: o descanso do sábado para o ser humano e os animais, a cada sete dias; o descanso da terra a cada sete anos; a libertação de escravos e escravas no sétimo ano; o perdão de dívidas, a cada sete anos; o jubileu propriamente dito a cada 50 anos chegando até o jubileu proclamado por Jesus.
Acho esta uma intuição muito importante que aponta para a dinâmica do “descanso” como parte integral do processo da criação em criação como no poema do Gênesis 2, 2: “E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito”. Também entre os Bororo  cada família possui um pedaço de terra e é responsável por ela enquanto a usa. Ao final de quatro ou cinco anos, eles se mudam, para que a terra entre num processo de descanso... Assim, esse processo recupera tradições e modos de vida que podem animar este “outro tempo possível”. Esse “Tempo para Criação” é também tempo de festa, de celebração como período de “bem-viver” (sumak kawsay)  para todos, todas e tudo.

IHU On-Line – Em um artigo recente (My People Shall Be as Trees: Commitment and Biblical Interpretations from Brazil , disponível em http://migre.me/1qto6), a senhora afirma que a fome da maioria e a destruição do planeta Terra são “necessidades de todos”, ou seja, grandes problemas de todos ainda a serem resolvidos. Como essas “necessidades” estão relacionadas? Quais as contribuições da teologia para abordá-las?

Nancy Cardoso Pereira – Nunca o mundo teve tanta capacidade de produção de alimentos! Mas a fome continua rondando 1 bilhão de pessoas no mundo. As grandes indústrias de alimentos continuam devorando terras, sementes e águas, fazendo fortuna para minorias do planeta. Os processos produtivos do agronegócio são extremamente destrutivos e não respondem às necessidades de todos e todas. Comemos mal e somos inundados pela lógica do “tempo para o lucro” do fast-food. O Tempo para a Criação é hoje um desafio para repensar os processos de alimentação e de retroalimentação dos seres e da humanidade.
Nem as respostas fáceis do controle populacional, nem as respostas mentirosas das saídas científicas controladas pelo mercado podem sustentar um compromisso corajoso com as fomes (da humanidade e do planeta). As estratégias capitalistas para mudança sob controle do mercado querem fazer passar o camelo pelo buraco da agulha..., aumentando o buraco da agulha. Mas, no espírito da Campanha da Fraternidade de 2010 , já sabemos que não dá pra servir a dois senhores: a integridade da terra e a rentabilidade do capitalismo.
Nas pesquisas que desenvolvo no Programa de História Social da Universidade Severino Sombra - USS, do Rio de Janeiro, trabalho com os jornais operários do início do século XX, no que se chama processo de formação do capitalismo industrial no Brasil e da classe operária. Minha pergunta tem sido sobre a questão agrária e agrícola. Nesse período, a renda da terra representa um resíduo da mais-valia sobre o lucro médio capitalista obtido na exploração agrícola. Os setores da oligarquia agrária e industrial se estranharam nas disputas políticas, mas prevalecendo os interesses de classe – mesmo quando não coincidentes –, sem desestruturar os poderes na terra e da terra por parte dessas elites. O que chama a atenção é que também na formação da classe operária, nos seus discursos e manifestos e nas suas práticas políticas, a questão da terra não aparece como prioridade. A questão agrário-camponesa, mantida como secundária pelos movimentos urbanos de operários, ainda hoje tem reflexos negativos que se expressam na política minimalista do governo Lula, tanto na questão da reforma agrária como nas políticas ambientais. Assim temos impasses históricos importantes na história do Brasil que inviabilizam, ainda hoje, consensos decisivos no meio das lutas populares.
Precisamos de um outro modelo de civilização. Uma outra estrutura agrária e agrícola é possível, que garanta soberania alimentar sem comprometimento dos ecossistemas. Na luta das mulheres camponesas da Via Campesina, encontramos essa formulação da utopia a partir de práticas e modos de vida. A Teologia precisa se acercar dessas práticas e modos de vida, encontrar seus materiais no canteiro e no prato da vida do povo e também do diálogo com a História, a Antropologia e outros saberes.

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