Edição 345 | 27 Setembro 2010

“Urbanos são os parasitas do campo”

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Patrícia Fachin

Para administrar recursos pesqueiros em ambientes inundáveis, é preciso labilidade e compreensão dos diferentes usuários, assinala a bióloga Emiko Resende

Os impactos ambientais do planalto pantaneiro estão afetando a base de quase toda a cadeia alimentar existente no Pantanal: os peixes. Segundo a bióloga Emiko Resende, o leito de alguns rios como o Taquari estão assoreados, “não comportam água no período das chuvas e alagam todos os campos laterais mais baixos. Mesmo no período das secas, o rio não volta para o leito, as áreas laterais alagadas ficam permanentemente inundadas, o sistema perde o pulso de inundação e passa a funcionar como se fosse um imenso lago oligotrófico, ou seja, é um ambiente muito pobre em produção de nutrientes”.

Em entrevista concedida, por telefone, à IHU On-Line, Emiko Resende aponta a destruição das matas ciliares, a construção de hidrelétricas e a pesca esportiva como fatores relevantes para a redução de peixes no ecossistema. “Hoje os rios enchem pouco, têm menos peixe, porém, possuem mais pescadores esportivos pescando. Todos estão disputando o mesmo recurso e sobra menos para cada um. O pescador ribeirinho, que vive desta atividade, é o mais prejudicado”, constata. De acordo com a pesquisadora, em 1999, pescadores esportivos capturaram 80% dos peixes do Pantanal. “Os habitantes das cidades não conhecem mais o ambiente natural e as áreas rurais. Os urbanos são os parasitas do campo. Como eles conseguem viver na cidade? Porque o campo produz comida e peixe para eles. Enquanto isso, eles “descem a lenha” no produtor rural e no pescador, sendo que são eles os usuários”.

Emiko Resende é graduada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo - USP, onde também cursou mestrado e doutorado. Realizou cursos de especialização em Planejamento Ambiental e Monitoramento pela University of Aberdeen, Escócia. Foi secretária de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul no período de 1991-1994 e chefe geral da Embrapa Pantanal de 2001 a 2005, onde hoje é pesquisadora. Foi docente nas pós-graduações no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, na Universidade Anhanguera - UNIDERP e na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS. Atualmente é docente na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS, nos cursos de pós-graduação em Ecologia e Conservação e em Estudos Fronteiriços. Lidera o projeto nacional de aquicultura a nível nacional, o Aquabrasil.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual a importância dos peixes para a biodiversidade e o ecossistema do Pantanal? Eles desempenham alguma função especial para manter o equilíbrio da fauna pantaneira?

Emiko Resende –
Os peixes são a base de praticamente toda a cadeia alimentar que existe no Pantanal. Então, além da espécie humana, que usufrui desse recurso através da pesca esportiva e artesanal, existe uma comunidade de aves que dependem desses recursos, além dos jacarés, das lontrinhas, das ariranhas e, até, mesmo a onça pintada do Pantanal, que come jacaré, animal, por sua vez, comedor de peixes. A abundância e a manutenção de diversas espécies dependem da existência desses animais.

Para que existam muitos peixes no Pantanal, são necessárias as enchentes porque elas alagam a vegetação terrestre, matam boa parte dessa vegetação, decompõem-na e a transformam em matéria orgânica. Ou seja, em detritos, os quais servem de alimentação para peixes detritívoros do Pantanal, como os cascudos e curimbatás, que são a base da cadeia alimentar de muitas espécies carnívoras. Então, nos anos em que as cheias são intensas há uma abundância de peixes; em anos em que ocorrem menos cheias, há uma redução desses animais. O sistema tem de encher e secar. Se ocorrerem apenas cheias, o Pantanal passará a funcionar como se fosse um enorme deserto aquático porque não tem a contribuição da fase terrestre entrando na fase aquática. Por isso, ambientes inundáveis como o pantaneiro necessitam que haja um período de seca e outro de cheia, o que chamamos de pulso de inundação, o principal fator ecológico que controla a abundância e a diversidade das espécies do Pantanal.


IHU On-Line - De que maneira a degradação ambiental das bacias hidrográficas e do planalto pantaneiro afeta a vida desses animais?

Emiko Resende –
Principalmente porque as águas correm do planalto para a planície. Então, o que é feito no planalto afeta a planície. O leito dos rios está mais alto que as planícies laterais, por isso, chuvas mais intensas na época das cheias arrombam as margens, alagam imensas áreas laterais e, mesmo no período das secas, a água não volta para o canal porque o rio corre em cumeeira. Assim, os rios perdem o leito. O caso mais evidente no Pantanal é o rio Taquari, que, ao invés de correr em vale, corre na cumeeira. O leito do rio está totalmente assoreado, não comporta água no período das chuvas e alaga todos os campos laterais mais baixos. Mesmo no período das secas, o rio não volta para o leito, as áreas laterais alagadas ficam permanentemente inundadas, o sistema perde o pulso de inundação e passa a funcionar como se fosse um imenso lago oligotrófico, ou seja, é um ambiente muito pobre em produção de nutrientes. Em ambientes permanentemente inundados, como esse do Taquari, existem poucos peixes, porque não há pulso de inundação, o que não permite, em comparação anual, a formação de detritos orgânicos, que servem de alimentação para os peixes. Esse é um problema sério, por isso temos de ter muito cuidado ao fazer a ocupação na parte alta das bacias.

Não estou dizendo, com isso, que é inviável ocupar essas áreas, mas elas devem ser ocupadas com os cuidados possíveis para evitar a erosão de forma a manter os rios íntegros. Quem pratica agricultura e pecuária precisa de água. Então, se os pecuaristas e agricultores mantiverem os rios íntegros, eles poderão praticar essas atividades, continuarão tendo água e o Pantanal será conservado.
A outra questão que afeta a vida dos peixes pantaneiros é a destruição das matas ciliares nas cabaceiras dos rios. Isso interfere na reprodução dos animais porque eles não encontram alimento no planalto (parte alta). Isso pode reduzir o potencial reprodutivo das espécies que realizam migrações ascendentes. Eventualmente, a utilização de agrotóxicos e defensivos agrícolas também pode afetar a qualidade da água.


IHU On-Line – Alguma espécie está ameaçada de extinção?

Emiko Resende –
Não temos conhecimento de peixes ameaçados de extinção na planície pantaneira. Existem algumas espécies ameaçadas, como o Pacu, porque o ambiente não tem tido mais inundações intensas.
Desde 1998, existe o SCPesca, um sistema de coleta de dados, que recolhe informações sobre a pesca na região. A partir dessa atividade de monitoramento, foi detectado que o Pacu apresentava sinais de sobrepesca  porque é uma espécie extremamente sensível independente das inundações. A partir de 1998, as inundações do Pantanal não têm sido muito boas, diferentemente do período de 1974 a 1998, em que em todos os anos as enchentes foram intensas. Nesse período, tínhamos Pacu em abundância porque essa é uma espécie que se alimenta também da vegetação alagada como frutos, sementes, flores. Quando o Pantanal não é alagado, não se tem a disponibilidade desses itens alimentares ao Pacu.

Essa é uma espécie apreciada pela população local e pela pesca esportiva. Então, uma das formas propostas para reduzir a pressão da pesca dessa espécie foi aumentar o tamanho mínimo de captura para que ela pudesse se reproduzir mais vezes antes de ser pescada. De toda forma, o que afeta os peixes do Pantanal é a inundação e a enchente. Quanto maior for a enchente, maior a produção de peixes e, quanto menor a enchente, menor a produção desses animais. Então, o manejo e a regulamentação da pesca no Pantanal têm de atentar para isso.


IHU On-Line – Quais as implicações das PCHs no processo de migração de peixes para outras bacias?

Emiko Resende –
Alguns peixes do Pantanal ou da Bacia do Alto Paraguai são migradores de longa distância. Eles se alimentam e crescem na planície de inundação, que é o Pantanal e, na época de reprodução, sobem para as cabeceiras dos rios para se reproduzirem. Esses têm liberdade de subir e descer os rios. Se, eventualmente, instalarem hidrelétricas na parte alta dos rios, dependendo de onde elas sejam instaladas, pode interromper a migração dessas espécies e comprometer a reprodução delas.

Outras espécies realizam migrações de curta distância, isto é, os peixes saem das lagoas marginais e vão para o canal do rio, reproduzem e retornam para a lagoa marginal. Também existem aquelas espécies sedentárias. Estas se reproduzem no local onde moram em épocas de secas e cheias. O maior impacto das barragens é porque a maior parte dos peixes de valor econômico como Dourado, Pacu, Pintado, Cachara, Piraputanga são migradores.


IHU On-Line - Desde quando existe um banco de sêmen de peixes do Pantanal? A senhora pode nos explicar como esse projeto surgiu, funciona e qual é o objetivo?

Emiko Resende –
Há uma preocupação em manter a diversidade genética dos recursos pesqueiros. A maioria desses peixes são migradores como o Dourado, a Cachara, o Pacu, a Piraputanga. Existe um banco de sêmen congelado dessas espécies, o qual tem o objetivo de guardar para o futuro essa diversidade genética que pode ser perdida. Esse é um mecanismo de salvaguarda da diversidade genética dos peixes do Pantanal. Se, eventualmente, acontecer um desastre muito grande, por meio do qual se perca a diversidade de peixes, temos esse banco, que poderá ser utilizado no futuro.


IHU On-Line - Em que consiste o melhoramento genético de peixes? Essa prática já é aplicada no Pantanal?

Emiko Resende –
Como a soja se tornou um produto econômico? Através da domesticação dessa espécie, que era de clima temperado e passou a ser adequada ao clima tropical. Isso foi feito por meio do melhoramento genético tradicional, que chamamos de melhoramento genético quantitativo.

O Brasil tem 12% de água doce no mundo. É o país que tem a maior quantidade de água doce e a maior biodiversidade de peixes. Isso pode ser tanto uma bênção como uma praga. Para fins de cultivo, precisamos de um foco. Se quisermos que a aquicultura no Brasil seja um negócio e que traga retornos social, econômico e ambiental para as populações locais, tem de ser feito um melhoramento genético, porque trabalhar com o potencial nativo das espécies de peixes, hoje, no Brasil, é o mesmo que estar tratando soja de clima temperado. Se não for feito um melhoramento genético para que esses animais cresçam mais rapidamente e alcancem tamanho de abate em tempo mais curto, não vamos conseguir aproveitar o potencial destas espécies.

Existe um projeto da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, em parceria com algumas universidades e com a iniciativa privada, para fazer melhoramento genético para o Tambaqui e a Cachara. A ideia é escolher os peixes de melhor crescimento de cada linhagem e melhorar a taxa de crescimento deles. Se hoje gastamos um ano para criar um Tambaqui para o tamanho de abate, no futuro poderemos gastar seis meses para alcançar o mesmo tamanho. Então, o melhoramento genético que estamos fazendo é tradicional, quantitativo e não tem nada de transgênico.
Transgênico quer dizer trazer genes de outras espécies para incluir naquele que estamos melhorando. Nós ainda não temos a mínima pretensão de fazer isso, mesmo porque nem sequer dominamos o melhoramento genético tradicional. Esses peixes serão saudáveis e, inclusive, serão animais com melhor desempenho e produzirão menor quantidade de dejetos para o meio ambiente.


IHU On-Line - Por que a senhora considera o repovoamento dos peixes uma má alternativa para solucionar o problema da falta de peixes nos rios?

Emiko Resende –
Por que faltam peixes nos rios? Porque os rios não têm mais condição de suportá-los. Os rios estão poluídos, sem mata ciliar, sem áreas de inundação. Então, se o rio está destruído, não adiantará pôr peixes dentro dele. Antes de pensar em repovoamento, é preciso recuperar o rio. Em muitos casos, os peixes voltam naturalmente para os rios apenas com a recuperação do ambiente. Quando se faz o repovoamento, compra-se, na piscicultura, todos os filhotes de um único casal, os quais são jogados no ambiente. Ocorre que a diversidade genética desses peixes é muito baixa porque eles são todos irmãos. Então, a diversidade genética não será interessante porque irá alterar a diversidade genética das eventuais populações naturais que ainda estão no ambiente. Além disso, quase sempre existem doenças nas pisciculturas, as quais serão transmitidas para o rio.  Determinados parasitas foram introduzidos em ambientes naturais por causa disso e hoje não há como controlá-los ou exterminá-los. Então, o repovoamento, do modo como o pessoal gosta e quer fazer, é um tiro no pé. Ao invés de gastar dinheiro repovoando, trazendo esses alevinos com possíveis doenças ou com uma diversidade genética muito baixa, é melhor recuperar o ambiente porque aí as populações voltam naturalmente. A linha é: mantenha o ambiente saudável e terá os peixes.


IHU On-Line - Que diagnóstico a senhora faz da pesca no Pantanal?

Emiko Resende –
A pesca no Pantanal é algo complicado. Existe uma disputa muito acirrada entre os empresários da pesca, que praticam a pesca esportiva, e a comunidade ribeirinha, que vive dessa atividade. Também não há um claro entendimento da comunidade e os pescadores ribeirinhos a respeito do que seja a pesca artesanal; dizem que os pescadores artesanais são responsáveis pela redução dos estoques de peixe. Isso não é verdade: esse fenômeno está relacionado a questões ambientais do ecossistema, como o fato de as cheias, nos últimos anos, não terem sido intensas como foram até 1998. Hoje os rios enchem pouco, têm menos peixe, porém, possuem mais pescadores esportivos pescando. Todos estão disputando o mesmo recurso e sobra menos para cada um. O pescador ribeirinho, que vive desta atividade, é o mais prejudicado. Ninguém se lembra de falar que a degradação ambiental, que a destruição das matas ciliares nas cabeceiras, a construção de hidrelétricas são piores que a pesca em si. Além disso, o pescador esportivo pensa que não provoca impacto nenhum, mas se você imaginar que em 1999 vieram quase 60 mil pescadores para o Pantanal Sul, de Mato Grosso do Sul, é um impacto enorme. Naquele ano, eles capturaram 80% dos peixes do Pantanal e a pesca profissional artesanal capturou 20%. Gostaria de enfatizar que os habitantes das cidades não conhecem mais o ambiente natural e as áreas rurais. Os urbanos são os parasitas do campo. Como eles conseguem viver na cidade? Porque o campo produz comida e peixe para eles. Enquanto isso, eles “descem a lenha” no produtor rural e no pescador, sendo que são eles os usuários. Se eles parassem de comer e de pescar, o campo voltaria ao normal. Os moradores urbanos não têm uma visão clara disso.


IHU On-Line - O que caracteriza a pesca sustentável?

Emiko Resende –
Retirar do ambiente apenas aquilo que ele consegue repor; isso é ser sustentável. A pesca sustentável é difícil porque muitos atores estão envolvidos e ninguém é dono do peixe, a natureza é quem o cria. Então, cada um se sente no direito de retirar do rio o máximo possível.


IHU On-Line – Como administrar recursos pesqueiros em ambientes inundáveis?

Emiko Resende –
Para poder administrar recursos pesqueiros em ambientes inundáveis, temos de ter labilidade e compreensão dos diferentes usuários. Principalmente no Pantanal, é preciso ter uma consciência clara de que os grandes problemas vêm da parte alta, dos rios que drenam para o Pantanal. A agricultura e a pecuária, que são feitas na parte alta, devem respeitar as normas ambientais para que mantenham as condições desses rios e os peixes possam subir a cada ano, reproduzir e voltar para a parte baixa para comer novamente. A maioria dos peixes importantes economicamente são migradores. Eles vão até as cabeceiras dos rios para se reproduzirem e depois descem para a planície para se alimentarem. Esse ciclo se repete todos os anos, por isso devemos manter a bacia hidrográfica íntegra se quisermos ter peixes para as futuras gerações.

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